Um safe space dentro do Técnico: A história do QueerIST

Autoria: Francisco Fernandes (LEIC)

Com 7 anos de história, o QueerIST é um dos núcleos universitários LGBTQI+ mais antigos de Lisboa. Em conversa com o presidente da Secção Autónoma (SA), Afonso Santos, bem como membros atuais e fundadores, explorou-se o seu papel na comunidade estudantil, a inusitada história da sua formação e o futuro da sua atividade no Instituto Superior Técnico (IST).

A jornada do QueerIST tem início a 6 de dezembro de 2017, data da sua fundação em Assembleia Geral de Alunos (AGA) da Associação dos Estudantes do IST (AEIST). No contexto da Universidade de Lisboa, é precedido apenas pelo Letras Fora do Armário[1], grupo queer da Faculdade de Letras. O núcleo surge, nas palavras de Afonso Santos, com o intuito de ser um “safe space para as pessoas queer” num ambiente que, como descreve, não é o mais propício ao conforto dos membros desta comunidade. A acrescentar a esta missão de acolhimento, a SA procura ainda educar acerca das necessidades da mesma e zelar pelos seus direitos perante a comunidade estudantil e o IST.

Um dos primeiros desafios aos quais o núcleo fez frente surgiu imediatamente no momento da sua formação. O anúncio da criação do núcleo, publicado no Facebook[2] pouco antes da sua regularização como SA, foi recebido com bastante aversão, inclusive vinda de pessoas queer, aponta Dani Santos, colaboradora do QueerIST desde 2018. Numa AGA particularmente concorrida, contando com 125 presentes, 27 alunos posicionaram-se contra a criação da SA e 11 abstiveram-se, tendo esta sido a votação mais renhida desta Assembleia[3]. Segundo Dani, verificou-se uma afluência crescente à AGA nos momentos que antecederam a votação, tendo alguns alunos assistido aos trabalhos fora da sala na qual esta se realizava. “Fomos aprovados por apenas três votos”[4] explica o presidente. “Tivemos um núcleo que eu acho que está desativado agora, […] um núcleo de estudantes católicos que foi lá […] para ir votar contra a criação do núcleo”, alega ainda. Embora a ata registe que a presença deste grupo de estudantes se devesse ao facto de a regularização do seu núcleo, a Agape, ter sido um dos pontos da ordem de trabalho para essa Assembleia[3], os resultados da votação sobre a criação do QueerIST contaram com uma taxa de votos contra acima do comum.

Mesmo considerando estes percalços, Afonso Santos não acredita que tenha existido em momento algum uma relação hostil entre a SA e as instituições nas quais esta se enquadra, tanto a AEIST como o Técnico. Qualifica esta ideia, no entanto, apontando que uma proposta de implementação de casas de banho neutras não recebeu parecer positivo da faculdade. Similarmente, de acordo com Dani Santos, o próprio nome do núcleo foi alvo de apreensão, devendo-se ao facto de se tratar de um estrangeirismo e, anteriormente ao seu uso corrente por parte da comunidade, ser um termo de cariz pejorativo, pelo que foi necessária uma “discussão cuidadosa” junto da faculdade, marcando assim uma relação que, nas palavras do presidente, “nem sempre foi fácil”.

Independentemente da sua posição relativa aos órgãos nas quais se insere, a importância do núcleo pode ser medida naquilo que este fornece aos estudantes. Para Afonso Santos, encontrar o QueerIST foi para si “descobrir um sítio em que eu me sentia feliz, um sítio que me trazia um bocadinho de esperança”, contrastando com o ambiente de isolamento que é assinalado por alguns membros da comunidade estudantil. A Dani Santos, o núcleo permitiu “descobrir a sua própria identidade queer”. Miguel Fernandes, coordenador da Equipa Recreativa, salienta ainda a função da SA como espaço social e lugar de convívio.

“Achamos que a comunidade em si às vezes precisa um bocadinho do nosso apoio”, salienta, pois “vimos algumas atitudes que não são muito corretas” no seio da comunidade estudantil. Ao longo dos anos, este apoio tem surgido em várias frentes, entre as quais: distribuição gratuita de preservativos nas Secções de Folhas, iniciativas educacionais como o podcast Zero Preconceitos, tertúlias e debates culturais, eventos anuais na forma das Jornadas Arco-Íris, uma biblioteca focada em literatura queer, participação na comissão organizadora da Marcha do Orgulho de Lisboa (MOL)[5], eventos recreativos como churrascos e, mais recentemente, uma banca no Arraial do Técnico.

