Brasil: a ameaça ao ensino e à democracia

No passado dia 28 de outubro, Jair Bolsonaro foi eleito Presidente da República Federativa do Brasil com cerca de 56% do voto popular. Com uma taxa de analfabetismo significativa, mas relativamente baixa para um país em desenvolvimento, perguntamo-nos: terá o Ensino falhado a Democracia? E irá a Democracia responder-lhe numa moeda similar?

No passado dia 28 de outubro, Jair Bolsonaro foi eleito Presidente da República Federativa do Brasil com cerca de 56% do voto popular. Com uma taxa de analfabetismo significativa, mas relativamente baixa para um país em desenvolvimento, perguntamo-nos: terá o Ensino falhado a Democracia? E irá a Democracia responder-lhe numa moeda similar?

Texto: Diana Oliveira*


O Brasil, um país economicamente emergente, mas ainda assim em desenvolvimento, é perseguido por uma reputação de instabilidade social, política e económica que, aliada a algum preconceito, faria qualquer pessoa esperar deste povo uma taxa de analfabetismo mais alta do que de facto o é. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, em 2016, esta era de 7.2%: um número por si só pequeno, mas reflector de 11.8 milhões de pessoas, de 15 anos ou mais.

No entanto, os únicos requisitos do alfabetismo serem o saber ler e o saber escrever descontentam-nos e o pesadelo acresce quando exigimos um pouco mais que isso, como distinguir um quadrado de um círculo ou de um triângulo (65% dos alunos do 5º ano não consegue fazê-lo [1]). Ou ainda, talvez, saber dar ou retirar um sentido a um qualquer texto, talvez de mero carácter informativo, nada de Dostoievkis ou Pessoas: 29% da população brasileira, entre 15 e 64 anos, é-o incapaz. 38 milhões de pessoas são-no incapaz e são classificadas analfabetas funcionais, um termo relativamente recente utilizado para incluir aqueles que, mesmo sabendo ler e escrever, apresentam grande dificuldade em expressar-se por meio de palavras ou números e interpretar situações no seu quotidiano, inclusive filtrar e analisar criticamente informações, tais como notícias ou discursos de candidatos presidenciais.

Não é, portanto, ilógico que este analfabetismo se exiba também politicamente, que gere seres apolíticos e que isso seja um alicerce contorcido de uma realidade sociopolítica desequilibrada. Olhemos para a crescente taxa de abstenção, que atingiu este ano o seu máximo desde 1998: 20.3%. Apesar de o voto ser compulsório, algo abolido em Portugal em 1933, as pessoas continuam a preferir não votar e, à falta de justificação, ser multadas (por norma R$3.50, 4% do salário mínimo) e arriscar a perda de direitos, como o título eleitoral e a solicitação ou renovação do passaporte.

Brasil e a ameaça ao Ensino e à Democracia

Culpar unicamente um sistema de ensino falhado pelo analfabetismo político quando há outros canais para obter informação, como a televisão e o rádio, parece-nos injusto para com as capacidades individuais de cada um. Mas nos dias como os que correm, com luz a incidir em casos escandalosos como o de Cambridge Analytica, como resolver o problema da selecção, exclusão e manipulação de informação? Ainda este agosto, Eduardo Bolsonaro, filho do agora Presidente da República, se encontrou com Steve Bannon, um dos principais arquitectos no catapultar da campanha de Trump.

É ingénuo, também, pensar que só de desinformação se faz um apolítico e que estes podem justificar os 56% do voto popular que deram a vitória a Bolsonaro; a parca identificação do povo com os seus representantes, o aparente baixo volume da sua voz, a corrupção e crime impune, a falta de acesso aos direitos fundamentais também têm o seu contributo. As pessoas não estão só conformadas, estão também cansadas e desesperadas, e as promessas da “coisa” [2] são areia que mandam aos próprios olhos, consequência do esgotamento do Partido Trabalhista.

Alguma dessa areia vem das medidas educativas propostas na sua campanha que comprometem a democracia implementada com tanto esforço e dedicação, como, por exemplo, melhorar a qualidade do ensino abrindo um colégio militar em todas as capitais de Estado, promovendo a Escola à Distância (EaD), que “permite combater o marxismo” associado à ideologia de Paulo Freire, filósofo e pedagogo carioca, e promovendo também a Escola Sem Partido (ESP).

A EaD desvaloriza a presença de um aluno, desde o ensino fundamental, na sala de aula, podendo receber as suas lições online, e aparecendo fisicamente apenas para fins de avaliação, e é tida por este novo Governo como uma forte aposta para os meios rurais para resolver problemas de deslocação dos alunos, quando na verdade se vê nela uma medida de desresponsabilização do próprio Governo em relação ao ensino das classes populares. O corte com a ideologia de Paulo Freire é, então, visível no corte do diálogo dentro da sala de aula, algo que ele estimava. “Não há educação fora das sociedades humanas e não há homem no vazio” [3].

Já a ESP – que pode até soar bem, pois o tom de sala de aula não deve ser o de pregação, mas sempre o de discussão aberta sobre um qualquer tema – é mencionada como a “Lei da Mordaça”. Para além de ser uma proposta que visa impedir conversas políticas na sala de aula, nas vésperas das eleições passou também a excluir do diálogo noções como “género”, “orientação sexual” e “ideologia de género”. Inclusive criticada pelo Alto Comissariado para os Direitos Humanos, que vê nesta proposta ameaças aos direitos humanos básicos, não só porque “a discussão sobre género é fundamental para prevenir estereótipos de género e atitudes homofóbicas”, mas também porque a proposta “permite que quaisquer práticas pedagógicas dos professores sejam consideradas doutrinação”, impactando directamente na liberdade de expressão dos docentes, e apresenta ainda o risco de impedir “o desenvolvimento crítico nos estudantes e a habilidade de reflectir, concordar ou discordar com o que está exposto nas aulas”.

Enquanto isto, o Brasil não tem um ensino público de qualidade, nem tampouco tem, ou alguma vez teve, um programa e metas curriculares nacionais, e a queima de 200 anos de História com o incêndio do Museu Nacional do Rio de Janeiro só parece metaforizar, irónica e tristemente, a relação lamentável deste povo com a sua cultura e a sua educação.

Estas medidas educativas são tão descabidas para uma visão de extrema direita como era descabida a proibição de educação de escravos, nos EUA: a literacia era ameaça para a instituição da escravatura pois facilitava o conhecimento de revoluções de escravos bem-sucedidas, como a do Haiti, e permitia melhor acesso a informações sobre rotas de fuga.
Como a história nos conta, isso nada impediu, só atrasou; um dos propósitos principais da literacia adulta é fornecer meios de emancipação e é também por isso que um país não deve esperar por uma reforma geracional para aumentar as taxas de alfabetização, mas estender a educação a todas as faixas etárias, de forma a também diminuir a exclusão social de que possam ser alvo por falta de literacia.

O povo brasileiro não deve ter só medo do discurso homofóbico, misógino e genocida cujo microfone é aquela “coisa”, mas também do tratamento que o sistema educativo vai receber enquanto ela estiver no poder e que pode emprisionar e moldar cérebros, levando o Brasil, não uns meros passos atrás, mas uma maratona inteira.


[1] Indíce de desenvolvimento da educação básica (ideb)
[2] Referência popular a Bolsonaro, criada durante a sua campanha presidencial
[3] “Educação como Prática da Liberdade”, Paulo Freire
Imagens do Cartoonista das Cavernas

Leave a Reply