Em março deste ano, surgiu-nos a oportunidade de ouvir uma participação especial que aguçou a nossa curiosidade relativamente ao conceito de Bioética. No seguimento da presente edição, tivemos então o privilégio de conversar com um dos grandes especialistas do campo da Bioética em Portugal. Com um vasto percurso que passou pela Universidade Católica Portuguesa, Universidade Nova de Lisboa e pela Universidade de Salamanca (para nomear apenas algumas), o Professor Manuel Curado leciona, atualmente, na Universidade do Minho e é o autor de diversos livros e ensaios sobre Filosofia das Ciências da Mente e Ética Biomédica. O seu mais recente livro, “Saúde e Cyborgs: Cuidar na Era Biotecnológica”, foi publicado em 2019 pela editora Edições Esgotadas. Discutimos a relevância da Ética na atualidade, colocámos questões sobre as teses defendidas pelo Professor e refletimos sobre quais serão os grandes desafios que a Bioética enfrentará no futuro próximo. Convidamo-vos, agora, a refletir connosco.
Autoria: Carolina Bento, MEBiom (IST), Maria Inês Xavier, MEBiom (IST), Matilde Almeida, MEBiol (IST)
Como se define o conceito de Bioética? Como evoluiu esta definição ao longo do tempo? Qual é, a seu ver, a importância que lhe é dada na sociedade dos dias de hoje?
A noção de Bioética é relativamente recente e não tem um entendimento universal. Não é qualquer coisa que possamos dizer que existia na cultura ocidental desde os gregos ou desde a Idade Média. É um assunto relativamente recente. Pesquisando com erudição, a primeira pessoa que utilizou a palavra foi o alemão Jahr, ainda nos anos 20 do século XX e estava relacionado com o cuidado da natureza. Por isso, não representava ainda uma reflexão sobre a aplicação da tecnologia ao corpo humano, à vida humana e até ao campo mais restrito da saúde. Na altura, Ética era o entendimento das relações do ser humano com a Natureza. Muitas décadas depois, nos Estados Unidos, autores como o ambientalista Aldo Leopold e o oncologista Van Potter ainda tinham esta noção de ambiente, de cuidado da Terra em geral. No entanto, nos anos 60 e 70, o desenvolvimento tecnológico e farmacológico, o entendimento diferente relativo ao Ser Humano e, sobretudo, esta junção muito preocupante da aplicação da tecnologia e dos avanços extraordinários à vida humana fizeram com que o conceito se cristalizasse. Começou, nessa altura, a realizar-se uma reflexão sobre as consequências éticas da aplicação das tecnologias, seja no campo da saúde, seja no campo da tecnologia em geral e, com generosidade, podemos incluir também o cuidado com o mundo da vida, a relação com os animais, a utilização de animais em laboratório… Enfim, com o mundo da vida em geral. Um aspeto fascinante do conceito de Bioética é que, como é relativamente recente e já teve vários paradigmas, o mínimo que se pode dizer é que não está fixo para todo o sempre. Por isso, a nós que já estamos no início do século XXI, compete-nos juntar semântica a esta palavra. Conhecemos a história relativamente recente, que, sendo recente, é também já rica, mas eu pessoalmente sinto que a junção das duas coisas, do termo e do significado, ainda não está finalizada, está em curso. Poderá incluir o quê? Poderá incluir pessoas não humanas? Poderemos utilizar a palavra para refletir sobre as relações com os animais? Sobre a criação de máquinas sentientes? Não sei a resposta, mas são desafios de um futuro próximo e de um futuro distante. Tendo em conta o que já conhecemos hoje, somos convidados a trabalhar, a alargar o significado de Bioética. Ética da vida, é isto que está na etimologia da palavra, mas os seus significados foram variando. Hoje, quando as pessoas ouvem a palavra Bioética, já não se lembram da conexão com o ambiente, da conexão original com o mundo dos animais. Agora, lembra-nos um assunto relacionado com a junção entre tecnologia e cuidados de saúde, um campo já mais delimitado, muito mais pequeno do que o campo original.
