Autoria: Catarina Curado (LMAC)
Comecemos pelo fim. A 14 de maio de 1998 estreou o último episódio da série que mudou para sempre a forma de fazer comédia. Conhecida por “falar sobre nada” e por piadas que desafiavam o gosto convencional, a série foi transmitida durante nove anos no canal americano NBC, entre 1989 e 1998, tendo chegado a Portugal apenas nesse último ano. O último episódio entrou para a história como um verdadeiro evento cultural, tendo sido visto por 76 milhões de espectadores. Entre eles o então presidente dos Estados Unidos, Bill Clinton, que apesar de se encontrar numa visita oficial à Alemanha, expressou o desejo de assistir ao episódio em direto. Vamos então falar de Seinfeld.
Um pouco de contexto para quem não está a par
Para quem nunca ouviu falar, Seinfeld é uma série de comédia dos anos 90, centrada em Jerry e nos seus três amigos, George, Elaine e Kramer. A série acompanha o grupo dos quatro nova-iorquinos em pequenas peripécias e situações absurdas do seu quotidiano urbano. Desde esperar um episódio inteiro por uma mesa num restaurante, até discutir a etiqueta de double-dipping num molho, Jerry Seinfeld e Larry David, os dois criadores da série, fizeram da banalidade a sua essência.
O livro Seinfeld e a Filosofia: Um Livro Sobre Tudo e Nada, de William Irwin (Tradução: Marcos Malvezzi Leal; Local de edição: São Paulo; Editora: Madras; Ano de publicação: 2004), descreve bem o “caráter” da série. Ao contrário da comédia vulgar, onde as personagens crescem e aprendem algo no fim de todos os episódios, em Seinfeld tudo volta sempre ao ponto de partida: nunca ninguém muda, nunca nada muda. Esta abordagem reflete uma visão existencialista do quotidiano, onde o sentido da vida não está em grandes feitos, mas sim nas rotinas, nas regras sociais e nas pequenas obsessões que marcam as nossas interações. Aliás, Seinfeld pode ser vista não apenas como uma sitcom, mas como uma crítica social sofisticada e até uma obra com valor filosófico. A série ensinou a televisão a rir-se do vazio e mostrou que o “nada” pode, afinal, ser mesmo muita coisa.
Os quatro do costume, mas agora em detalhe
Jerry Seinfeld, interpretado pelo ator com o mesmo nome, é o eixo em torno do qual tudo gira. Comediante stand-up dentro e fora da série, Jerry funciona como um observador das loucuras dos seus amigos e das situações absurdas em que se vêem frequentemente envolvidos. Podemos considerar Jerry um seguidor do niilismo, já que, ao longo dos 180 episódios, nunca se deixa afetar profundamente por nada, mantendo sempre uma distância emocional. No livro acima mencionado, é comparado a Sócrates que, à semelhança da personagem, nos ensina que “o maior bem na vida de um homem é discutir a cada dia a existência humana – a vida não examinada não vale a pena ser vivida” (Apologia de Sócrates).
George Costanza, vivido por Jason Alexander, é o oposto de Jerry: ansioso, inseguro e tragicamente autossabotador. George é o contrário de tudo o que a filosofia estoica nos ensina, sendo incapaz de aceitar contrariedades sem explodir em frustração e sempre pronto a inventar esquemas que acabam por piorar as situações. Em Seinfeld e a Filosofia, George é visto como um anti-herói trágico e um homem comum esmagado pelas próprias falhas, cuja comédia nasce, precisamente, do reconhecimento universal dessas fraquezas humanas.
Elaine Benes, interpretada por Julia Louis-Dreyfus, é uma personagem inovadora para a televisão dos anos 90. Ao contrário de muitas personagens femininas da época, Elaine não foi concebida para ser mais uma com os seus interesses românticos, mas como alguém com os seus próprios desejos, falhas e excentricidades. Sexualmente independente, competitiva e tão egoísta como os seus amigos, Elaine destrói por completo o papel tradicional da mulher, funcionando como um espelho da cultura de encontros e do feminismo emergente da época.
E finalmente, Cosmo Kramer, levado ao extremo por Michael Richards, é a força do caos. Entrando, literalmente, sem bater à porta, Kramer é comparado em Seinfeld e a Filosofia a uma forma de vida descrita pelo filósofo dinamarquês Søren Kierkegaard, a vida no plano puramente estético, no âmbito da sua teoria dos três estados da existência humana: o estético, o ético e o religioso. Na vida superficial de Kramer, ele só se interessa por pequenas novidades quotidianas, vive distraído por elas, numa demanda constante por assuntos fúteis. No início, a personagem pode parecer absurda e irresponsável, mas, no fundo, expõe com clareza as incoerências da sociedade, tocando em verdades desconfortáveis sobre a liberdade e as normas sociais.
