A vida que podemos salvar

Autoria: Vasco Grilo, alumni de MEAer (IST)

E se pudesses salvar uma vida? O que farias?

“Imagina que, num futuro próximo, a caminho do trabalho, passas por um pequeno lago onde em dias quentes é comum haver crianças a brincar. No entanto, hoje o tempo está fresco e ainda é cedo, pelo que ficas surpreendido ao ver uma criança no lago. À medida que te aproximas, vês que é uma criança muito pequena (provavelmente ainda não tem um ano) que se está a debater, incapaz de ficar em pé ou sair do lago. Procuras pelos pais ou baby-sitter, mas não há ninguém por perto. A criança não consegue manter a cabeça acima da água por mais do que alguns segundos de cada vez. Se não a socorreres, é provável que se afogue. Entrar no lago é fácil e seguro, a água iria dar-te pelos joelhos, mas irias estragar os sapatos novos que compraste há poucos dias, e ficar com o fato molhado e enlameado. No momento em que entregares a criança a alguém responsável por ela, e mudares de roupa, já estarás atrasado para o trabalho. O que deves fazer? Muito provavelmente, a maioria das pessoas pensa que se deveria salvar a criança. Como é que alguém pode considerar que evitar estragar um par de sapatos, ou chegar uma ou duas horas atrasado ao trabalho, seja uma boa justificação para não salvar a vida de uma criança?”

É esta a questão que Peter Singer nos coloca logo no início do seu livro ”A Vida Que Podemos Salvar”. O livro foi escrito para nos levar a refletir sobre a pobreza extrema, isto é, viver com menos de 1,90 $ por dia (em paridade de poder de compra em 2011). A redução da pobreza extrema tem vindo a desacelerar nos últimos anos devido ao efeito agravante de conflitos e das alterações climáticas. Entretanto, com o advento da COVID-19 em 2020, a redução desacelerada passou a aumento. A estimativa preliminar do Banco Mundial indica que, relativamente a 2017, o número de pessoas a viver em pobreza extrema aumentou 88 a 115 milhões, levando a um total de 703 a 729 milhões. Estas pessoas vivem com menos de 2 € por dia, e não teriam sequer dinheiro para pagar uma única refeição num refeitório universitário, muito menos ter uma habitação condigna. Muitas vezes, até nem têm acesso a saneamento básico e água potável. Estas famílias não conseguem suportar os cuidados de saúde mais básicos, e os seus filhos morrem de doenças que para nós são simples e fáceis de tratar, como a diarreia. “Segundo a UNICEF, em 2019 morreram 5,2 milhões de crianças com idade inferior a 5 anos, o equivalente à queda de cerca de 26 Airbus A380 cheios de crianças, todos os dias. Tu, como cidadão de um país desenvolvido, podes ajudá-las, e não precisas de saltar para um lago para o fazer.”

Salvar uma criança

“Em 2011, algo semelhante à situação hipotética descrita acima aconteceu em Foshan, uma cidade no sul da China. Uma menina de dois anos chamada Wang Yue afastou-se da sua mãe para uma rua pequena, onde foi atropelada por uma carrinha, que depois seguiu sem a socorrer. Uma câmara de vigilância captou o incidente, mas o que se seguiu foi ainda mais chocante. Enquanto Wang estava deitada no chão a sangrar, 18 pessoas passaram a pé ou de bicicleta mesmo ao lado dela. Na maioria dos casos, a câmara mostra claramente que essas pessoas viram a criança, mas depois desviaram o olhar ao passar. Uma segunda carrinha passou por cima da perna da criança antes de uma varredora de rua dar o alarme. Wang foi levada rapidamente para o hospital, mas infelizmente, demasiado tarde. Wang morreu.”

“Se és como a maior parte das pessoas, estarás provavelmente a pensar: “Eu não teria ignorado a criança. Teria parado para a ajudar”. Talvez tivesses; mas lembra-te que, como já vimos, cerca de 5,2 milhões de crianças com uma idade inferior a 5 anos morrem por ano, sendo a maioria das causas de morte evitáveis ou tratáveis.”

