Recordações da Casa Amarela de João César Monteiro

Autoria: Manuel Pinto (LEGI)

Recordações da Casa Amarela é um filme português de 1989, de João César Monteiro, a primeira obra da trilogia onde o próprio realizador interpreta o papel de João de Deus, personagem que vai de profano homem a profano vagabundo, enquanto deambula pelo urbanismo sorumbático das ruas de Lisboa. Como diria Cesário: “A Dor humana busca os amplos horizontes”. E é assim que ela a encontra no amplo rio Tejo, que abre como a imagem da primeira cena, para logo a seguir mergulhar nos prédios decrépitos de antigos duques e marqueses, agora entregues a desfiadas famílias – idealistas – mas que de tão pouco de ideal têm, vivendo do aluguel dos seus quartos. João de Deus aparece no meio desta cidade num desses prédios nobres – outrora – e nele se entrega a algo que tão meticulosamente foi pensado, mesmo por ser indecifrável. Este filme de João César Monteiro aparece como uma das suas obras mais brilhantes, dado ao brilhantismo da sua coesão e ao surgimento das suas filosofias. Terá sido premiado com o Leão de Prata no Festival de Veneza em 1989.

Devido à pessoalidade subjacente do filme, torna-se difícil escrever sobre o mesmo, acontece que é quase como se estivéssemos na presença de uma obra que não pertence ao público – parcialmente pela sua sensibilidade filosófica, que choca com a sua perversidade. Um filme que, à vista alheia, pode dar ares de comédia sexual e excêntrica, com inclinações ‘avant-gardescas’; mas que, por detrás de todas as camadas de referências artísticas e das aparições de grandes atores e figuras culturais, surge algo mais profundo: uma reflexão sobre a vida de um grande senhor do cinema, sobre o interior grotesco e profundo que qualquer mente apurada carrega.

Verdade seja dita, se perguntássemos a João César Monteiro, provavelmente este diria que sim, que este filme não é mais do que uma comédia de teor sexual. Ou mais provavelmente soltasse uma observação tão perspicaz cujo sentido nos escaparia completamente. Mas há algo que surge aqui, entre linhas, num surreal que não é o de Lynch, perturbador e insondável, mas um surreal confortável e teatral. Talvez porque parte dessa surrealidade nasça das ruas centenárias que sobem, germinadas, até o Castelo de São Jorge. Ruas que me são familiares – e, de certo modo, familiares à vista de muitos. 

Esse surreal, no entanto, acompanha uma visão desapegada da audiência, que ironicamente nos prende, intrigando-nos. Fazendo-nos desejar espreitar para dentro daquela casa pombalina, daquela taberna fumarenta, daquela mente suja. Uma mente tão suja que, a certa altura, já nos vemos nela. Sem empatia, sem medo. Apenas com uma curiosidade infantil. Se o grotesco e o surreal parecem, por vezes, uma simples provocação, rapidamente se revelam parte de uma encenação mais elevada, quase sacral.

Apesar de João de Deus surgir naturalmente na sua perversidade, existe aqui um certo paralelo com as ideias psicanalíticas desenvolvidas por nomes como Freud e Lacan. Principalmente no que trata a figura da Mãe – a verdade é que este é um filme sobre mães – “mães” porque existem duas (argumentativamente três): a sua literal mãe e Mimi, uma prostituta do cais do Sodré, que surge como a primeira mulher a reconhecer a existência de João com indivíduo; a terceira poderá ser Nossa Senhora. É talvez aí que resida a evolução comportamental de João de Deus: na figura da Mãe, desdobrada em várias presenças – a literal, a prostituta e a divina [1]. Estas simbolizam algo maior, como uma âncora do personagem à existência e por conseguinte um acompanhamento trágico, que dada às suas perdas surge como o ponto final moral, a entrega total de João à não existência. Sendo a mãe cega às condições da existência normal, conferida apenas, (novamente aqui surge Lacan[2]) um reconhecimento repetido do acontecimento, neste caso da presença de João de Deus [3].

A música desde logo, acompanha o filme em interpretações tanto clássicas como esotéricas. Shubert e Vivaldi servem de transporte pelo rio Tejo e pela casa pombalina, e Mozart tocado em clarinete, e surgindo também em busto, surge paralelamente ao grotesco de João de Deus.

Não há muito mais a dizer. Os dotes de cinéfilo parecem esgotados frente a uma obra que desafia tanto as análises como as interpretações fáceis. No entanto, há algo que é claro: este filme possui uma relevância extraordinária e claramente subestimada, como toda a obra de João César Monteiro. Ele é, sem dúvida, um cineasta de relevância ímpar. O texto de João Bénard da Costa [4] sobre a matéria reforça esta afirmação, aconselho seriamente a dar uma leitura dado que a sua intelectualidade me supera infinitamente.

Neste texto é mencionado também (em nome da intimidade do filme) o encontro entre Lívio, Luís Miguel Cintra [5], que 20 anos antes teria sido protagonista no primeiro filme de Monteiro: Quem Espera por Sapatos de Defunto Morre Descalço. Este espera o protagonista, João de Deus, na casa amarela – um hospício na cidade de Lisboa, onde eventualmente acaba o protagonista – vinte anos. Vinte longos anos de eternidade. O reencontro entre estas duas lendas culturais dos anos 60 é-nos apresentado (provavelmente devido à minha ignorância) como uma das excentricidades de Monteiro, quando na verdade é uma reflexão sobre uma vida inteira. Verdadeiramente após esta cena, fica marcada a impressão, de que este é um filme sobre algo que paira sobre a pessoa real, sobre um homem que não é bem um homem, mas sim um conjunto de acontecimentos imaginados e surreais que o constituem. Não sei se o constituem em interior ou apenas na personalidade que o realizador escolhe expor, mas a pergunta mantém-se interessante.

Para finalizar, quero apenas dizer que, para uma vistoria digna do filme, deve-se, na melhor das capacidades, fazer-se a subtração (quem vê) da narrativa clássica, para se olhar entrelinhas a verdadeira essência do que nos está a ser dito; a comédia de Monteiro aparece apenas como um formato físico onde ele encaixa as suas ideias sobre teologia, psicanálise, erotismo e essencialmente filosofia. Será decerto um ato de génio, a mistura sobre algo tão grotesco com o íntimo de uma vida, sobre um reencontro real, um salto cultural dos trinta anos prévios, que caminharam distraídos até à loucura.

Monteiro transcende assim o cinema, transcende o físico e apresenta-nos uma mistura pessoal, cultural e, na falta de melhor descrição, metafísica. Claramente, deixa um legado que continua a ressoar em quem se dispõe a aceitá-lo.

Bibliografia

[1] Cf. João Bénard da Costa, Recordações da Casa Amarela (ensaio sobre o filme).

[2] Noção de reconhecimento pelo Outro, em Jacques Lacan (Écrits).

[3] Conceito próximo da compulsão à repetição em Sigmund Freud (Más allá del principio del placer, 1920).

[4] Texto do João Bernard para a revista FOCO 

[5] “Luís Miguel Cintra (29 de abril de 1949, Madrid) é um dos nomes maiores do teatro em Portugal e, também, um dos rostos mais reincidentes do cinema português realizado a partir dos anos 1970.” 

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