Embora uma grande parte destes projetos datem dos momentos iniciais do núcleo, nem todos duram até hoje, e outros sofreram largas transformações. Um exemplo levantado é a Biblioteca, que viu o seu regime de funcionamento passar de um serviço presencial a um atendimento exclusivamente online. Este facto deveu-se à perda daquilo a que os colaboradores se referem coloquialmente como “a sala do Queer”, aquando da reestruturação dos espaços da Associação dos Estudantes levada a cabo em 2022. A perda desta sala, que até aí tinha servido de sede para o núcleo, afetou as suas atividades “de forma bastante severa”, explica Afonso. “Era mesmo o centro desse apoio que conseguíamos dar. A sala estava quase sempre aberta, as pessoas sentiam-se confortáveis lá, há várias histórias de pessoas que no meio do dia tiveram de ir para lá por se sentirem mal”. Embora entenda a decisão tomada, o presidente afirma que, à luz da adaptação que esta exigiu, a vigorante alternativa ao espaço físico “nunca vai ser a mesma coisa” e acrescenta que perdura uma “guerra […] com a Associação dos Estudantes, e por extensão com o Técnico, para tentar ter esse espaço”. 

A perda obrigou a uma transformação significativa dos métodos de trabalho de um núcleo que, incidentemente, estava a passar pelo seu próprio período de transição. A representação física da missão de providenciar um safe space deu lugar a uma maior presença da Equipa Recreativa, responsável por instituir e manter esse espaço na forma de atividades como churrascos, pub crawls e “Quartas Queer”, sessões presenciais de convívio abertas a todos os membros da comunidade estudantil. Por outro lado, a Equipa Cultural manteve uma coluna de recomendação de arte queer, projeto que perdura, embora de forma intermitente, desde 2021.  Afetada de forma particular face à adversidade que o núcleo encontrou, a Equipa da Biblioteca deu continuidade ao seu trabalho, assegurando o acesso aos seus recursos através de um sistema de requisição online. No entanto, até a manutenção desta atividade regular chegou a estar em causa. No contexto da reivindicação de eventuais medidas a serem tomadas no espaço da faculdade, com vista à missão do QueerIST, Afonso Santos explica que “o núcleo não esteve na sua situação mais saudável no passado e estamos a recuperar o que fazíamos. […] Não significa que vamos desistir, e está nos nossos planos voltarmos a ter esse objetivo, mas neste momento estamos a fazer o que podemos.”

Paralelo a tudo o que desenvolveu nos dois pólos do IST, o núcleo tem sido também uma parte significativa da comissão de organização da Marcha do Orgulho de Lisboa[5]. A marcha, que acontece desde o ano 2000 assinalando em junho o mês do orgulho LGBTQI+, contou com mais de 25 mil participantes em 2022.  A contribuição do núcleo, explica o presidente, é um dos pontos altos do seu ativismo. “Pediram-nos para ser a tesouraria deles, dinamizar tudo o que acontece.” A Equipa da Tesouraria da SA é responsável pela requisição de serviços de emergência e manutenção do inventário da marcha, pelo que tem a seu encargo uma parte substancial da logística necessária para que esta se realize. “Acho que é um dos nossos maiores motivos de orgulho.” 

Graças àquilo que Afonso Santos descreve como “um bocadinho de sorte, mas um bocadinho de trabalho também”, o núcleo encontra-se hoje numa posição de ambição e crescimento. Atribui esta recuperação à reestruturação da direção que teve lugar há um ano, e ao trabalho árduo da mesma, em conjunto com os colaboradores do núcleo. “Nunca perdemos um churrasco, nunca perdemos um pub crawl e nunca deixámos de cá estar”. Como tal, com vista ao futuro próximo, o presidente enumera vários projetos vindouros, em particular o regresso da presença física da biblioteca no 2º período do ano letivo de 2024/2025, embora restrita a um horário específico. Aponta também uma maior escala para as atividades lúdicas do núcleo e uma intenção redobrada de colaborar com outros núcleos LGBTQI+ de Lisboa. 

Para lá do imediato, o QueerIST procura ainda estar mais presente na esfera política e social dentro do IST, “especialmente nos tempos que passam”, acrescenta Afonso Santos. “Podemos trazer coisas outra vez como as Jornadas Arco-Íris, já pensámos em reativar mais o nosso senso ativista, mas não é sempre fácil fazê-lo”, explica. “É esse o nosso objetivo. Estarmos cá, continuarmos a fazer o trabalho que fazemos, que já não é pouco”.

Referências:

[1] Letras Fora do Armário – https://letrasforadoarmario.blogspot.com 

[2] Post do Facebook de Fundação – https://www.facebook.com/groups/5494670979/permalink/10155004360830980/ 

[3] Ata da Assembleia Geral de Alunos de 6 de dezembro de 2017 – Ponto 4.

[4] Estatutos da AEIST – Artigo 13, Parágrafo 1, Alínea f.

[5] Marcha do Orgulho LGBTI+ de Lisboa: Comissão Organizadora

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