Autoria: Ângela Rodrigues (LEFT)
A 23 de agosto, os suíços de Basileia Zeal & Ardor lançaram o seu quarto álbum GREIF, produzido por Manuel Gagneux, vocalista da banda. Este é o primeiro álbum da banda como um todo, já que nos álbuns anteriores Gagneux tocava todos os instrumentos à excepção da bateria (ele tem assim uns complexos). Já a 25 de outubro foi a vez dos portuenses (sim, leram bem) Gaerea lançarem o seu quarto álbum, com a produção de Miguel Tereso.
Como se pode ver, não há grande relação temporal entre estes álbuns, mas estamos em fevereiro de 2025, os Paleface Swiss e os Jinjer já lançaram álbuns e eu ainda tenho as crónicas de 2024 para terminar. Assim, decidi juntar duas bandas menos conhecidas, que fizeram uma tour em conjunto, e cujos álbuns em questão despertaram a curiosidade do público (falo por mim, que não conhecia bem nenhuma das duas).
Por uma questão cronológica, a redação optou por começar com GREIF.
GREIF
Descritos como black metal, avant-garde metal, experimental, blues e soul pelo last.fm (finalmente tenho fontes), os suíços provam novamente que não é fácil inseri-los numa categoria, nunca atingindo um patamar demasiado pesado, o que permite que sejam facilmente apreciados por ouvintes de diferentes gostos musicais.
Começando com “the Bird, the Lion and the Wildkin”, os suíços dedicam este tema à sua infância e ao tempo passado a ler As Crónicas de Nárnia. Como ainda não são suficientemente conhecidos – afinal têm pouco mais de 285 mil ouvintes no Spotify – não podiam pagar os direitos de autor, pelo que reinventaram o famoso título “The Lion, the Witch and the Wardrobe” como “the bird, the lion and the wildkin” [1].
Brincadeiras à parte (mas não muito, não percamos a falta de seriedade), desde o início do álbum as alusões à morte e à perda parecem dar uma simbologia a “GREIF” (grifo), que pela troca de duas letra se transforma em “GRIEF” (luto). Caso dessa alusão são os versos da primeira faixa, que indicam que estamos perante uma espécie de ode à morte e ao luto a ela associado: “Here’s to the dead// We’re never gonna stop now”. Para dar algum sentido à minha teoria, talvez seja de valor mencionar que o luto é composto por diversas fases: negação, raiva, negociação, depressão e aceitação. São estas mesmas etapas que são exploradas ao longo do álbum.
A música seguinte, “Fend You Off”, representa uma mistura de dor, mas também de aceitação, em que o “eu” está consciente da necessidade de ultrapassar o passado e de fazer com que o futuro seja melhor, não esquecendo as lições já aprendidas (“Thousands of hours we wait to devour what’s gone//[…] Countless men of countless ways// To be better than the next of our very kin”). Ao mesmo tempo, existe também algo próximo de uma negação, já que o “eu” está consciente que está a tentar afastar-se do assunto que lhe causa dor (“I’ve eaten lies to fend you off”). É neste tom que se segue “Kilonova”. Instrumentalmente mais diversa – os primeiros quatro segundos parecem ser batidas de um coração – talvez numa analogia “continuamos vivos e seguimos”, que culmina num momento de tristeza e celebração (“You might cry, all the dissidents will die// As the battle and the war are a different beast// The queen is dead, bring the platter for her head// As we’ll never know the difference if we didn’t feast”). O título da faixa não é inocente, já que kilonova corresponde a um evento astronómico em que uma estrela de neutrões e um buraco negro ou duas estrelas de neutrões (dois sistemas com a mesma génese, aqui a fonte sou eu, escolhi Astrofísica como pré-major) se fundem; aqui podemos dizer que também a tristeza e a celebração, ambas com origem no luto do sujeito, se fundem.
Chegamos a um momento mais dramático com “are you the only one now?”: inicialmente, acordes de guitarra acústica (não sei se é mesmo este o instrumento, não entendo nada de música), um Manuel Gagneux a cantar quase como se embalasse o ouvinte, mas quando damos por nós estamos a ouvir gritos a acompanhar a voz calma de Gagneux. Neste momento, que pode ser interpretado como uma conversa interior do “eu”, há sentimentos de solidão (a repetição do verso “You are the only one now”) e também de raiva (expressa através dos tais gritos), sempre numa perspetiva muito racional do que está a acontecer (“Don’t scream in vain”). O instrumental muda novamente, sendo imprevisível a direção que tomará de seguida, e “Go home my friend” traz um momento de aceitação da necessidade de sair do estado de solidão, através dos pedidos de ajuda: “Would you help me get on the rail?// Could you help me please?// To get me off these knees”.
“Clawing out” é provavelmente uma das faixas mais entusiasmantes de GREIF. Com um instrumental mais sinistro, o ouvinte é transportado para um ambiente mais pesado, onde a ansiedade domina. A utilização do latim e o coro de vozes parecem contribuir para a sensação de estarmos numa sala secreta do Vaticano, onde numa missa oculta, é explicado à personagem desta “história” que há ações malignas justificáveis (“Justificatum malum factum”), talvez numa tentativa de a libertar da sua culpa. Prosseguimos com “Disease” e “369”, como se “Clawing out” tivesse sido um aparte que nunca aconteceu, numa perspetiva simultaneamente positiva (“You’re trying to be fine but you’re another disease”) e de negação (“We never had to talk about the thing that brings you to your knees”).