Relativamente à importância da Ética, é como se fossemos confrontados com dois sítios onde colocar os nossos pés. Num dos sítios, temos os pés na terra da nossa narrativa, das coisas que nós dizemos, o nosso discurso público e aí, nesse discurso público, dizemos “Não, a Ética é muito importante”. Estamos sempre a falar sobre isso. Vamos a uma repartição pública e vemos, pendurados numa parede, os princípios éticos da Administração Pública. Se precisamos de cuidados de saúde, há uma comissão de ética no local onde nos encontramos. Há uma comissão de Ética na universidade. Até no parlamento encontramos uma comissão de Ética. Hoje, é difícil encontrarmos uma zona da vida humana que, direta ou indiretamente, não esteja relacionada com Ética. Os medicamentos precisam de uma comissão de Ética para entrar no mercado. Um medicamento passa por uma investigação científica que precisou da aprovação de uma comissão de Ética para decorrer. É difícil encontrar uma zona que não tenha a ver com Ética, pelo que, no campo do discurso e da alta cultura, a resposta é muito positiva: “Sim, a ética hoje tem uma presença extraordinária na nossa vida”, e ponto final.
No entanto, eu falei de duas terras. Se abandonarmos a terra discursiva, das ideias organizadas, dos bons discursos, dos bons livros, do nível universitário, e formos para a terra onde efetivamente temos os pés, fico sempre com esta perplexidade: como é que estamos a falar tanto de Ética quando toleramos coisas tão horrendas, tão afrontosas para pessoas bem educadas? Na internet, temos espetáculos gratuitos de pornografia infindável, que é, aliás, um dos motores da internet. Temos indústrias de morte no início da vida e no final da vida, com eufemismos ligados à interrupção voluntária da gravidez ou ao direito a decidir sobre o final da vida. Muitas pessoas não chegam a ter vida, porque há uma ideia filosófica de que são elas que decidem o seu próprio destino. Já para não falar das velhas indústrias da Humanidade. Num país simpático como o nosso, pequenino, bonitinho, num país primavera, num jardinzinho lindo que é Portugal, temos homens e mulheres munidos de armas nas forças armadas, nos vários organismos de polícia. Somos simpáticos, somos cordiais, não temos o nível de violência da Colômbia ou dos Estados Unidos e, no entanto, precisamos de milhares e milhares de mulheres e homens armados e a pergunta é: porque é que precisamos sempre disso, de um controlo da nossa violência? Desta forma, nesta terra real (não na terra narrativa, na terra bonitinha do grande discurso ou da terra filosófica), na terra onde vivemos parece que a Ética não é muito relevante, isto é, as pessoas vivem como sempre viveram. Se puderem ter uma vantagem, agarram a oportunidade para ter essa vantagem. Se puderem cometer um crime sem que ninguém esteja a ver e se tiverem a visão de que nenhum homem armado à noite os vai buscar a casa, as pessoas tomam essa vantagem. Do meu ponto de vista, é a natureza humana. Aquilo que é diferente é uma espécie de alteração do discurso, não da realidade. A realidade é como sempre foi. Alguns intelectuais iriam discordar de mim. O cientista cognitivo, Steven Pinker, tem um livro fabuloso sobre os melhores anjos da nossa natureza, em que defende uma ideia simpática: defende que o nível médio de violência, na história da Humanidade, diminuiu muito. Eu não sei se diminuiu muito. É uma ideia simpática, indubitavelmente simpática. Do meu ponto de vista, estamos sempre a fazer o mesmo. Talvez as guerras não sejam tão violentas como as guerras passadas. Talvez estejamos mais atentos a tentativas de genocídio. Parece que temos protetores. Não sei, no entanto, se muita violência não mudou de sítio, se continuou no nosso quotidiano, mas disfarçada. Há muita degradação humana, muita violência disfarçada, que nem parece aquilo que é. Parece uma coisa bonitinha, parece entretenimento. Por isso, gostava de distinguir estas duas terras da Ética, a terra narrativa e intelectual e a terra real. Tenho dois diagnósticos intelectuais diferentes. Numa, a situação da Ética é extraordinária, parece que nunca houve um interesse tão desenvolvido pela Ética. As instituições têm preocupações pela Ética. Na vida real, talvez não tenha havido uma evolução significativa, precisaríamos de ver números, de estudar as instituições que controlam as nossas ações mais violentas. Não consigo imaginar um país simpático, como o nosso, sem mulheres e homens armados. O que é que eles estão a controlar? Aliás, a população pede cada vez mais polícias, mais tribunais, mais celeridade na justiça. Pedimos isso porquê?
