Autoria: João Carranca (LEEC)
A história de Itália entrelaça-se profundamente com a história da Igreja católica. Durante cinco séculos consecutivos, até 1979, todos os papas sem exceção foram originários de territórios que constituem hoje a nação italiana. O estado Italiano sempre teve uma relação complexa com o Vaticano, em particular no tempo do fascismo de Mussolini. A linha que separava uma coisa da outra era ténue, para não dizer mesmo transparente. Roma em particular, tem uma relação quase simbiótica com aquela que é uma das organizações, senão mesmo a organização mais impactante da história da humanidade, para melhor ou para pior.
Federico Fellini nasceu e cresceu em Roma, dentro de uma família como tantas outras à época: católica e conservadora. A vida, no entanto, levou-o para um ofício e para uma época em que a crítica ao conservadorismo social inevitavelmente associado ao Santo Papa e seus subordinados era intensa e violenta. Fellini foi um realizador ousadíssimo. Certamente que nenhum alto oficial do Vaticano se divertiu com os seus irmãos e irmãs a ver La Dolce Vita ou Amarcord num jardim ao pé da Basílica de São Pedro, mas, apesar disso, o mestre italiano lida com a Igreja de forma muito única nos seus vários trabalhos, diferente daquilo que a maioria dos seus colegas faziam à época.
A Igreja, centralizada no alto comando do Vaticano, está de uma forma ou de outra, quase continuamente presente em toda a sua obra. O único outro grande tema com uma presença tão insistente é mesmo o fascismo. Muitas vezes, as alusões são feitas de forma subtil ou circunstancial, noutras como em 8 ½ tomam uma forma quase mística ou em certos momentos sobrenatural e noutras ainda como em Amarcord são peças centrais da narrativa.
Nem sempre o retrato feito é negativo e, mesmo quando é, raramente é feito uso de violência física ou psicológica para estabelecer uma crítica. Fellini prefere sempre a subtileza e, em especial, a sátira, a sua maior e mais refinada ferramenta artística. De facto, na década de 60, Fellini, enquanto pioneiro e principal impulsionador do surrealismo no cinema, desenvolve uma mestria ímpar no uso da sátira social e cultural que atinge o seu pico nos anos 70. Esta subtileza não significa de forma nenhuma conformismo nem sequer alguma forma de aceitação. O ataque está lá e é dilacerante, a diferença está mesmo na apresentação.
Fellini não sente a necessidade de ir buscar ou fazer alusão aos crimes mais violentos passados, como a Inquisição ou a corrupção sistemática presente a todos os níveis da Igreja. Todos os retratos têm como limite a infância do próprio realizador e focam-se quase exclusivamente no modus operandi da época. Numa das suas obras primas mais tardias da sua carreira, Roma, de 1972, Fellini produz, nos últimos 20 minutos do filme, na minha opinião, a mais extraordinária sátira a todo o aparato católico da história do cinema. A cena abre com uma mansão escura, degradada, mobilada com peças de luxo talvez do século 17 ou 18, todas tapadas com mantos pretos. No meio da sala mais alta e imponente, está uma senhora, também ela toda vestida de preto, esperando ansiosamente a chegada de alguém. Esse alguém é uma caricatura de Alfredo Ottaviani, um dos mais importantes e influentes cardeais de Roma à época. A eles juntam-se um conjunto macabro de personagens aparentemente desfasadas no tempo, alguns claramente pertencentes à era moderna, mas outros que se vestem e comportam como condes e nobres do tempo dos descobrimentos. O que se sucede é totalmente surreal: um “fashion show” para altos oficiais do Vaticano presidido pelo próprio Ottaviani que vai ficando progressivamente cada vez mais ridículo e febril ao som de uma das melhores composições de Nino Rota, adaptada ao órgão.
Começa com pares de freiras numa espécie de passarela a mostrar versões inovadoras da sua vestimenta clássica, alegadamente adaptadas com propósitos práticos, como ser mais confortáveis em sítios com pior circulação de ar, mas rapidamente progride para designs dignos de uma dose e meia de LSD, como a dupla de cardeais “Mais rápidos para o céu!” armados com patins de ginástica artística e uma coreografia que merece os aplausos das bancadas cheias de bispos, padres e freiras ou as “irmãs da tentação do purgatório” vestidas com versões justas e eróticas da farda habitual. A certa altura, começam a aparecer modelos que nada têm a ver com roupa, como a dupla de padres montados em bicicletas para “As aventuras campestres!” ou peças sem modelos para as apresentar como a farda cerimonial de bispo com luzes de natal, uma espécie de “casulo católico” – a melhor descrição que consigo arranjar – feito dos “melhores tecidos” para as temperaturas mais frias, uma virgem Maria saída diretamente de um filme de terror e um altar cheio de esqueletos que acenam ao público. A narração do “show”, inicialmente séria, vai-se desvanecendo até praticamente desaparecer, deixando de dar títulos às peças na montra papal. Todo o espetáculo culmina com uma aparição quase messiânica do próprio papa que, do topo de uma montagem teatral luminosa, acena e sorri para um público ajoelhado em êxtase dizendo repetidamente “Volta por favor!” e “Volte para nós!”. A crítica ao atraso social, cultural e operacional e ao envelhecimento da Igreja é de tal forma gritante que o próprio Vaticano não resistiu a censurar uma das sequências da cena. A verdade é que Fellini era ele próprio assumidamente católico, por muito estranho que pareça. Eu próprio pensei durante algum tempo que não podia ser verdade, que a contradição era demasiado clara. Afinal, nenhum crente fiel ao catolicismo poderia alguma vez conceptualizar e produzir uma cena destas, certo? Com o tempo, tenho vindo a mudar de opinião. Afinal de contas, Fellini não satiriza Deus, a Bíblia ou a fé, satiriza sim os podres da Igreja católica como organização gerida por homens. Não existe contradição entre a crença religiosa de Fellini e o seu desprezo e crítica acérrima pela instituição que é a Igreja católica. Fellini talvez tenha sido, afinal, um católico exemplar, lúcido na sua crença. Aquilo que demonstra ao longo da sua vida e obra é precisamente a capacidade de assinalar os defeitos mais profundos do catolicismo e da Igreja, sem nunca perder a sua fé, a separação racional de objetos que hoje, mais do nunca, causa tanto conflito, debate e ansiedade dentro da própria comunidade católica. Se refletirmos um pouco, podemos mesmo começar a pensar em cenas como a presente em Roma, não como críticas ao catolicismo mas apelos sinceros à reforma da instituição que tanto impacto teve e tem na vida de milhões.