Os Almeida Romão: Jantar de Natal

Autoria: André Santos (MEEC), Ângela Rodrigues (LEFT), João Matta (LEMec), Sara Viegas (LEEC)

Com a chegada da véspera de Natal, chega também o aguardado jantar da família Almeida Romão. Carlos e Célia, anfitriões deste ano, tinham passado o dia a preparar a refeição, sob vigia de Ângelo, irmão de Carlos que se encontrava a recuperar da grave lesão que tinha sofrido misteriosamente durante o final do mês de maio. Íris, a filha mais nova do casal, corria pela casa com o coelho de estimação do tio ao colo. Salvador, o gémeo mais novo (por dois minutos) passava o seu blazer novo a ferro. Já a irmã, Júlia, estava há duas horas a tentar que o seu eyeliner ficasse uniforme. Para além dos residentes, faltavam ainda três membros essenciais: Maria Beatriz, irmã mais nova de Célia, que obrigava a família a tratá-la por “Triz” e “fazia vida como artista”; a avó Adelaide, que não saía de casa sem a sua cruz ao pescoço e o terço no bolso; e o viúvo avô Armindo, pai de Célia e de Maria Beatriz, que tratava toda a gente por “camarada”. 

Não iam estar presentes o avô Sebastião, que ainda não tinha resolvido os seus assuntos com a família real inglesa, e a avó Maria Augusta, que falecera há poucos meses atacada por corvos que a confundiram com um espantalho, enquanto apanhava girassóis. A sua falta era muito sentida pelo seu marido, que frequentemente mencionava a sua “doce” Mari Gu. 

À medida que a tarde avança, os convidados vão chegando, mas nota-se a falta de Armindo.

– Só falta o meu pai, deve ter tido dificuldade em arranjar autocarro hoje. Já sabemos como é que ele é, não gosta de trazer o carro.

Quando finalmente chega, os Almeida Romão sentam-se à mesa para começar a ceia. Assim que Armindo se encosta à cadeira, solta um grito de dor. Alarmada com o sofrimento do pai, Célia pergunta: 

– O que foi agora, pai? Outra vez o quisto?

Não era tema desconhecido para a família. De há seis anos para cá, ao sentar-se na cadeira, Armindo queixava-se de um quisto presente na sua lombar, que o impedia de se sentar direito.

– Um dia destes recebo a carta. Já não deve faltar muito, disseram-me que a lista de espera era pequena…

– Oh Armindo, tem de desistir disso… o senhor não consegue sentar-se e recusa-se a ir ao privado, onde lhe tiram isso no dia.

– Ao privado? Adelaide, desculpe, mas acha que quero gastar seis meses de reforma para tirar isto? Posso esperar pelo hospital público, não se preocupe. É só um quisto!

– Que exagero, eu ainda na semana passada fui aos Maias tirar sangue e só paguei 250 euros, não vejo o seu problema…

Claramente desconfortável na cadeira, Armindo emitiu apenas um som de desprezo perante o comentário de Adelaide. A sua costela revolucionária não permitia que aceitasse um ponto de vista tão descabido; quem é que daria dinheiro a quem faz negócio da saúde?

– É que sabe, ainda por cima com a falta de médicos no público, quem sabe quanto tempo ainda vai ter de esperar… – Adelaide tocou na ferida. Ou talvez no quisto. Não só tinha proposto que Armindo fosse ao privado, como insultou o público. 

– Adelaide, não diga isso! Há médicos suficientes, mas deve haver pessoas com problemas maiores a resolver. Isto nem me incomoda, já me habituei a sentar assim! – disse Armindo, quase com a cara dentro do prato de sopa, a evitar tocar com as costas na cadeira.

– Tem de concordar Armindo, se vai estar à espera do público, nunca mais tira isso. É assim, os médicos vão todos embora… – O tio Ângelo não podia deixar passar a oportunidade de criticar algo. Desde que partira o dedo do pé que trabalhava como comentador político na sala de estar dos Almeida Romão.