“A maioria de nós não hesitaria em salvar uma criança que se está a afogar ou que acabou de ser atropelada, mesmo enfrentando um custo consideravelmente elevado para nós mesmos. No entanto, enquanto milhares de crianças morrem a cada dia de causas evitáveis ou tratáveis, nós gastamos dinheiro em coisas que tomamos como garantidas, e que quase não notaríamos se deixássemos de as consumir. Se pudesses salvar a vida de uma criança, fazendo doações a uma organização humanitária, não deverias fazê-lo? Doando uma quantia relativamente pequena para ti podes contribuir para salvar a vida de uma criança, logo, deves fazê-lo. Concordas?”

Objeções comuns à doação

“Talvez a objeção mais fundamental seja a de que não devemos julgar as pessoas que se recusam a doar porque não há um código de valores universal, sendo melhor aceitar que todos têm uma perspetiva diferente sobre o assunto, e que todas as pessoas têm o direito de seguir as suas próprias convicções. Este relativismo moral não é coerente com as nossas intuições sobre os exemplos anteriores. A maioria de nós acharia errado que alguém ignorasse a criança a afogar-se ou a criança atropelada, não diríamos apenas, “Oh, bem, tem o direito de seguir as suas próprias convicções”.”

“Outra objeção comum é a seguinte: trabalhamos arduamente para chegar onde estamos, assim, não teremos ganho o direito de aproveitar? Não será o capitalismo tão produtivo precisamente por compensar quem trabalha arduamente e corre riscos? Quando se fala sobre justiça, podemos também considerar que, pertencendo à classe média num país desenvolvido [como Portugal], tivemos o privilégio de nascer num ambiente socioeconómico que possibilita que quem trabalhe arduamente e tenha as competências adequadas consiga atingir um nível de vida muito confortável. Noutros lugares do mundo, poderíamos ter acabado por ser pobres, não importa o quão arduamente tivéssemos trabalhado. Warren Buffet, uma das pessoas mais ricas do mundo, admitiu o seu talento para o mercado de ações, mas acrescentou: “Se me pusessem no meio do Bangladesh ou do Peru, iriam ver o quanto é que esse talento produziria no tipo errado de solo”.”

“Também há quem diga que temos o direito de gastar todo o dinheiro que ganhamos em nós mesmos. Mesmo que concordemos com isso, ter o direito de fazer algo não resolve a questão daquilo que devemos fazer. Se tivermos o direito de fazer algo, não nos podem justificadamente impedir de o fazer, mas ainda assim poderiam dizer-nos que isso seria tonto, terrível ou errado. Podemos ter o direito de passar o fim de semana a jogar videojogos, mas ainda assim pode ser verdade que deveríamos visitar um familiar doente [nos tempos que correm, por videochamada]. Do mesmo modo, podemos ter o direito de não doar qualquer dinheiro, não ajudando quem está em grande dificuldade, mas ainda assim isso pode ser errado.”

“Os libertários resistem à ideia de que temos o dever de ajudar os outros. À primeira vista, há algo de atrativo relativamente à filosofia que diz: “Tu deixas-me em paz, e eu deixo-te em paz, e vamos dar-nos bem”. No entanto, há um problema em negar que tenhamos qualquer tipo de responsabilidade para com aqueles que, sem ser por sua culpa, estão em dificuldades. Levar o libertarianismo a sério exigiria que abolíssemos todos os programas de segurança social apoiados pelo estado para aqueles que não conseguem arranjar um emprego, estão doentes, ou são deficientes. Mais, exigiria que abolíssemos todos os cuidados de saúde financiados pelo estado para os idosos e aqueles que são pobres demais para pagar no sistema de saúde.”