Na primeira terra, que é a terra intelectual, das grandes ideias, do pensamento organizado, isto também é surpreendente, porque aqui também a presença da Ética é relativamente recente. A Ética é uma disciplina filosófica, com milénios de existência, mas nunca esteve no centro dos grandes debates intelectuais. Isto é surpreendente. Eu cresci no tempo do Disco Sound e não me recordo de grandes debates éticos infindáveis. Hoje em dia parece uma indústria. Toda a sociedade resolve esgrimir os seus argumentos sob a égide da Ética. É muito interessante e um bocadinho preocupante. Não sei se estamos a recorrer mesmo à Ética, se não estaremos antes a recorrer a uma ciência que tem alguma coisa a ver com a Ética. Muitas vezes temos a palavra, que é a mesma, e pensamos que o conceito também é o mesmo, não é isso. Aos meus estudantes dou muitas vezes o exemplo da palavra “vinho” – como sou também professor de Filosofia Antiga, para além de Ética, muitas vezes lemos textos gregos, como por exemplo o banquete de Platão, que descreve homens a ouvir flautistas, a beber vinho e, claro, a discursar filosoficamente. Pergunto-lhes “O que é isto? O que é esta palavra vinho?” e eles riem muito e dizem “Oh professor, toda a gente sabe o que é vinho”. O problema é esse, é que não sabemos. O vinho grego tinha de ser cortado em água. Era uma parte de vinho para, pelo menos, cinco partes de água. Se alguém bebesse aquele vinho sem ser cortado em água tinha automaticamente um coma alcoólico. E era um vinho que, para além de ser subfermentado da videira, tinha outras plantas, como solanáceas, uma família botânica que causa efeitos psíquicos muito intensos. Nós lemos a palavra vinho, pensamos que é a palavra vinho que ainda hoje temos. Mas não é. Com a palavra “Ética” passa-se exatamente a mesma coisa. Os gregos, por “Ética”, queriam dizer “a vida dos melhores”, uma vida feliz, uma vida que tinha ideais. Hoje, se dissermos tudo isto no contexto de uma comissão de Ética, as pessoas olham para nós como se fôssemos extraterrestres, porque a palavra “Ética” tem a ver com uma espécie de argumentação racional. Parece uma questão muito intelectual: tu tens de ter um argumento para defender, não podes dizer a ninguém numa comissão de Ética “eu tenho um ideal de Humanidade”. Agora, as pessoas só querem uma argumentação racional que possa servir de argumento à tomada de decisões. É uma perspetiva de engenheiro, muito científica. Os gregos não tinham nada disto, isto é, um afunilamento, um empobrecimento do conceito.
Sonhar o desenvolvimento máximo disso, essa é a noção grega de Ética. Hoje, não temos nada disto. Hoje temos até especialistas de Ética. Especialistas, porquê? Porque são boas pessoas? Não, porque têm um diploma universitário, porque escreveram muitos artigos sobre isto, porque ofereceram argumentos racionais à população. Já não encontro estudantes com os olhos postos na procura de um ideal. Tenho estudantes preocupados em obter uma profissão. Isso é um assunto importante, mas não tem a ver com ideais. Sinto a falta desta faceta da Ética. Temos hoje uma grande ponta do icebergue. A Ética tem, de facto, uma presença significativa nas instituições da nossa época. Mas aquilo que é a alma da própria Ética, a massa de gelo abaixo da linha de água, não sei. Não sinto que haja ideais. Não sinto que haja uma Ética tácita, mesmo na pequena Ética do quotidiano, de auxiliar a velhinha a passar a passadeira, do tirar o chapéu para fazer um sinal de respeito. Parece que tudo isso saiu do nosso horizonte.
Vivemos uma vida de simpáticos egoístas, tratamos da nossa vida como um único ponto de referência. Qual é o ponto de referência? És tu, és tu, és tu. Passamos pelas ruas de uma cidade e vemos as campanhas publicitárias, é tudo sobre o nosso gosto, sobre as nossas decisões. És tu que decides a tua vida, é o teu umbigo.
À luz do relativismo moral, qual a utilidade do estudo da Ética na resolução dos grandes conflitos de hoje em dia?
