A morte é injusta

A morte é injusta. Por vezes avisa à chegada, até com avanço, por outras nem ao próprio avisa. A morte é injusta, diz-se, porque ninguém merece morrer de tal forma. Diz-se que é injusto morrer apesar de ser para aquilo que todos nós caminhamos: é o mais natural da vida. Morrer é juntar os conceitos de entropia e probabilidade num contexto palpável. Contudo, vemos sempre a morte como algo metafísico, algo que nos transcende e do qual nada concluímos. Não. A morte é bastante física, é directa, não é sarcástica ou obscura.

Por vezes nem pensamos no que é morrer. O que a morte significa é que algo, isso sim metafísico, desaparece do nosso corpo. Como assim o nosso pedaço de carne não está mais habitado por aquilo que fazia de nós nós mesmos? Qual é a diferença, porque não abre a pessoa os olhos para outro dia? A morte é injusta porque, apesar de tudo, não é natural, não é de todo como eu disse, não é nada como eu disse. A morte é uma traição do corpo, uma vingança impessoal das leis da natureza por usarmos um meio pelo qual vivemos. Contudo, o que se perde na morte? Porque não podemos nós pegar no corpo do morto e dar um choque, mexer os químicos, pôr a máquina toda a funcionar de volta?

Para mim e outros tantos, esta pergunta assombra e toma conta do nosso pensamento quando menos desejamos, quase que num oportunismo sádico. A forma como lidamos com este problema divide mundos e culturas. Alguns apoiam-se numa perspetiva intrínseca, uma certeza própria que lhes traz segurança nesses momentos. Outros recorrem a uma justificação extrínseca que se aproveita de um medo partilhado, que prolífera na falta de capacidade de lidar com uma realidade universal, e que lhes traz segurança na forma de uma promessa póstuma.

Acima de tudo, o que mais assusta é o facto de termos dentro de nós algo que ninguém sabe o que é, que não é palpável, que não existe e apenas notamos a sua grande e penosa ausência quando morremos. É por estas razões que não se diz que a morte é injusta, diz-se que a vida é injusta.


Texto: Francisco de Azevedo