Autoria: Margarida Almeida (MEBiol)
Francisco Araújo fundou o projeto “Os 230”, no final de 2020, com o objetivo de entrevistar os 230 deputados da Assembleia da República.
Formado em direito, é hoje professor assistente na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. No contexto da atual crise política, o Diferencial entrevistou-o para poder falar um pouco do seu projeto e dos problemas que identifica no desenvolvimento da democracia portuguesa antes das próximas eleições legislativas, em março de 2024.
Francisco Araújo queria dar um contributo para a democracia portuguesa, mas não se queria envolver num partido político. Optou antes por criar um projeto cívico, para tentar dar resposta a problemas que identificou no nosso atual sistema político.
Nas eleições legislativas são escolhidos os 230 deputados que vão integrar a Assembleia da República. Os deputados são eleitos pelos 22 círculos eleitorais, correspondentes aos 18 distritos, às duas regiões autónomas (Madeira e Açores) e a dois círculos no estrangeiro (Europa e Fora da Europa).
A democracia portuguesa segue o modelo representativo, no qual os cidadãos elegem os seus representantes. É lógico que deveríamos conhecer quem nos representa e tem a responsabilidade de tomar decisões em nosso benefício.
É lógico, mas não é prático. Pelo que há valor em proporcionar um ambiente de fácil acesso ao público, em que o deputado se possa apresentar não apenas como uma figura política, mas como pessoa e partilhar seu percurso, interesses e características pessoais.
O projeto “Os 230” procurou criar esse ambiente, durante as legislaturas XIV e XV, tendo conseguido entrevistar 102 e 74 deputados, respetivamente.
As próximas eleições legislativas vão decorrer no dia 10 de março de 2024. No site do projeto, é possível filtrar as entrevistas por ciclo e por partido.
Quando questionado sobre os principais problemas do atual sistema eleitoral, a resposta foi rápida: “ Um círculo de compensação nacional.” Os votos que não elegeram nenhum deputado no seu círculo de origem, seriam reunidos e utilizados para eleger deputados num novo 23º círculo.
“Nós tivemos partidos com dezenas de milhares de votos que não elegeram, porque esses votos estavam dispersos [pelos vários círculos].”
E “assim nós não estávamos a dizer ao interior do nosso país […] que só têm duas, três opções para votar, dois, três partidos, porque senão o voto deles não é útil”
Nas últimas legislativas, 730 mil votos não elegeram qualquer representante [2]. Se este círculo existisse, seria mais improvável voltar a haver uma maioria absoluta. Os dois maiores partidos iriam perder deputados para este círculo e seria mais fácil para os partidos médios eleger.
“Era essencial também diminuir os círculos, não faz sentido termos círculos tão grandes em Lisboa e no Porto.”
Se o eleitor deve procurar conhecer os seus representantes, o eleitorado dos círculos de Lisboa e do Porto estão sobrecarregados. Se o círculo de Lisboa, por exemplo, fosse partido em círculos mais pequenos, os candidatos a deputados seriam mais escrutinados pelo respectivo eleitorado, e o poder estaria menos concentrado.
“A nossa Constituição permite, […] termos círculos uninominais, se bem que têm os seus problemas.” O eleito pode ver-se mais como um representante desse círculo, sendo que a Constituição define que os deputados representam o país, e não só o seu círculo.
“Se nós tivéssemos círculos mais pequenos, permitíamos [também] que nesses círculos pudessem existir listas independentes.”
E segundo o Francisco, mais intervenientes no espaço político é, de um modo geral, positivo, até porque poderão ser parte da solução do próximo problema: “Eu acho que caminhamos num sentido muito de uma partidocracia. Ou seja, os partidos começam a comportar-se como se fossem o Estado. E a confundir o que é o Estado, o que é o interesse do país, com o que é [o interesse do partido].”
“Temos uma lógica muito eleitoralista, que é normal numa democracia, sobretudo numa democracia que não atinge um certo espaço de maturação, que é, nós estamos constantemente a pensar nas eleições e em perceber qual é o nosso eleitorado.”
“Não há preocupação com o resultado [do discurso político]. Há preocupação de passar uma mensagem ao eleitorado. […]Vamos definir qual é o nosso eleitorado e comunicar […] as principais promessas. É o que se está a discutir agora, parece que estamos numa altura de saldos: É menos imposto, mais salário…”
“E a própria qualidade dos deputados vai ser por comunicação, não retórica, que são coisas diferentes. Por comunicação de slogans, de mensagens simples e verdadeiramente não há nenhuma discussão profunda. […]Às vezes, há coisas que nem constam nos programas eleitorais, mas […] o primeiro partido a defender, defende uma posição e o outro tem que defender o contrário. É aquela lógica de que não precisamos da oposição, e então não há compromisso.”