Primeiro, teríamos de refletir um pouco sobre relativismo moral. As manifestações de Bem e de Mal têm variações civilizacionais históricas importantes, mas disto não podemos concluir que os diferentes povos não têm uma noção bem estruturada de Bem e de Mal. Eu não conheço semelhante povo. Todas as sociedades têm tradições, valores e recomendações de cursos possíveis de ação. A ideia de que podemos varrer tudo e deitar tudo isso fora é uma ideia perniciosa, perigosa e desprovida de fundamento. Varre-se tudo, mas deixa-se qualquer coisa. Deixa-se racionalidade. É o ponto de vista, por exemplo, do filósofo Peter Singer, que acha que, do ponto de vista da racionalidade, podemos deitar fora tradições, crenças, costumes, que o importante é ter uma justificação racional. Durante anos lecionei a Ética prática, de Peter Singer, e fiquei sempre impressionado com isto: se os pais de um recém nascido mudarem de ideias depois do nascimento, do ponto de vista do Peter Singer, como o nascimento não é moralmente relevante, se se aceita a interrupção voluntária da gravidez, porque não uns minutos depois do nascimento? Parece um caso de ultra relativismo ético, mas há ali uma pedra, que é a argumentação racional. O relativismo não vai ao ponto de dizer que não podemos confiar na própria razão. Por isso, sou muito cético a respeito do relativismo. Tem de se olhar, não do ponto de vista apenas do decisor, mas de um ponto de vista mais holístico. Há assuntos efetivos e estes assuntos efetivos não são de natureza meramente subjetiva e não têm um impacto puramente individual. Uma ciência, uma tecnologia, uma alteração de qualquer coisa que possa ter um impacto social vasto não é um assunto de gosto subjetivo, por isso as teses de relativismo têm de ser acauteladas. Nós não nos entenderíamos a nível planetário se, com a base desta pseudo-filosofia do relativismo, disséssemos que tudo vale. Não vale tudo. A sociedade tem outras formas de esgrimir os seus conflitos: tem a forma do poder, do dinheiro, da argumentação racional. A Ética é importante, porque nos convida a refletir sobre valores comuns, independentemente da questão regional. Não é possível encontrar aquele povo distante que não tem uma versão de Bem e de Mal. Poderão existir pequenas variações regionais, mas que, do meu ponto de vista, são irrelevantes, porque aquilo que é substantivo abriga-nos a todos.
No contexto atual, estamos a refletir sobre a importância de uma área de reflexão, que é a Bioética, para nos auxiliar a gerir qualquer coisa que entretanto aconteceu. O que é que entretanto aconteceu? Obtivemos poderes que os nossos antepassados antes não conheciam: poder sobre a vida. Conseguimos fazer dispositivos que podem acabar com o planeta Terra, várias vezes. Conseguimos alterar o código da vida, seja ao nível dos vírus, das bactérias, seja ao nível de seres macroscópicos, como os seres humanos. Tudo isto obriga-nos a refletir sobre o futuro da vida no planeta. Por isso, o assunto não é subjetivo, tem de ser uma reflexão a um nível ético, obviamente, mas eu acrescento que também terá de ser a um nível político, porque temos de ter entendimentos políticos a nível das grandes potências do planeta. E isto não é apenas de um ponto de vista filosófico, mas de um ponto de vista muito realista, porque se não pudermos fazer investigação científica num país, devido ao enquadramento legislativo desse país, podemos apanhar o avião e fazê-lo, alegadamente, noutro país que não está tão desenvolvido ou não tem um Direito tão sostificado. Tem de haver entendimentos coletivos de alto nível. Tem de ser uma ação a nível político, em que as potências do Planeta conversem ao nível da governação para conseguirem um entendimento. Portanto, a questão é ética, mas também política, e talvez consigamos chegar a uma espécie de um regulamento mínimo e aí já teríamos um enquadramento jurídico também. Deste modo, temos Ética, temos Direito e temos Política, todos importantes para a resolução dos grandes conflitos atuais.
No seu ensaio “Desafios Éticos das Ciências da Mente”, presente no livro “Pessoas Transparentes – Questões Actuais de Bioética”, defende que, quanto maior se torna o conhecimento de determinadas áreas das ciências da mente, maior é o abandono da Ética nessas áreas. No entanto, refere também o facto de, apesar de hoje em dia conhecermos muito melhor o funcionamento do cérebro comparativamente àquilo que sabíamos no final do século XIX, os autores contemporâneos “revelam a mesma perplexidade em relação aos problemas fundamentais”. Que problemas fundamentais são estes? Na sua perspetiva, será possível assumir esta conjugação de fatores como um meio de resistência ao abandono total da Ética?