Depressa toda a família se envolveu na discussão; Maria Beatriz e Júlia do lado do avô, Salvador e Ângelo do lado da Avó. Célia e Carlos apenas observavam, acenando por vezes as cabeças. Íris estava distraída com o estranho formato do seu presente. Armindo defendia que havia médicos suficientes e que tinham boas condições de trabalho; Adelaide argumentava que não só os médicos preferiam emigrar, como o sistema de educação não conseguia dar resposta à procura. Vendo a confusão que o assunto estava a gerar e aproveitando o tema da educação, Triz pergunta a Íris:

– Então Íris, como é que está a correr a escola?

A pequena, que se tinha levantado para analisar os presentes debaixo da árvore, virou a sua cabeça rapidamente e olhou para a tia com um ar inquisitivo.

– Uhm? – fez ela.

– Como está a correr a escola? – repetiu Triz.

– Uh, está a correr bem. – disse ela, soltando um suspiro – Mas a professora faltou outra vez esta semana… Ainda não aprendemos nada sobre os animais.

– Sempre a mesma coisa, não conseguem arranjar um professor a tempo inteiro. – queixou-se Carlos – Já falaste com a escola? – perguntou à mulher.

– Claro que já falei com a escola. – respondeu Célia – Eles dizem que estão a fazer todos os possíveis para encontrar professores para todos os alunos, mas ainda vão ficar sem aulas durante algum tempo.

– Trinta mil alunos, filha! – exclamou Armindo, batendo com a mão na mesa e assustando Adelaide, que por pouco não entornou o copo de vinho que estava a beber – Trinta mil alunos, disse-me o meu camarada no café ainda ontem. Ele trabalha no sindicato e eles fizeram as contas todas!

– Pai, ainda no outro dia pediram-me no escritório para fazer esse levantamento, e não chegam a dois mil e quinhentos o número de alunos a quem lhes falta um professor.

– E a tua filha é um deles!

– Sinceramente, Célia, tens de apertar com o Diretor da escola sobre isso. – reclamou Carlos – A Íris não pode estar sem aulas.

– Recordo-te que no ano passado também faltavam professores. Pedi-te que tratasses disso, não trataste. Este ano fui eu a chatear a  direção da escola, a coisa melhorou ainda um pouco.

– Não melhorou assim tanto, e tu tinhas prometido que irias resolver tudo! – retorquiu ele – Passa-me aí o pão.

– Estas coisas levam tempo, e tu sabes disso. – disse Célia, esticando o braço para passar o cesto do pão ao seu marido – E mais, eu e a Associação de Pais estamos mais focados em preparar os alunos para as provas de aferição e melhorar-lhes as notas.

– Porque isso decerto que será fácil de fazer se eles nem aulas tiverem. – gracejou Carlos – Ficam em casa a estudar, não?

– Eu também gosto de ficar em casa. – disse Íris – Posso falar com o tio Ângelo sobre animais. Ele tem um coelhinho!

– Talvez devessem só pôr a Íris num colégio e acabar com o assunto – sugeriu Ângelo – As escolas públicas estão cheias de más influências hoje em dia.

– De que estás a falar? – perguntou Carlos confuso.

– Não é óbvio? Estão claramente a tentar lavar a cabeça aos miúdos, enfiando-lhes propaganda pelos ouvidos adentro. Não, um bom colégio acabava com esses problemas todos. Aulas, notas… e educavam uma portuguesa de tradição!

– Não é nada disso, Ângelo… A única coisa que se tem de fazer é melhorar as condições dos professores, e contratar mais. É uma solução simples!

– Não foste tu que passaste anos a fio a dizer que não havia dinheiro para isso? – perguntou Célia.

– Não tenho memória disso.

– Por acaso lembro-me de dizeres isso! – notou Ângelo.

– Também. – acrescentou Armindo.

– Isso não tem cabimento nenhum, eu nunca diria tal coisa. Há sempre dinheiro para evitar que os nossos professores emigrem.