“Estamos muito dependentes só de dois partidos, não é saudável numa democracia. E se formos a ver, a maioria é moderada. Como é que nós não percebemos que estas pessoas querem esses compromissos?”
“A política faz compromisso, senão, o país não evolui, senão, andamos com uma lógica bipolarizada, como existem muitos países que não se vão desenvolver nos próximos anos, muito por causa disso: porque se aprova uma coisa, a seguir vem outra”
Francisco Araújo aponta a educação do eleitor como solução a este problema. O eleitor, na hora de votar, deveria considerar mais quem é que pode servir melhor o país do que quem vai defender melhor os seus interesses.
“A Assembleia da República não é uma sociedade por cotas. Ou seja, um partido não é acionista e vale 120 em 230, senão, era simples.”
Caso assim fosse “seria mais barato ao Estado e se calhar as discussões eram mais fáceis.” Certamente, nem que fosse por existirem menos intervenientes. A partir do momento em que o deputado passa a unidade em 230, seria provável que este passasse a ser mais um reprodutor do discurso partidário do que um interlocutor próprio.
Segundo Francisco, muitas das questões votadas na Assembleia da República nem fazem parte dos programas eleitorais, pelo que é importante que os deputados tenham as suas ideias, os seus valores, o seu percurso.
“É importante mostrar que os deputados, mesmo estando dentro de um partido, preservem essa liberdade de pensamento, mostrar que mesmo dentro dos partidos há muita diversidade, que é normal e que é saudável, e estimular mesmo esse papel do deputado enquanto pessoa.”
“É importante que os partidos percebam que, para além de estarem a meter nomes nas listas, têm de garantir que essas pessoas têm qualidade suficiente.”
“E isso cabe a nós, também, nas eleições, de percebermos que nós não votamos, a votar só para o Primeiro-Ministro. Estamos a escolher pessoas que vão desempenhar um trabalho na Assembleia da República.”
“O Kennedy tem um livro muito interessante “Retratos de Coragem”, que fala de grandes estadistas que pensaram mais no Estado que às vezes pensaram no próprio partido e votaram mesmo contra os seus partidos.”
“Mas isto deve ser uma coisa usual, não podemos apagar o que é que são as individualidades. E isso é um erro que pode custar muito caro aos partidos. Porque vai haver um descontentamento cada vez maior, vai haver cada vez menos militância e não se sabe para que sistema poderemos partir. E podemos partir para um sistema pior por desconficção ao que temos neste momento.”
Outro dos fatores que mais perturba as decisões do eleitorado são os órgãos de comunicação social: “Quem define a agenda política em Portugal são [eles]. E isso leva-nos a perceber o que é que está mal. Porque é que não se discutem grandes ideias, não se discutem grandes visões próprias.” E quando a discussão é rasa, estamos mais vulneráveis a aceitar discursos populistas. “E Portugal, eu acho, tem sempre um sentimento de imunidade, de que as coisas não acontecem em Portugal. Acontecem, mas nós somos os últimos.”
“Nós não trabalhamos para aperfeiçoar esta democracia. Primeiro, não temos garantido que será sempre uma democracia o nosso sistema. Nem que será uma democracia de qualidade.”
“O que é que falta? Falta liderança. Liderança não é só nos partidos políticos e instituições políticas. Acho que falta liderança nos movimentos sociais.”
Sobre o envelhecimento da população e a representatividade das várias faixas etárias nos cargos políticos, há ainda uma grande falha no que toca à representatividade da população jovem. Na 1ª legislatura foram eleitos 81 deputados com até 35 anos (definição de jovem segundo o critério europeu) [7], número que foi decrescendo progressivamente. Na legislatura XIV foram eleitos 35 jovens e na e legislatura XV, somente 20. Os partidos parecem não conseguir captar jovens. E o fundador do ”Os 230” associa esta falha ao facto de a carreira política, de um modo geral, ser pouco atrativa para jovens competentes.