O cérebro não é um órgão irrelevante na nossa vida. É “o” órgão central, porque é aquele que nos dá a realidade, as ideias, o discurso, a compreensão. Os antigos tinham propostas muito diferentes das nossas sobre a sede da vida mental. Platão, por exemplo, defendeu que uma das sedes era o fígado. O fígado, porquê? Porque é um órgão bonito. O fígado é, talvez, um dos nossos órgãos mais bonitos. Ora, o cérebro é muito feio. Quando se tem um cérebro nas mãos, parece aquela massa gelatinosa horrível… As pessoas nunca se entenderam a respeito da sede da nossa personalidade. Onde é que nós, de facto, estamos? Este é um problema fundamental. Hoje, desde o século XIX, há um entendimento generalizado de que o cérebro é muito relevante e pode até ser a sede da vida mental. Mas, por muito que saibamos sobre o funcionamento deste órgão, parece que temos pedras no sapato que nunca se vão embora. Uma é precisamente esta: como é que um bocado de carne sente alguma coisa? O nosso cérebro é um bocado de carne. Mas como é que este bocado de carne ama uma pessoa? Como é que este bocado de carne diz para a mamã e para o papá “eu quero inscrever-me no Instituto Superior Técnico para fazer esta engenharia”? Como é que um bocado de carne pode ter planos para o futuro? Como é que um bocado de carne pode representar o mundo? Ninguém sabe. Ninguém sabe como é que a matéria “acordou”. Mesmo questões relativamente simples, como explicar porque é que estamos acordados e não estamos a dormir. Se forem perguntar aos neurocientistas, eles não se entendem. Porque é que dormimos à noite? Eles também não se entendem. “Eu tenho teorias computacionais sobre o sono e sobre sonhos, como se fosse a limpeza do disco do computador”, “eu tenho teorias místicas, de que por exemplo os sonhos são intervenções sobrenaturais”… As pessoas não se entendem. Isto são questões fundamentais ligadas ao facto de estarmos acordados e a sentir alguma coisa. Ao nível do comportamento, como somos seres sociais, temos intervenção na sociedade, temos de decidir as coisas. O que vamos fazer a seguir, como é que vamos decidir as situações… Como decidir? Parece fácil. Mas, se amplificarmos o processo de decisão, nós sabemos de facto muito pouco. Como é que a nossa cabeça decide? Eu gosto de fazer o teatro de estar na esquina de uma rua. Estou ali na esquina, meio indeciso. “Vou por esta rua, vou por aquela avenida…?”. Estou ali, à espera que uma decisão surja na minha cabeça. E parece a coisa mais evidente do mundo. Eu estava ali à espera de quê? À espera de uma decisão. Mas se eu próprio disse a mim próprio “eu tenho de decidir onde vou colocar as minhas pernas”, porque é que eu não me dei automaticamente a decisão? Eu tive de estar à espera. Como é que eu posso garantir que a decisão é mesmo minha? A decisão pode ser qualquer coisa que me visita. Nós estamos à espera da decisão, assim como esperamos os amigos em nossa casa. Entidades que vêm de fora. Nós, de facto, sabemos muito pouco sobre o processo da decisão. Claro, como somos seres racionais, conseguimos aplicar lógica a tudo isto: custo e benefício, grandes opções, minimização dos danos… Temos quase um pensamento militarista sobre a decisão. Grandes operações no terreno para potenciar os objetivos, como se fôssemos generais num campo de combate a gerir a nossa vida. Tudo isso acontece na decisão, no segundo episódio, no terceiro episódio… Do meu ponto de vista, no primeiro episódio, em que temos de decidir qualquer coisa, nós, de facto, ainda hoje não sabemos o que acontece. Sabemos que somos confrontados com uma decisão que surge em nós. Como quando vamos ao supermercado. Chegamos a uma estante no supermercado e há vários modelos do objeto que precisamos de comprar. Dentífrico. Não há só uma marca de dentífrico, há muitas. Nós olhamos para uma estante de supermercado com dentífricos e queremos escolher um para levar para casa. Olhamos, a nossa mão parece que tem vida própria. “Hoje vai ser esta de caixa vermelha…”, “Não, hoje vai ser esta de caixa branca”. Podemos estar ali muitos minutos e, a certa altura, acontece-nos a decisão. Agarramos numa caixa e dizemos “Eu devo ser mesmo tonto, tem que ser esta!”. Se alguém estiver ao nosso lado a assistir a este espetáculo, fica surpreendido. “Porque é que não decidiste logo? Estiveste à espera de ti próprio? Estiveste à espera de um amigo que te vai visitar?”