Autoria: Francisco Nogueira (MECD), João Carranca (LEEC)
Na Biblioteca Municipal Central, Saramago devorava livros. Estudava os clássicos e os modernos com uma avidez sem precedentes. Chegava depois das aulas no liceu e lá ficava até altas horas da noite. Era um caso raro, o fascínio literário que possuía, especialmente numa pequena vila como Azinhaga. Foi, no entanto, com os avós e não com os livros que aprendeu a ser pessoa. Gente de poucos estudos, dedicada ao trabalho e à vida do campo, eram aos olhos do jovem Saramago, os mais sábios. Nas poucas e simples palavras, nos maneirismos, no trabalho dos seus avós, Saramago via todo o conhecimento do mundo. A partir deles, constrói o núcleo duro da sua obra. No entanto, ambicionava ir além da sua terra, dos seus avós. Pretendia ir para Lisboa.
Enquanto jovem adulto, nunca se libertou da amargura de não lhe ter sido permitido prosseguir os estudos na universidade. Sentia-se cortado do mundo a que julgava pertencer. Apesar de ser o seu ganha-pão, o trabalho como serralheiro estava longe do que idealizara. No entanto, foi talvez por não ter saído da sua terra, que, em 1980, já com 58 anos e sendo um completo desconhecido do público, deu vida aos camponeses do Alentejo como mais ninguém em toda a história literária deste país. Cada homem, cada mulher, cada marca, cada miséria, cada violência, cada injustiça tem lugar na narrativa do seu primeiro grande sucesso, “Levantado do Chão”.
Ao longo dos séculos, ocasionalmente, o tom azul manifesta-se nos olhos dos herdeiros do apelido Mau-Tempo, sem aparente razão. À parte disto, trata-se de uma banal família de camponeses, tão miserável, tão ignorante, tão habituada à enxada e às marcas na pele como tantas outras. Ao longo de século e meio e de três regimes políticos, acumulam em si todas as misérias do mundo, cada mudança de regime trazendo consigo promessas nunca cumpridas. Aos 40 anos, o patriarca Mau-Tempo acumula o cansaço de 100 vidas na pele enrugada e queimada das longas horas de exposição diária ao sol. Mal sabe ele que já ultrapassou a longevidade da maioria dos colegas de ofício. Vão morrendo um a um à medida que se renovam as gerações, sem qualquer acrescento, sem qualquer progresso. Mera repetição. A mesma vida, as mesmas dificuldades, o mesmo destino, a mesma noção do mundo. Um ciclo inquebrável.
É precisamente esse o seu ponto. Nada muda no Alentejo, seja ele de Salazar de Arriaga ou D.Carlos I. Saramago sabia disso por ter vivido lá tanto tempo, e talvez por isso lhe tenha decidido dar voz.
Por esta altura, Abril já é um facto consumado e o PREC um passado distante, assim como os 8 meses em 75 em que Saramago ditou os destinos do Jornal de Notícias. Foram meses polémicos, mas, no entanto, decisivos. É depois desta experiência que José Saramago decide fazer aquilo que até aqui tinha evitado: dedicar-se completamente à escrita. “Levantado do chão” era um projeto antigo, desde há muito pensado. O que se segue, no entanto, resulta de uma imersão total no processo criativo da escrita.
A carreira do poeta-prosaico sobe de nível a um ritmo estonteante. Produz como nunca antes na sua vida. Mundos, histórias e personagens saídos de sonhos febris detalhadamente construídos.
Quando ganha o Nobel, Saramago tem já dentro de si todo um Universo. Mil almas de mil mundos diferentes. Tratava delas com carinho depois de as trazer ao mundo. Gostava das suas criações, pintava-as com os tons mais vivos que tinha na sua gaveta, onde guardava pequenos papéis com ideias, frases soltas ou meras palavras sem sentido. Uma Morte tão viva e humana como as almas que ceifa; um funcionário do arquivo do Registo Civil que procura fugir à solidão colecionando ficheiros dos vivos e dos mortos; um professor de história que se vê duplicado; um tal Cipriano Alvor que não se adapta à modernidade, um Jesus Cristo tão confuso e perdido como qualquer comum mortal; e, claro, a voz desconhecida que reserva os seus comentários para os momentos mais oportunos.
Com a velhice, Saramago parece enfrentar a perspectiva de morrer sem complicações, sem medo, sem negação. É ele, afinal, o mestre da natureza humana, e a natureza humana contempla também a morte. É o fim natural e inevitável de um ciclo. A verdade é que quando morre, em 2010, já possui o estatuto de maior romancista da história deste pequeno país, não unânime, claro, mas isso nunca seria. Não que isso lhe interessasse muito. No final, conheceu este mundo, criou mil outros e deixou obra. Pouco mais teria desejado com certeza.
“O meu tempo chegou ao fim, lembra-se de eu lhe ter dito que só tinha uns meses, Lembro-me, Pois é isso, acabaram-se. Ricardo Reis subiu o nó da gravata, levantou-se, vestiu o casaco. Foi à mesa-de-cabeceira buscar The God of the labyrinth, meteu-o debaixo do braço. Então vamos, disse, Para onde é que você vai, Vou consigo”