No princípio existia a igualdade de géneros

No passado dia 15 de Maio foi publicado, na prestigiada revista Science, um artigo que argumenta a favor da existência, e das vantagens, da igualdade de géneros no seio das sociedades pré-históricas de caçadores-colectores. Os autores do artigo, antropólogos da UCL (University College of London), advogam que tal igualdade constituiu um traço evolutivo que nos permitiu beneficiar enquanto espécie, sendo algo que nos distinguiu de, por exemplo, chimpanzés ou bonobos.

O estudo parte de duas evidências aparentemente contraditórias: por um lado, existem dados que atestam que os indivíduos de tribos pré-históricas mostram preferência em coabitar com parentes (irmãos, irmãs, pais, descendentes); por outro lado, é sabido que as comunidades eram compostas por muitos indivíduos não relacionados geneticamente. Como o explicar?

Os autores produziram um pequeno modelo computacional para simular a formação de comunidades. A sua construção é simples e os resultados são reveladores. Suponhamos, por exemplo, que uma comunidade tem início num casal. A cada passo da simulação é aceite um novo indivíduo na nova comunidade. Esse elemento é “convocado” por um adulto já pertencente à comunidade (provavelmente, será um parente seu). A simulação prossegue, sendo sucessivamente adicionados indivíduos novos, até que a comunidade tenha um tamanho próximo do verificado empiricamente (rondando os 20 elementos). Deste ponto de partida podem ser testados dois cenários: no primeiro, num quadro em que a igualdade de género é inexistente e a sociedade se diz patriarcal, a decisão de quem adicionar à comunidade cabe a um homem. No segundo cenário, homens e mulheres terão igual poder para convocar um novo indivíduo.

No primeiro cenário, a comunidade terá no seu núcleo os homens e respectivos parentes. Será uma comunidade em que, escolhendo dois indivíduos aleatórios, a probabilidade de esses estarem ligados por laços familiares é grande. No segundo cenário é credível que os indivíduos chamados pela mulher e pelo homem pertençam a linhagens distintas, não sendo parentes próximos. Neste último caso, o modelo permite conciliar três aspectos fundamentais verificados nas sociedades de caçadores-recolectores: 1) os indivíduos procuram conviver com parentes; 2) a probabilidade de escolher, de entre os membros de uma comunidade, um par de indivíduos não relacionados por laços familiares é grande; 3) as famílias dispersam-se por diferentes comunidades, o que facilita a mobilidade de indivíduos entre essas mesmas comunidades, sendo um aspecto especialmente vantajoso para contornar a escassez sazonal de recursos.

Não obstante a simplicidade do modelo, os resultados obtidos coincidem com a composição das comunidades de tribos de caçadores-recolectores que ainda existem (os Palanan Agta das Filipinas e os Mbendjele do Congo). Os autores apontam a igualdade de género como sendo fundamental na distinta capacidade que os humanos apresentam para cooperar com indivíduos, mesmo que estranhos. Num registo mais descontraído, o estudo confirma-nos que a imagem do homem das cavernas que arrasta a sua mulher pelos cabelos não é mais que uma construção bem moderna. Se assim tivesse ocorrido, talvez, hoje em dia, não fossemos fundamentalmente diferentes de chimpanzés ou bonobos.

*Este texto não segue o novo acordo ortográfico

Referências:

Dyble, M., et al. “Sex equality can explain the unique social structure of hunter-gatherer bands.” Science 348.6236 (2015): 796-798.


Texto: Fernando Pedro