. Esta é uma questão fundamental. Por isso, a respeito do conhecimento do cérebro e da mente humana, nós, de facto, andamos a dizer ao mundo que sabemos muito mais do que os nossos antepassados. Não sei se isto será verdade. Tivemos, por exemplo, uma “década do cérebro” e biliões de dólares foram investidos na investigação científica do cérebro. Porque é que, depois de uma década de muito dinheiro para investigar o cérebro, nós não sabemos tudo o que há para saber sobre ele? Por que razão é que não esgotámos este objeto? Fica sempre qualquer coisa. Tivemos nomes incríveis na História da Medicina e das Ciências Biológicas, desde o século XIX, a investigar o cérebro. Temos mais de um século de grande investigação do cérebro. Ramón y Cajal, Carl Wernicke, Camillo Golgi… Estamos no século XXI. Porque é que ainda não esgotámos o assunto? Por isso, acho que as ciências do cérebro e as ciências da mente precisam, ainda hoje, de acompanhamento ético. Temo simplificações da natureza humana. E não há político, não há governante, não há pessoa que queira obter resultados, que não apoie facilmente uma simplificação do humano. E o que é mais fácil de encontrar na nossa época é uma teoriazinha muito rápida, muito simples, que simplifica o humano. Nos anos 40/50 apareceu, por exemplo, a teoria computacional. “Como é que funciona o cérebro? Funciona como um computador”. “O que é, de facto, a mente humana? É um programa de computador a correr”. E, com esta simplificação do humano, nós dissemos: Então o que é que está ao nosso alcance? Alterar o programa do cérebro. Podemos alterar os estados mentais. “Você agora está em baixo? Meta a correr um programa de alegria na sua cabeça”. Entendemos a natureza humana como se fosse um computador. Isto é uma simplificação monstruosa da natureza humana. Mas é uma simplificação que dá jeito. Por isso, para nos protegermos destas simplificações monstruosas da complexidade humana, a Ética não pode ser deitada fora.
Numa cultura de investigação científica regida pela máxima “publish or perish” são frequentes os comportamentos não éticos, como a venda de citações. Estará este tipo de ações a empobrecer e desvirtuar a atividade científica? De que forma poderá a Ética intervir para mudar esta realidade?
São ações censuráveis. Não acredito numa Ciência que possa ser conivente com essas faltas. Essas são faltas graves que põem em causa a integridade dos próprios resultados científicos. Não pode haver facilitismo nenhum. Temos, de forma frontal, de combater tudo isso. Depois, há comportamentos – que até são estimados pela comunidade científica -, que, do meu ponto de vista, têm qualquer coisa que não é ético. Estou a pensar nessa selva do “publish or perish”, a publicação de papers com muitos autores. E há muitos autores que, quando se verifica efetivamente o que fizeram, fizeram muito pouco. Diferentes áreas científicas têm tradições diferentes. Nas ciências naturais, nas engenharias, isso acontece muitas vezes. Naquelas áreas em que a investigação obriga mais à reflexão (na História, no Direito, nas Humanidades), acontece menos, mas também acontece. É uma prática universalmente aceite, mas cá está, tenho uma perspetiva muito crítica a respeito desta situação. Penso que não é grave, que não adianta organizar uma cruzada contra ela, mas penso que devemos estar alerta, conscientes de que há qualquer coisa que não está bem. A pressão para se publicar tem estes efeitos muito estranhos. Vemos nomes de pessoas que, de facto, não contribuíram para o trabalho. Isto é, do meu ponto de vista, censurável e deve ser apoucado de forma deliberada. A procura de uma receita universal para tudo correr bem não é fácil, porque há pressões societárias fortíssimas, pressões da carreira, das pessoas, dos salários, da projeção pública, da fama das pessoas. Muitas vezes, as pessoas podem ter um nível intelectual e académico elevadíssimo, mas fazem o que fazem porque estão à procura do nível mais baixo, do nível do pão, da sobrevivência, do salário. Por isso, nesta complexidade humana, muitas vezes não é fácil ver o que é certo e o que não é certo. Os grandes assuntos, como a fraude na investigação, o excesso de autores nas publicações, são fáceis de identificar. Penso que não são dominantes. Ainda bem, para todos nós, que não são a regra, são exceções desagradáveis. Mas penso que devemos combater tudo isso. A grande Ciência é uma Ciência ética. A Ética não está lá para decorar, para impressionar os estrangeiros, para impressionar os painéis que vão, ou não, disponibilizar dinheiro para a nossa investigação. Não são dois assuntos, um fundamental e outro como se fosse um embrulho de um presente. A Ética não é um embrulho. A Ética tem de fazer parte da própria atividade científica.
