Autoria: Maria Alves (LEQ)
Somos todos seres finitos, e disso temos plena consciência. Sabemos que o fim nos espera, inevitavelmente, e diante dessa certeza cabe a nós decidir como lidamos com esta condição essencial da existência. Milan Kundera, em A Imortalidade [2], reflete sobre essa questão e propõe duas formas distintas de viver. Podemos, por um lado, intensificar ao máximo as nossas experiências, conduzindo a uma “alma hiperatrofiada”, ou, por outro, abraçar a “volúpia do não ser total”, encontrando uma certa leveza na aceitação do vazio. Ambas são formas de lidar com o peso da finitude, mas cada uma oferece uma visão muito diferente sobre o que dá sentido à existência e sobre como entendemos quem somos como indivíduos.
Se nos depararmos com o título A Imortalidade sem conhecer Kundera, é plausível imaginar uma obra de cunho religioso ou metafísico. No entanto, ao mergulharmos no livro, descobrimos que o autor desconstrói essa expectativa ao explorar a imortalidade nas suas mais diversas manifestações, desvendando-a sob prismas inesperados e profundos. Ao longo da narrativa, Kundera assume um papel ambivalente: é tanto narrador da história quanto professor, conduzindo o leitor por um percurso que questiona as bases da memória, da identidade e do valor.
Surgem, assim, Goethe e Bettina, duas personagens históricas que desempenham um papel simbólico e ilustrativo, servindo como arquétipos de diferentes formas da imortalidade. A relação entre os dois é retratada de maneira metafórica, explorando a imortalidade como uma construção baseada na memória, na fama e na idealização.
Bettina von Armin, escritora e admiradora de Goethe, é retratada como o impulso humano de transcender a própria finitude pela manipulação da memória. Ao romantizar e embelezar as suas interações com o poeta, não apenas procura destacar-se por vaidade pessoal, mas também inscrever-se na história como uma personagem relevante. Assim, Bettina personifica um paradoxo: na sua busca pela imortalidade, renúncia à verdade, privilegiando a exaltação da sua própria imagem.
Goethe, por sua vez, não almeja pela imortalidade; está, de certa forma, condenado à mesma. Já consolidado como um ícone da cultura ocidental, não busca ativamente a posteridade, mas vê-se inevitavelmente inserido nela. Esta condição evidencia o paradoxo de ser “imortal” no sentido nietzschiano: tornar-se um nome que perdura, mas sem a possibilidade de controlar como será lembrado pelas gerações futuras. Assim, Goethe está exposto à memória coletiva, um espaço onde a verdade e a interpretação frequentemente entram em conflito.
A interação entre estas duas personagens destaca como a imortalidade pode ser uma construção voluntária quanto um legado involuntário, moldado pela narrativa e perceção alheia. Essa dinâmica funciona como uma crítica à vaidade humana e à fragilidade da memória histórica, que se estabelecem como temas centrais da obra.
Kundera distingue entre dois tipos de imortalidade: a que reside na memória dos que nos amam e a que persiste na memória dos desconhecidos. Esta distinção levanta debates filosóficos mais abrangentes sobre o valor da autenticidade (ligada ao primeiro tipo de memórias) e da transcendência pública (ligada ao segundo). Para as personagens contemporâneas, como Agnes, Paulo ou Laura, a busca pela imortalidade é impulsionada pela perceção da brevidade da vida. A consciência da efemeridade da vida mobiliza as suas escolhas, levando-os a uma existência marcada pelo esforço de viver com intensidade e pela tentativa de encontrar autenticidade num mundo marcado pela superficialidade.
Agnes, em particular,busca um espaço de liberdade interior, desejando distanciar-se das pressões sociais e da constante exposição que moldam o mundo moderno. Anseia por uma existência mais introspetiva e genuína, em contraste com o mundo exterior que frequentemente promove aparências e máscaras. Paulo, por outro lado, é caracterizado pela sua tentativa de preencher o vazio existencial por meio de ações que o conectem à posterioridade, seja na memória dos outros ou na ideia de imortalidade, buscando permanência num mundo transitório.
Estas personagens não apenas enfrentam os dilemas da brevidade da vida, mas também lidam com as pressões culturais e emocionais de um tempo em que o valor de uma pessoa é marcado pela cultura da visibilidade e necessidade de relevância.
Ao guiar-nos pela mente das personagens, Kundera habilmente transcende a narrativa tradicional, conferindo-nos o privilégio de perceber, sentir e pensar através delas, uma experiência literária que é simultaneamente filosófica e existencial. As intenções, desejos e sonhos de cada figura entrelaçam-se com a nossa compreensão, fazendo-nos sentir que estamos realmente a conhecer pessoas reais. Afundamo-nos nas suas angústias e compreendemos os mecanismos de defesa que adotam diante da frustração ao perceberem a leveza e fugacidade da vida.
Ao longo da obra, encontramos não apenas personagens fictícios, mas também figuras imortais cujos feitos marcaram profundamente a história da humanidade, como Goethe na literatura e Beethoven na música, entre outros. Estes nomes ilustram a capacidade humana de transcender a mortalidade biológica através da criação da memória coletiva. Kundera incluiu estas figuras, não como um mero tributo, mas uma forma de questionar até onde a criação artística é uma resposta à angústia da finitude.
Assim, Kundera conduz-nos por um passeio ideológico que explora a condição humana de forma quase socrática, focando-se em personagens específicos para revelar aquilo que, na sua visão, é universal. O autor desvia-se das abordagens tradicionais da observação do ser humano e da estrutura da narrativa convencional, criando uma experiência que desafia e, por vezes, desconcerta o leitor. Este desconforto, no entanto, é justamente o que mantém a nossa atenção cativa, convidando-nos a refletir e a questionar ao longo de toda a obra.
Em suma, A Imortalidade, de Milan Kundera, é mais que uma obra literária; é uma reflexão filosófica profundamente humana sobre a finitude e o sentido da existência. Sem oferecer respostas definitivas, Kundera desafia-nos a refletir sobre questões universais, levando-os a questionar se a busca pela imortalidade é uma ambição legítima ou apenas uma expressão de vaidade que compromete a autenticidade.
Referências
[1] Capa de Immortality de Milan Kundera [Acedido pela última vez a 20/11/2024]
[2] Milan, Kundera. Immortality (1). Faber and Faber
[3] Pintura de Goethe [Acedido pela última vez a 20/11/2024]
[4] Milan Kundera [Acedido pela última vez a 20/11/2024]