Se gostavas de dar uso ao teu direito enquanto eleitor mas percebes pouco de política, e ainda menos das muito faladas “europeias”, então não estás sozinho. Somos todos totós. Felizmente, eu gosto bastante de tartes, o que me leva a ligar inevitavelmente o estômago ao cérebro sempre que as coisas se tornam mais complexas, tornando o tema, no mínimo, menos exaustivo.
Texto: Rita Serpa
Um ato legislativo europeu é uma tarte. Se ainda não o sabias devias ter-te esforçado um bocadinho mais a História, ou comido mais tartes. Enfim. Antes de mais, é de realçar que a mensagem passada por muitos livros aborrecidos de direito europeu é que consoante a porção da União Europeia que queiramos alimentar e a eficácia das fábricas regionais, escolhemos o tipo de produção de tarte mais eficaz. No caso de a produção desta maravilhosa sobremesa ter de ser legalmente obrigatória, pode-se utilizar regulamentos/diretivas (aplicam-se a todos os estados membros) ou decisões (têm destinatários específicos). Existem ainda as recomendações e os pareceres, mas estes não passam de sugestões. Simples, não é? O problema é que em Maio de 2019 os inventores das receitas de tartes vão ser alterados, e ninguém parece preocupado em perceber que funções específicas é que eles desempenham. O mais preocupante é que se não percebermos o processo de produção de tartes na União Europeia, não vamos conseguir escolher os melhores indivíduos para desempenhar cada função, correndo o risco de acabar com especialistas em salame e mousse de manga.
O processo legislativo envolve várias instituições europeias, destacando-se: o Parlamento Europeu, constituído pelos eurodeputados eleitos pela população de cada estado-membro; o Conselho da União Europeia, também conhecido por “Conselho” pelos amigos, no qual se reúnem os ministros dos estados-membros com competência para representar os governos nacionais no assunto a ser debatido na reunião em questão; a Comissão Europeia, nomeada de cinco em cinco anos pelo seu presidente, eleito pelo Conselho Europeu; o Conselho Europeu, que por sua vez, é constituído pelos Chefes de Estado e de Governo dos estados-membros, para além do Presidente da Comissão.
Conhecendo os diferentes tipos de produção e as diferentes equipas de especialistas necessárias no processo, já só falta perceber como é que se dá, afinal, a regularização da receita e a produção da tarte em si. Claro que podíamos fazer tartes como bem nos apetecesse, mas corríamos o risco de errar redondamente nas quantidades e de apanhar uma intoxicação alimentar qualquer.
Quando não há tarte suficiente em dados sectores dos estados-membros, ou quando as tartes disponíveis já estão em más condições, a Comissão Europeia elabora propostas para novas receitas; tanto por iniciativa própria como a pedido nacional, institucional ou até mesmo individual. No entanto, antes de as propor, a Comissão avalia as potenciais consequências económicas, sociais e ambientais através de avaliações de impacto, de forma a evitar avançar com projetos de que ninguém gosta ou precisa.
Inicialmente, a proposta da Comissão Europeia é enviada para os parlamentos nacionais de cada estado-membro. Estes dispõem de oito semanas para criar um parecer fundamentado caso considerem que a receita em questão não cumpre o princípio da subsidiariedade, ou seja, que as tartes nacionais já existentes são suficientemente eficientes para dispensar a tal proposta. Assim, cada parlamento nacional dispõe de dois votos, sendo que se pelo menos um terço dos parlamentos nacionais for de opinião que a receita proposta não cumpre o dito princípio, a mesma deve ser reanalisada. Após a nova análise a Comissão pode decidir mantê-la, alterá-la ou retirá-la. No entanto, se uma maioria simples dos parlamentos nacionais tiver uma posição negativa em relação à receita, e a Comissão optar por manter a proposta, o Parlamento Europeu e o Conselho são chamados diretamente ao barulho. Se algum destes considerar que a receita não é compatível com o princípio da subsidiariedade, a produção da tarte em questão não continuará a ser analisada.
No caso de a receita cumprir os requisitos para continuar a ser analisada, esta é transmitida ao Parlamento Europeu, que a aprova ou sugere alterações, enviando-a posteriormente num intervalo de 3 meses ao Conselho e, em alguns casos, ao Comité das Regiões e ao Comité Económico e Social. Se tanto o Conselho como o Parlamento Europeu a aprovarem, esta é aceite e posta em vigor. Mas caso o Conselho não aceite, por exemplo, os valores limite de manteiga a ser usada propostos pelo Parlamento Europeu, então tem de sugerir uma nova alternativa e reenviá-la novamente para o Parlamento. Se gostar da nova receita, o Parlamento permitirá a adoção do ato. No entanto, se achar que a proposta não é doce o suficiente, pode alterá-la e reenviá-la para o Conselho Europeu, que a pode, uma vez mais, aceitar, rejeitar ou alterar.
Para a receita ser aprovada e não ficar presa em ciclos burocráticos, no caso de o Conselho e o Parlamento Europeu não conseguirem chegar a acordo até aqui, é convocado o Comité de Conciliação, o qual é constituído por um número igual de eurodeputados e de representantes do Conselho. Nesta nova abordagem, o Comité tem seis semanas para elaborar uma nova receita, propondo-a posteriormente ao Parlamento Europeu e ao Conselho. Se uma destas instituições rejeitar a nova proposta, a receita da tarte não é aceite e o processo é encerrado; caso contrário, iniciar-se-á a produção segundo as normas acordadas. É de realçar que, caso seja encerrado, o processo só pode ser renovado por uma nova proposta da Comissão Europeia.
Após a sua aprovação, o texto é publicado no Jornal Oficial, estipulando-se os prazos limite para o tipo de tarte a ser devidamente produzida e distribuída por cada estado-membro. Conforme o gosto de cada um decidem as doses dos ingredientes que vão usar na sua tarte, dentro dos valores limites estipulados na receita aprovada.
Geralmente a UE utiliza este processo para fazer tartes, sendo denominado por Processo Legislativo Ordinário. Mas há procedimentos especiais, como por exemplo o Procedimento de Consulta, no qual o Conselho é chamado a consultar o Parlamento Europeu sobre as propostas de receita da Comissão não sendo, no entanto, obrigado a aceitar a sua opinião em alguns sabores de tarte mais fiscais, como Isenções do Mercado Interno e Tarifa Externa Comum. Há ainda o Procedimento do Parecer Favorável, no qual o Parlamento Europeu pode aceitar ou rejeitar uma proposta, mas não pode propor alterações.
Independentemente do processo que se escolha para criar uma receita que produza uma boa tarte, cabe à Comissão Europeia e aos estados-membros garantir que estão a ser produzidas segundo um processo correto e com as condições estabelecidas. Há ainda instituições que ajudam a assegurar o bom funcionamento desta parte do processo, como o Tribunal da Justiça, que assegura o cumprimento da legislação europeia, e o Provedor de Justiça, que investiga as queixas relativas a casos de alegada má administração por parte das instituições ou dos organismos da UE.
Ficaste com fome? Espero que sim. Por ser extremamente importante para o bom funcionamento e para o crescimento europeu, o processo de produção de tartes europeias é muito complexo e delicado, estando fortemente dependente da qualidade dos inventores de tartes que escolhemos para o integrar. E como nunca se sabe se o nosso vizinho de baixo vai ou não ser um totó para sempre, espero que pelo menos tu não venhas a escolher especialistas em salame e mousse de manga para liderarem este processo. Eu pelo menos gosto demasiado de tartes para me conformar com a ideia de ter de comê-las amargas nos próximos anos.