Cenouras israelitas nos Açores

Subsidiar é impor o que fazer, é criar regras e restrições ao que o país pode produzir. E quando os mais básicos dos alimentos têm de ser importados, que tipo de soberania alimentar resta a uma nação subsidiodependente?

Texto: Paulo Moniz*


Alimentar 500 milhões de pessoas não é tarefa fácil e é este desafio, numa Europa unificada aos vários ritmos nacionais, que a Política Agrícola Comum (PAC) tenta resolver. Duma forma muito simplificada, esta é a resposta da União Europeia à necessidade de garantir um nível de vida digno a 22 milhões de agricultores e de trabalhadores agrícolas e um abastecimento estável, variado e seguro de produtos alimentares ao conjunto dos 28 países que a compõem. Esta é uma política, sobretudo financeira, que tenta imprimir competitividade e sustentabilidade à agricultura através de pagamentos directos aos agricultores com vista a estabilizar e garantir o rendimento destes. É, também, uma forma de financiar projectos que dêem resposta às especificidades de cada país ou região, através de Programas de Desenvolvimento Rural específicos.

Como a Europa não é um continuum geográfico de países, dela fazem parte, também, as Regiões Ultraperiféricas (RUP). Neste momento são nove, e são regiões integrantes do território de alguns Estados-Membros: Guadalupe, Guiana Francesa, Martinica, Maiote, Reunião e São Martinho, são as integrantes de França; as Canárias, de Espanha; e a Madeira e os Açores, de Portugal. Devido ao afastamento, às suas características geográficas, insularidade, pequena dimensão, topografia difícil e clima, vêem-se confrontadas com dificuldades acrescidas no que à disponibilização de produtos agrícolas (ou mesmo recursos naturais) diz respeito. Portanto, para essas regiões estão disponíveis apoios financeiros específicos europeus (são subvenções), como o FEDER (Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional), que pretende a coesão económica e social e colmatação dos desequilíbrios entre regiões, mas também o POSEI (Programa de Opções Específicas para fazer face ao Afastamento e à Insularidade). No caso de Portugal, e para as regiões insulares, há outros programas de apoio, mas é do europeu que irei falar por estar dentro das linhas mestras e objectivos da PAC.

Para o POSEI (2013-2020), a Europa disponibiliza 653,04 milhões de euros por ano, sendo que para as nossas regiões insulares revertem 106,21 milhões de euros anuais. Esta é uma verba que ajudará nos custos adicionais de abastecimento, no que se refere aos produtos essenciais ao consumo humano, mas também à implementação de medidas a favor da produção agrícola local.

Enquanto açoriano que sou, todas estas siglas e todos estes programas são do meu conhecimento, nem que seja porque estão bem anunciados pelas ruas, em placas de quase todos os edifícios públicos inaugurados, estradas e até em algumas explorações agrícolas. Afinal, a palavra subsídio faz parte do vernáculo insular, entranhando-se mesmo num modo de vida subsidiodependente. Mas isto dá para outro artigo.

Então, como é que uma política agrícola, discutida e harmonizada entre 28 países, afecta uma região portuguesa tão pequena como os Açores? Cenouras e feijões, é a resposta. Algo que temos como garantido; numa ida ao mercado existirão sempre leguminosas, grãos, vegetais e frutas, pois são estes os mais básicos dos alimentos numa dieta humana equilibrada. Pois garantida está a sua existência, não a sua proveniência, e foi isso que me preocupou quando vi à venda nos Açores cenouras vindas directamente de Israel, feijão branco da Argentina, feijão catarino do Canadá e feijões frade e preto do Perú. Isto fez-me questionar todos os programas de apoio agrícola para esta região insular, mas também para outras regiões do país, através do Plano de Desenvolvimento Rural do Continente.

Cenouras israelitas nos Açores.Fui ver a dotação orçamental prevista para a “agricultura” açoriana, e no concernente ao POSEI 2018, os valores fazem jus ao conhecido dito: Açores são terra de vacas. E são. Dos 70,4 milhões de euros de subsídio previstos, 82% são de apoio directo à pecuária, em larga maioria do gado vacum, através de prémios por posse de vacas aleitantes, de vacas leiteiras, ao abate de bovinos, ao escoamento de gado vivo para fora da região, mas também prémios aos produtores de leite por forma a garantir um rendimento mínimo e assegurar a continuidade da actividade leiteira na região. São 36% desta parcela apenas para garantir um rendimento mínimo na actividade. Curiosamente, a parcela alocada à ajuda à inovação e qualidade das produções pecuárias é de apenas 1% – prioridades. Quanto à produção vegetal, a parcela do POSEI é de apenas 17%. O restante 1% diz respeito ao apoio à transformação de beterraba em açúcar branco e à armazenagem de queijo.

A questão que sobressalta é: que política europeia é esta que subsidia fortemente uma actividade económica que sem apoio à continuidade cairia em ruptura, mas que faz importar os mais básicos dos alimentos para uma região que, certamente, tem capacidade para ser auto-suficiente na sua produção?

Não são os solos dos Açores capazes de produzir grãos, legumes e afins? E do ponto de vista ambiental e energético, como se justifica que o transporte desses alimentos de vários pontos do mundo seja melhor que a sua produção local? Aliás, um dos pontos do POSEI, recorde-se, era o fomento da produção agrícola local.

E se dos Açores vem a imagem do leite e do queijo – com a restante fraca produção vegetal local – do Alentejo, por exemplo, vêm as oliveiras, o amendoal e a vinha.

Com a construção do empreendimento do Alqueva – que não é apenas uma barragem, mas todo um investimento estruturante no Alentejo com vista ao seu desenvolvimento económico e social, à criação de emprego e de novas actividades –, também com grandes apoios de fundos europeus – as culturas de sequeiro deram lugar às de regadio, e mesmo as de tradicional sequeiro passaram a regadio, como foi o caso do olival. Não está em causa o grande desenvolvimento económico que a região apresentou após este investimento, e que continua a apresentar, mas sim o cuidado que parece não estar a ser dado aos solos, ao consumo de água e à diversidade biológica da região. As monoculturas, assim como as “mono-produções” de gado, não se apresentam como aliadas dum bom solo. O despacho nº 2515/2017 emitido por várias instâncias do governo português, para além de criar uma rede de cooperação científica e tecnológica para a experimentação agrícola no Alentejo, levanta questões sobre o modelo de regadio da região. Questiona o risco de erosão e degradação dos solos, o perigo da intensificação do cultivo do olival, que, associado ao regadio, intensifica a penetração de pesticidas e fertilizantes nos solos, assim como a acumulação de nitratos nas águas subterrâneas.

Estes são apenas dois pequenos exemplos do que uma política agrícola europeia pode impor, através da sua subsidiação, aos vários países e regiões. Se dum ponto de vista global as coisas podem funcionar bem, com um país a poder escoar a produção dum produto em excesso para outro que não a tem em quantidade suficiente, a nível local esta subsidiação parece vir a troco dum grande impacte e pegada ambiental nessas mesmas regiões.

Subsidiar é também impor o que fazer, é criar regras e restrições ao que o país pode produzir. E quando os mais básicos dos alimentos têm de ser importados, tendo os nossos solos capacidade para os produzir, mas sendo colocados em risco com o excesso de monoculturas e fazendo-os perder capacidade de se regenerarem, que tipo de soberania alimentar resta a uma nação subsidiodependente?

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