Com “Thrill” temos duas opções de interpretação (na verdade, temos seguramente mais): ou voltamos a um monólogo interior, ou temos uma conversa com aquelas pessoas irritantes que estão sempre a perguntar, num tom de pena, se está tudo bem. Qualquer que seja o caminho tomado, a interpretação da redação é uma forte demonstração de algo que inicialmente pode parecer aceitação (“For the record, I don’t feel anymore”), mas que na verdade não passa de negação (“Give in to the pressure// Give in till you can’t no more”). Bem, quanto a “Sugarcoat”, não é mais do que uma tentativa de suavizar a negação e a depressão que se mantêm (“To sugarcoat it all// To make it have the gall// To make you feel alone”).
“Solace” e “Hide in Shade” são (finalmente) o consolo, mas também alguma depressão, especialmente a última. Perante o luto e a perda, a aceitação é uma necessidade e parece que, depois de tantas tentativas falhadas nas faixas anteriores, há então este momento de concretização (“There is solace and hope// In the end of your rope […] When the light starts to fade// Ride on”), acompanhada da tristeza característica de todos os processos de luto (“When the day will come and we will all be gone// They will scream your name and we will sing along// If this ever was a place where we belong// It’s too late for them”).
Se “Clawing out” corresponde à música mais surpreendente, “to my ilk”, a última do álbum, é simultaneamente a mais bonita e triste. Nada melhor para terminar GREIF do que uma música que pode ser interpretada tanto do ponto de vista de quem faz o luto, como de quem pelo luto é feito, numa tentativa de amenizar e até explicar aos próximos como funciona o processo. Deixo apenas “They’ll make you come alive one day// They’ll make you step inside to make you pay// So don’t get stuck in pride, my love// When you’ll be watching me from far above”. Vale a pena ouvir.
Coma
Inglaterra tem os Sleep Token, Portugal tem os Gaerea. Na prática a única semelhança é serem tipos mascarados, que gostam de preto e cuja identidade é escondida do público durante os concertos. Bem, os Sleep Token têm o acréscimo da identidade de todos os membros ser desconhecida, dos Gaerea só não sabemos quem é o vocalista. De qualquer forma, não serão poucas as conversas do género: “Mãe, podemos ter os Sleep Token em Portugal?”, “Não, nós já temos os Sleep Token em Portugal”. Os Sleep Token em Portugal: Gaerea.
Com apenas dez faixas, em contraste com as catorze dos suíços, os portugueses, também descritos como black metal, apresentam um álbum coeso, consistente (uau, até pareço séria), em que rapidamente podemos perder a noção do tempo, chegando ao final do álbum com um “Já?!”. Várias foram as vezes que ouvi e, julgando que ainda estava no início, terminava o álbum.
Antes de passar a uma breve análise de alguns aspetos do álbum, quero só notar que é muito difícil encontrar informações sobre a banda. Por exemplo, tinha ideia que o vocalista tinha mudado e que este era o primeiro álbum com o novo, mas já não sabia onde tinha encontrado tal informação. Pensei mais uma vez: «pronto, lá foram as vozes». É que nem uma página da Wikipédia em português ou inglês; não, teve de ser em alemão. O que me salvou foi a ofensiva de 1353 dias no Duolingo e, especialmente, a opção de traduzir a página.
Aliando elementos tradicionais de black metal a influências mais djent e thall, lembrando por curtos instantes os suecos Vildhjarta em “The Poet’s Ballet”, os Gaerea conseguiram um álbum tão instrumentalmente interessante que não tenho dúvidas que uma versão só instrumental também teria sucesso.
Relativamente à lírica, os portuenses demonstram novamente que gostam de inovar na temática, algo a que já habituaram os seus fãs, trazendo um álbum introspetivo, simultaneamente fatalista, desesperado, quase melancólico, capaz de despertar uma série de emoções no ouvinte (para um leitor menos conhecedor do género, é comum as letras de black metal terem um cunho anticristão, ligadas ao paganismo e ao satanismo). Além disso, uma novidade incorporada neste álbum é a utilização dos apelidados clean vocals (ou seja, não são só gritos), algo que “Hope Shatters” e “Wilted Flower” demonstram bastante bem.
Ouçam, não quero estragar a vossa experiência. Se gostarem, não percam a oportunidade de os ver no Evil Live, em junho.
Não relacionado com os álbuns anteriores, deixo ainda as recomendações de outros álbuns sobre os quais não escrevi. Starfire – Darko US, álbum que conta com várias colaborações como Marc Zelli (Paleface Swiss) e Garrett Russell (Silent Planet), bom para quem aprecia deathcore e deathcore progressivo, com um toque de não sei o que se está aqui a passar. ARK – Crossfaith, algo típico dos japoneses que já habituaram o público à sua mistura de metalcore com eletrónica, que também poderá ser ouvida no Evil Live.
Referências:
[1] – Sei lá, aquela entrevistadora que confundiu a Courtney LaPlante com a Poppy.