Quais serão os grandes debates éticos (bioéticos) da próxima década?
Um que me está a inquietar cada vez mais é o ascendente dos nossos filhos tecnológicos, nomeadamente na ciência da computação e na engenharia informática. É a questão da Inteligência Artificial. Durante 99% da história da Humanidade, o Ser Humano foi o protagonista, o elemento decisivo que estruturou o tempo. Hoje, estamos na emergência de outros protagonistas. Estou muito preocupado com isto. Acho que um acompanhamento ético da computação e, sobretudo, da Inteligência Artificial é algo que temos de antecipar. Eu conheço a lógica de tudo isto. Geralmente apresenta-se qualquer assunto que venha da investigação e que surja no nosso quotidiano como uma vantagem: “nós não podemos viver sem isto, a nossa vida vai ser melhor com isto” e ficamos hipnotizados com o discurso da vantagem. “A nossa vida vai ser mais fácil, vai ser mais confortável, vamos ser mais saudáveis, mais ricos, mais bonitos…”. Há sempre mais qualquer coisa. Depois é que vem a fatura. Isto vai custar-nos muito. Penso que, neste momento, a reflexão ética dentro deste nicho (que ainda nos pode parecer pequeno) da Inteligência Artificial, tem o potencial para chegar a todas as zonas da vida humana. Desde a atividade militar, onde já está, ao software das financeiras, onde já há uma reflexão muito grande, à atividade dos robôs no cuidado de seres humanos. Tudo isto já é presente, não estou a antecipar o futuro. Tudo isto já me causa inquietação suficiente. Penso que temos de ter um grande debate acerca da Ética das máquinas. É uma parte muito importante, por isso um grande debate está aqui: a ética ligada à computação e à Inteligência Artificial. E é um assunto muito difícil. Porquê? Porque os grandes clássicos do pensamento humano não sabiam nada disto. Nós estamos a trabalhar sem rede. Se o assunto for amizade, se o assunto for amor, se o assunto for política, nós temos milénios de pensamento humano que nos dão uma rede. Mas agora, para refletir sobre consequências e desafios éticos da Inteligência Artificial, nós temos poucos anos a enfrentar este assunto, não temos um tesouro de sabedoria humana.
Uma segunda grande problemática, mencionei-a há pouco. É o crescimento imparável das formas de paternalismo político. Considero que o paternalismo político é o ácido mais corrosivo da nossa cultura. Hoje os pais não deixam as crianças brincar nas ruas, são muito protetores, querem evitar danos. E há sempre uma bondade. Porque é que o pai tem excesso de paternalismo? Porque ama o filho, não quer que ele passe por desgraças e por coisas terríveis. Nós compreendemos isto numa família. Mas quando é o Estado e o conjunto de estados que estão a promover este excesso de paternalismo temos uma dificuldade enorme. Hoje, o paternalismo cresce em tudo: nos cuidados de saúde, há uma pressão social enorme. “Não queres ser vacinado? Tu és um miserável, tu estás contra a ciência, estás contra o coletivo”. Há uma pressão que muitas pessoas pensam que é tão forte que já não vale a pena resistir. Mas não é só a respeito de vacinação ou de cuidados de saúde: mesmo nos estilos de vida. Eu não quero ter um estilo de vida desportivo. É uma coisa terrível. Tens um quilitos a mais? As pessoas pressionam. A educação então nem se fala. Gostaria de defender um ensino das Clássicas na República Portuguesa. Porque considero inaceitável que nós, que somos falantes de uma língua novilatina, não tenhamos conhecimento suficiente da nossa língua mãe, que é o latim. Considero inaceitável, chocante e verdadeiramente absurdo. “Sr. Prof. Curado, a sua opinião foi registada e não conta para nada”. O excesso de paternalismo é tão assombroso, é tão gritante, que qualquer que seja a zona da vida humana – desporto, educação, saúde, ocupação dos tempos livres, profissões… – o paternalismo cresce sempre e não há forma de apoucá-lo, porque