“Por outro lado, até os libertários considerariam errado prejudicar os pobres, e há várias formas de mostrar que os temos prejudicado. Ale Nodye conhece uma delas. Cresceu numa vila costeira, na costa ocidental do Senegal, e tentou ser pescador como o seu pai e o seu avô. Depois de 6 anos em que quase não apanhou peixe suficiente para pagar o combustível do seu barco, partiu de canoa para as Canárias, a partir de onde esperaria tornar-se outro dos muitos imigrantes ilegais da Europa. Em vez disso, foi preso e deportado, mas diz que tentará novamente, embora a viagem seja perigosa e um dos seus primos tenha morrido numa travessia semelhante. Diz que não tem escolha porque “aqui no mar já não há mais peixe”. Um relatório da Comissão Europeia demonstra que Nodye está certo: as reservas de peixe onde o pai e o avô do Nodye pescavam para alimentar a sua família foram destruídas por frotas pesqueiras que vieram da Europa, China e Rússia, e venderam o peixe a europeus bem alimentados que podem pagar preços altos. Há inúmeros exemplos de situações em que países desenvolvidos prejudicam países pobres. Nomeadamente, uma acusação difícil de negar é que, embora quase metade dos gases de efeito de estufa agora na atmosfera tenham sido emitidos pelos Estados Unidos e a Europa, as alterações climáticas afetam mais os países pobres.”

“Outra crítica é a de que a filantropia é apenas um penso rápido, abordando os sintomas, mas não as causas da pobreza global. Por um lado, há organizações como a Oxfam que estão envolvidas na ajuda ao desenvolvimento e na defesa de direitos, visando acordos mais justos para os países de baixos rendimentos. Por outro lado, caso não haja uma possibilidade real de tornar mais provável uma mudança sistemática, é melhor procurar uma estratégia que, mesmo que não acabe completamente com a pobreza extrema, ao menos reduza as dificuldades e o sofrimento vivido por algumas dessas pessoas. Afinal, não se poder curar a ferida não é motivo para se recusar um penso rápido.”

“Ainda há a ideia de que o nosso planeta já tem mais pessoas do que aquelas que pode sustentar, e que salvar vidas agora apenas fará com que mais morram quando, inevitavelmente, ficarmos sem comida e a população colapsar. Na verdade, o mundo não está a ficar sem comida. O problema é que as pessoas nos países mais ricos encontraram, através de produtos animais, uma maneira de consumir quatro ou cinco vezes mais comida do que seria possível se comessem diretamente as colheitas que cultivamos. Além disso, existem provas abundantes de que reduzir a pobreza também reduz a taxa de natalidade.”

Será que a ajuda funciona?

“Como posso saber que a minha doação irá chegar às pessoas que quero ajudar, e fazer uma diferença positiva nas suas vidas? Tem havido um foco crescente, por parte de organizações independentes, na tentativa de medir com o máximo de rigor o impacto de intervenções para ajudar pessoas em pobreza extrema, e na avaliação da eficácia das organizações na implementação das intervenções mais bem-sucedidas. A GiveWell foi pioneira neste aspeto, e os seus elevados padrões de rigor nas avaliações que realizam asseguram que, se doarmos a uma das suas organizações de caridade recomendadas, podemos estar confiantes de que iremos beneficiar, de um modo altamente eficaz, pessoas em pobreza extrema.”

A organização que o próprio Peter Singer fundou, com o mesmo nome do livro, a The Life You Can Save, apresenta inclusivamente uma Calculadora de Impacto que te permite calcular precisamente o impacto da doação que fizeres a qualquer uma das suas organizações recomendadas.

O que podes fazer para ajudar?