Aproveitando a deixa da educação, Salvador, que até então tinha estado a assistir à conversa de modo passivo, ajusta o seu blazer acabado de passar, preparando-se para intervir:

– Já que estamos a falar sobre educação, estive a falar com o Bernardo e com a Constança e vamos enviar candidaturas para mestrados no estrangeiro. Estivemos a ver umas universidades na Alemanha e…

– E fazes muito bem, ainda me lembro das loucuras nos meus dias de Erasmus. As coisas que eu fiz, mas como se costuma dizer, o que se passa em Erasmus, fica em Erasmus – corta Triz entusiasmada, enquanto conserta o cabelo. Depois de um dia tão longo como a véspera de Natal, é normal que algumas das madeixas roxas da franja já estejam misturadas com o resto do cabelo.

– Como eu estava a dizer – continua Salvador, sem antes lançar um olhar de desaprovação à tia, “às vezes parece uma criança”, pensa – ficámos agradados com o plano de estudos, há oportunidades de estagiarmos como Trainee Business Analysts em grandes multinacionais, há parcerias que nos permitem estudar um ano na Alemanha e outro noutra universidade parceira. Lá fora, há um mundo de possibilidades, aqui terminamos o curso e, para ganhar o que começamos a ganhar lá, teríamos de trabalhar muitos mais anos. 

– Filho, tens mesmo a certeza? As condições de vida para os jovens vão melhorar, ainda no outro dia, o filho do patrão começou a trabalhar lá na empresa com um salário melhor que o meu! O teu pai sabe como é, quando ele estava na administração, falou-se durante muitos anos sobre aumentar os salários, e até fizeram algumas subidas, mas… – comenta Célia, olhando para o marido, como se pedisse ajuda.

Suspirando, Armindo ajeita-se na cadeira e junta-se à conversa, relembrando os tempos em que esteve emigrado em França: 

– Salvador, a vida de emigrante não é fácil, que o dissesse a minha querida Mari Gu, que foi emigrante mais tempo que eu. Ai, Mari Gu, se estivesses aqui… as coisas que passámos, nós e outros como nós fizemos o trabalho que ninguém queria fazer, trabalhámos como porteiros, domésticos ou nas obras. A verdade é que não tínhamos mais educação, só procurávamos uma vida melhor do que a que tínhamos aqui, para garantir uma vida melhor para as nossas filhas.

Apesar de já terem nascido no Alentejo, depois dos pais terem regressado de França, Célia e Beatriz estavam cientes das dificuldades passadas por Armindo e por Mari Gu.

Revoltado, provavelmente devido às dores no dedo do pé, Ângelo juntou-se à conversa:

– É muito difícil ser-se emigrante, é. Nota-se! Aqui em Portugal chegam e têm direito a tudo, subsídio para isto, apoio para aquilo. Têm tudo e os portugueses matam-se a trabalhar, pagam impostos para que os imigrantes venham e usem tudo como se fosse deles. É uma vergonha. VERGONHA! De quem é que acha que também é a culpa de ainda não ter retirado o quisto, Armindo? Eles vêm para cá, usam os nossos serviços, tiram os quistos deles e para nós nada. Como se não bastasse, vêm causar insegurança. Ainda no outro dia vi um vídeo sobre as redes criminosas que foram desmanteladas no último ano. Quem é que acham que estava por trás de todas? Pois, eles! A culpa é a permissibilidade deste país e da Europa em geral, deixamos entrar todos sem critério e depois admiramo-nos que a criminalidade aumente e que o país esteja cada vez pior. 

– Ele fala fala, mas está desde maio em casa com um dedo do pé partido… Quem é o subsidiário, afinal?- pergunta Armindo, escandalizado.

– E ainda não contaste como é que isso aconteceu. – comenta Salvador. 

Triz olha de modo suspeito para Ângelo, lembrando-se do choque que apanhou no concerto de uma certa pop star.

– Tio, já te dissemos que não deves acreditar em tudo o que vês nas redes sociais. Achas que as pessoas não têm direito a procurar melhores condições de vida, se não as conseguem ter no seu país? A situação de muitos migrantes não é assim tão diferente da do avô Armindo e da avó Mari Gu. Além disso, não te incomoda que o Salvador queira ir viver para o estrangeiro, mas se vêm para cá, de repente são só criminosos e arruaceiros. Ou só te incomodam consoante o país de origem?- responde Júlia a começar a ficar irritada com o tom do tio. “Quem o ouve até pensa que tem alguma ideia original, sem serem estes populismos vazios, mas é só um pequeno ra-”, pensa. 