Episódios aos quais chamamos “clássicos”
Ao longo de nove anos, Seinfeld produziu episódios que se tornaram verdadeiros clássicos, cada um deles ilustrando de forma exemplar a filosofia do “nada” que a série tão bem abraçou. Nenhum episódio simboliza melhor essa ousadia do que “The Contest”, onde os quatro protagonistas fazem uma aposta para ver quem consegue abster-se por mais tempo de um certo “prazer solitário”. Considerado um marco pela forma subtil e inteligente como tratou um tema tabu, sem que a palavra em causa seja alguma vez dita, “The Contest” foi um teste à moral televisiva da época e acabou por ser coroado como um dos episódios mais brilhantes e influentes da comédia norte-americana.
Outro episódio que merece ser reconhecido é “The Soup Nazi”, onde a comédia absurda atinge o seu auge. Nele, os protagonistas enfrentam um vendedor de sopas com regras rígidas e um comportamento ditatorial. Numa sátira genial às normas sociais e à autenticidade gastronómica, “No soup for you!” entrou para a cultura popular e para o dicionário das expressões mais marcantes da série.
Em “The Puffy Shirt”, a série reflete sobre a vaidade e o constrangimento público. Jerry, sem querer, concorda em usar uma camisa ridícula numa entrevista, apenas para se tornar alvo de chacota nacional. Este episódio toca assim num dos temas centrais da série: o terror moderno de perder a dignidade em público e como pequenas decisões banais podem escalar para humilhações desproporcionais.
Por sua vez, “The Chinese Restaurant” é considerado um manifesto da filosofia do nada aplicada à televisão. Passado inteiramente num restaurante chinês, o episódio mostra Jerry, George e Elaine à espera de uma mesa. Não há enredo: apenas a frustração crescente diante da burocracia social e do tempo que se arrasta. Este episódio foi revolucionário, precisamente por provar que um programa podia entreter, sem recorrer a ação ou moral da história, antecipando o estilo minimalista que viria a dominar a comédia anos depois.
Por fim, “The Pitch” oferece uma narrativa fascinante: trata-se do episódio onde George e Jerry tentam vender à NBC uma ideia para uma série “sobre nada”, uma descrição que é, claro, a própria premissa de Seinfeld. Ao colocar a sua filosofia no centro da história, este episódio joga com a ironia e reforça a autoconsciência da série, desafiando a audiência a repensar o que espera da televisão e da narrativa tradicional.
Curiosidades que certamente escaparam
A 14 de maio de 2007, os quatro protagonistas, juntamente com Larry David, sentaram-se para falar sobre a série que havia terminado 9 anos antes, ficando esta reunião conhecida como The Roundtable. Apesar de hoje ser considerada uma das maiores séries de comédia de sempre, Seinfeld podia não ter chegado a existir. Inicialmente, a NBC recusou-se a produzir a série, considerando a proposta demasiado estranha e sem interesse para o público. Uma série “sobre nada” parecia uma aposta demasiado arriscada. Só depois de alguma pressão interna é que a série recebeu sinal verde. E o resto é história.
Por detrás do sucesso, estava Larry David, co-criador e verdadeira força criativa de Seinfeld. Enquanto Jerry dava a cara, era David quem garantia que o tom da série se mantinha fiel à sua visão original: cínica, implacável e sem sentimentalismos.
Poucos sabem que vários episódios e o próprio cenário foram inspirados diretamente nas experiências pessoais de Larry David e Jerry Seinfeld. Esta ligação direta com a vida real foi uma das razões para a autenticidade desconcertante da série, fazendo com que milhões de pessoas se vissem refletidas nas situações mais absurdas.
Como acabar em grande (ou não)
O episódio final de Seinfeld, transmitido a 14 de maio de 1998, foi um evento cultural visto por 76 milhões de pessoas. Contudo, acabou por também gerar uma onda de críticas. Depois de anos a evitar lições e moralismos, a série surpreendeu ao terminar com um tom inesperadamente edificante: os quatro protagonistas acabam por ser julgados por todos os seus comportamentos egoístas ao longo das nove temporadas. Para muitos fãs, foi um desfecho frio e desconfortável, longe da leveza cínica que tornou Seinfeld tão popular.
No entanto, como argumenta o livro Seinfeld e a Filosofia, talvez essa viragem não tenha sido um erro, mas uma sátira ao próprio sistema judicial e moral americano. O episódio final expõe a hipocrisia de uma sociedade que se diverte com a amoralidade das personagens, mas que no fundo exige punição e redenção.
Apesar de a saga ter terminado, a filosofia do “nada” que acompanhava a série ecoou pela televisão moderna. O fim de Seinfeld pode ter sido polémico, mas a sua influência continua a moldar a comédia até aos dias de hoje, ensinando-nos que, às vezes, rir do vazio é a mais profunda das piadas.