Num momento em que a pandemia te impede até de estar com os teus amigos mais próximos, talvez te sobre mais tempo para poder recolher alguma informação. Podes partir deste livro de Peter Singer, do qual traduzi e adaptei os excertos que acabas de ler (2.ª edição, 2019). E depois, quando voltarmos aos bons velhos tempos, quando saíres com os teus amigos, para além de poderes falar com eles sobre isso, podes pensar nalguns excessos de consumo que algumas vezes possas ter cometido e pensar, “Ok, hoje fico por aqui!”. Vais ver como é fácil poupar pelo menos uns 10 € por mês, e pôr à prova o que podes fazer com essa quantia. Ao fim de um ano somarias cerca de 145 $, e, dependendo da organização que escolhesses (há mais), poderias ter o seguinte impacto:

  • Malaria Consortium: “proteger 28 crianças de uma das doenças mais mortais do mundo, a Malária, durante uma temporada de alto risco”.
  • Against Malaria Foundation: “proteger cerca de 144 pessoas com redes mosquiteiras em áreas afetadas pela Malária (cada rede protege 2 pessoas até 3 anos)”.
  • Helen Keller International: “fornecer suplementos de vitamina A para proteger 107 crianças da cegueira”.
  • Evidence Action: “desparasitar 289 crianças; ou fornecer água potável a 113 membros de uma comunidade por um ano; ou direcionar 144 $ para testar e aumentar intervenções altamente eficazes contra a pobreza”.
  • SCI Foundation: “distribuir tratamentos para proteger 337 crianças de esquistossomose [também conhecida como barriga de água, febre do caramujo ou bilharzíase]”.

Então e agora?

“No início da leitura, provavelmente pensaste que salvarias a criança a afogar-se e a criança atropelada. Espero que os argumentos apresentados te tenham convencido que, ao doar a uma organização eficaz, tens a oportunidade de alcançar um resultado semelhante para pessoas em perigo, mesmo que estas não se encontrem à tua frente. Então, por favor, agora que chegaste ao fim deste texto, não feches apenas a página, realiza pelo menos uma das seguintes ações”:

  1. Partilha este texto com os teus amigos e família.
  2. Se tiveres interesse em saber mais sobre pobreza global, também podes enviar uma cópia do livro The Life You Can Save, ou respetivo audiobook (com capítulos lidos por Kristen Bell, Paul Simon, Stephen Fry, e mais!), para o teu email e o de amigos e família. É legal e gratuito!
  3. “Faz uma doação online a uma das organizações recomendadas pela GiveWell ou a The Life You Can Save.”
  4. Melhor ainda, após entrares no mercado de trabalho, estabelece uma doação mensal. “Assim saberás que, na improbabilidade de num mês azarado não alcançares nada do que tinhas planeado, terás feito algo de bom para ajudar os outros.”

“Agora que fizeste a diferença na vida das pessoas a viver em pobreza. Podes sentir-te bem em fazer parte da solução.”

Notas: este artigo baseia-se no livro The Life You Can Save, e tenta manter o espírito das ideias do seu autor, Peter Singer. Todas as eventuais imprecisões da adaptação, interpretação e tradução são da minha inteira responsabilidade. A imagem da capa foi retirada daqui.

Para avaliar o impacto deste artigo, agradecíamos que preenchesses este questionário (não demora mais do que 1 minuto).

Para além das doações eficazes, também podes utilizar a tua carreira para contribuir eficazmente para um mundo melhor! Sabe como consultando as ideias-chave da 80000 Hours.

6 comentários

  1. Muito bom artigo Vasco, vou investigar os sites que partilhaste que, como dizes, contribuem para a solução deste problema humanitário. De facto a dúvida é sempre essa, não sabemos o impacto real desse dinheiro, mas também acho que na situação atual se tivermos algum excedente podemos balançar os efeitos do nosso consumismo extremo nas partes do mundo mais afetadas.

  2. Caro Senhor,

    A Oxfam que quer dar formação sobre leis relativas à violência sexual e sobre legislação internacional de direitos da mulher é ela própria acusada de violência sexual contra aqueles que diz ajudar (casos que entretanto tentou encobrir).

    A Oxfam é exemplo? O Diferencial também promove o encobrimento de abusos dessas multinacionais das ajudas?

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