o Estado tem recursos que, se não são plenipotenciários, são quase. São praticamente infinitos, não é? O Estado pode sempre guerrear por mais receitas e recursos em qualquer dos seus programas. Temo que uma grande reflexão ética tenha que ser feita sobre este paternalismo, subtil mas poderoso, que domina a nossa vida. Já nem preciso de dar um terceiro exemplo que se liga às ciências da vida, ao organismo humano, à saúde. Aqui, até por razões de sobrevivência, não podemos deixar de refletir eticamente. Mas como este terceiro é mais antigo, já tens muitas décadas de reflexão da Ética dos cuidados de saúde, não considero tão urgente como os dois primeiros. Se perguntarem qual é o mais perigoso, eu diria o segundo. Estou muito indeciso. Penso que, se não acompanharmos a Inteligência Artificial, a vida humana pode terminar: podemos passar a ser escravos de novas entidades inteligentes e talvez no futuro até sencientes. Isto preocupa-me muito. No entanto há aqui uma diferença: há muitos colóquios sobre a Ética na Inteligência Artificial. Este ano, apesar de ser um ano em que os nossos comportamentos são limitados devido à pandemia, recebo convites para fazer palestras. Mas não recebi nenhum convite para uma palestra sobre paternalismo político e excessos de paternalismo. Aliás, parece que as populações estão sintonizadas. As populações pedem ao Estado que intervenha. Estão a pedir, de facto, o quê? Só leis? Não, estão a pedir formas de auxílio na tarefa de viver. É como se as pessoas do povo dissessem “Nós não somos muito bons a decidir os nossos próprios assuntos, precisamos de uma entidade que nos auxilie a viver a nossa própria vida”. Quando encontramos isto caso a caso, não compreendemos o panorama. Mas nos nossos dias o paternalismo entra em todas as zonas da nossa vida e, muitas vezes, é espantoso. Somos nós a pedir esta ou aquela medida paternalista para melhorar a nossa forma de viver. Tudo isto me faz uma grande confusão. É como se estivéssemos a abdicar da tarefa de cada um de nós viver bem e com sabedoria a sua vida. Estamos a delegar em peritos, em autoridades, em instituições. E dizemos a todas “ajude-me a viver que eu próprio já não sei viver, que eu já tenho muitos anos e preciso de um lar e tu, Estado, tens de enquadrar com bons regulamentos e leis o acompanhamento da terceira idade”. Em cada parte da vida, terceira idade, bebés, adolescentes, vida adulta, não sei se hoje conseguimos viver vidas autênticas, um estilo próprio, ou se vivemos já vidas muito padronizadas. São os problemas do paternalismo galopante da nossa época. Do meu ponto de vista, é o super paternalismo que parece o mais gritante, de tudo o que que estamos a construir. Um dos amigos de um dos homens mais sábios da história da Europa, Montaigne, era La Boétie, que escreveu um livro muito pequenino, por ele era muito novo: “Ensaio sobre a Servidão Voluntária”. Vivemos numa época que podia ser rotulada de “La Boétie”, porque este amigo de Montaigne tinha esta perplexidade: como é que é possível que abdiquemos do nosso poder, da nossa liberdade e até solicitemos ao Estado, aos homens armados, aos reis, às pessoas importantes deste mundo, que orientem a nossa vida? Nós somos mais do que eles, porque é que eles têm mais poder do que nós? Somos servos voluntários, cada vez mais. No tempo de La Boétie e de Montaigne parece que era uma reflexão muito marginal: uma pessoa bem formada, um grande intelectual pensava sobre estas coisas. Mas hoje parece que pedimos para aumentarmos a nossa condição de servos voluntários. Queremos ser, todos os dias, mais controlados por um perito, uma instituição, um governo. Isto causa-me surpresa. Parece que podemos escolher, mas de facto não escolhemos muito. E, na nossa formação, o nosso desejo foi esculpido para desejarmos aquilo e não fazermos muitas ondas, não desejarmos outras coisas. Inquietante, não é?