– Realmente, irmão, isso não te faz bem. Compreendemos que não tens nada para fazer aqui em casa e que a tua maior companhia é uma criança de sete anos, mas sei lá, lê um livro, reduz o tempo de ecrã de 8 para 3 horas, toca em relva ou vê aquele programa do fact check.

– Relva! Mano, mano, como é que são os animais na Alemanha? – pergunta Íris muito animada – Podemos ir ao Jardim Zoológico amanhã? Quero ir ver as girafas.

– Não, amanhã é Natal, está fechado. Vá, acaba de comer a sopa para depois ires abrir as prendas – diz Carlos, numa tentativa de acalmar a filha mais nova e voltar à discussão.

– Ai, já é quase meia noite e ainda não falámos com o vosso pai! Carlos, onde é que tem a máquina dos fax? Já sabe que o seu pai não se dá bem com as novas tecnologias, no ano passado foi o que foi. 

Flashback do jantar do ano anterior

– Sebastião, está a ouvir-me?

– Estou? Adelaide? ESTOU?! – ouve-se do outro lado uma voz gasta e com um leve sotaque britânico, fruto dos anos passados em Inglaterra.

– Não meta a cara encostada ao ecrã, querido. 

– Estão a ver-me?

– Pai, olhe para o ecrã, para conseguir ver os seus netos. Quantos mais anos vai ficar aí?

– Sabe que sou amigo da rainha, não posso abandonar a monarquia assim, Carlos. 

– Mas a rainha já morreu há mais de um ano…

Fim do flashback

– Por falar em familiares que estão emigrados ou longe, o que é que tens sabido dos nossos primos que trabalhavam na tua empresa e foram para a sucursal na Madeira? – pergunta Triz à irmã.

– Nada – respondeu Célia displicentemente – eles trabalham noutra sucursal.

Com um torcer de lábios insatisfeito, Triz pressiona:

– Mas tens a certeza? É a mesma empresa, afinal… toda a gente sabe que os mexericos são algo difícil de conter no ambiente de trabalho.

– Não se estivermos separados pelo oceano. O Atlântico é muito eficaz nesse sentido.

– Oh, por favor! – exclama a irmã. – Vais-me mesmo dizer que não sabes nada sobre o escândalo em que eles estão envolvidos? Nem que medidas é que a empresa vai tomar para os castigar?

– Se algo ilegal aconteceu, o Ministério Público é que ditará as medidas de coação – disse calmamente, ajeitando o guardanapo no seu colo.

– Nem o que é que a empresa está a pensar fazer para evitar a corrupção no futuro?

Célia pausou. Inspira e explica: 

– Todos os anos, temos um workshop de ética e profissionalismo; suponho que este ano será reforçada a obrigatoriedade da presença na sessão.

Antes que Triz a pudesse continuar com a sua diatribe, Célia acrescenta:

– Para dizer a verdade, acho que a empresa tem-se distanciado do assunto. Se alguém cometeu um crime, agiu de maneira independente e a empresa não esteve envolvida nisso. Tanto que, se não fosse pelas notícias eu nem saberia nada sobre isso, nem que os nossos primos é que são os arguidos. Como não presto muita atenção aos jornais, nem sei bem os detalhes do escândalo.

– Uau! Inacreditável! – revirou os olhos, a cara toda vermelha (ninguém sai impune depois de três copos de vinho). – Não sabes nada, uma ova! Toda a gente ouviu falar do tal diamante que encontraram no escritório do-

– Hhhhmmmm! Que deliciosas estas espetadas com molho de amendoim! – interveio Carlos – foste tu que as preparaste, Triz? Que entrada mais encantadora!

Arreliada por ter sido interrompida, mas agradada pelo elogio, Triz resmunga um agradecimento. Carlos aproveita então a deixa para mudar habilmente de assunto. Normalmente, até é ele que é vítima deste tipo de interrogatório. 

Ping, ping, ping!

– Ah, é o forno! – levanta-se Célia. – O bacalhau está pronto.

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