“É o que está a acontecer em muitos centros da nossa sociedade: são entupidos, porque as pessoas chegaram lá [ao topo da carreira] muito cedo e não saem, então não se renovam, e essa renovação deve existir e é saudável para o desenvolvimento de qualquer instituição. […] Se nós não damos oportunidade a outros, […] vamos afastar [as novas] gerações e quando houver uma transição é muito mais difícil.”
No podcast “Entre Deus e o Diabo”, do jornalista do Expresso Vítor Matos, sobre o percurso do líder do Chega para o extremismo político é dado a entender que André Ventura fundou o partido, aos 36 anos, sabendo que ia demorar muito tempo para se tornar numa figura relevante no PSD, se é que isso alguma vez seria possível. Em comparação: “O [atual] Presidente da República, aos 20 e tal anos, já desempenhava funções executivas. Quando mudámos de regime, afastámos os que lá estavam ou, pelo menos, a grande parte dos que lá estavam, e subiu a nova geração.[…] Não havia medo de apostar nos jovens.”
Voltando aos jovens, a escolha dos cargos internos dos partidos, quando acontece, muitas vezes não é feita com base nas suas competências, mas sim pela afiliação ao partido. Tornam-se pessoas importantes para a estrutura do partido, mesmo sem se destacarem, e são escolhidas para cargos por serem jovens num partido que se quer mostrar jovem.
“E isso afasta os restantes jovens porque pensam: Eu não quero ficar com este rótulo de chegar lá só por ter um cartão partidário. Porque é desprestigiante e porque não é uma vida propriamente agradável até pela exposição que tem.”
“Partidos […] são estruturas ainda muito rígidas, […] que não estimulam sempre a liberdade de pensamento e isso afasta muita gente.” Cabe ao eleitorado sinalizar que quer “apostar em jovens não por serem jovens mas por serem competentes.”
Ainda na questão da representatividade, como seria de prever, a área de formação profissional mais comum entre os deputados é direito. “É um curso que muita gente, quando tira, tem essa perspectiva porque dá uma base transversal, dá uma boa preparação, até porque é um órgão legislativo.”
Na legislatura XII, por exemplo, 71 dos 230 (cerca de 31%) deputados tinham formação em direito [3]. Segundo dados do Pordata [4], cerca de 0.33% da população portuguesa é formada em direito. Esta sobre-representação é particularmente discutível dadas as incompatibilidades entre a prática e o cargo de deputado [5].
O problema, segundo Francisco Araújo, estará, em parte, associado à falta de interação entre alunos de diferentes faculdades, neste caso, das faculdades de direito com as restantes, o que leva a que, no momento de formar listas, ao procurarem na sua esfera por integrantes, apenas consigam chegar a pessoas com formação em direito ou semelhantes.
“Na Universidade de Lisboa, nós não temos nenhum campus, nós não temos sentimento de campus. Agora que vamos ter uma residência [no campus, a António Cruz Serra], se calhar, esta residência vai moldar o futuro da política deste país no sentido em que as pessoas vão conviver com pessoas de diferentes cursos e vão juntar funções e se calhar quando fizerem convites, ou quando montarem equipas já terão mais transversalidade”
“Eu acho que, se eu estiver a construir uma lista, tendo a pensar quais são os ministérios mais importantes, esses ministérios que eu vou procurar que tenham alguma formação e que sejam competentes nestas áreas.”
Mas o entrevistado alerta: “Nós também não podemos viver numa tecnocracia […], tu não vais convidar uma pessoa [para o governo] por ser o melhor aluno de doutoramento e ter prémios internacionais nessa área, tem que ter uma componente política. Agora tem que ter [também] obviamente valores, tem que ter capacidade de liderança, porque são funções de liderança, tem que ter uma visão de trabalho boa e não ser uma pessoa excessivamente teórica.”
“Das coisas que tentamos trabalhar no projeto [“Os 230”], é dar caminhos às pessoas de várias áreas para fazerem política, para pensarem nas coisas, debaterem e apresentarem propostas.”
“[Um ministro] tem que ser uma pessoa que ou conhece da matéria, ou está disponível para ir conhecer a matéria. Está disposta de ir ao terreno. […] Às vezes quando trazemos um profissional de uma área para essa mesma área, não há também um grande entendimento com os mesmos profissionais da própria área. Às vezes é preciso uma visão de fora.”
“Na assembleia é que não há dúvida nenhuma, se é um espelho da sociedade tem que estar lá pessoas de várias áreas porque estarão mais aptas a falar sobre isso.”
“No final é sempre o eleitorado que tem de corresponder a partidos que dizem […], nós temos pessoas diversas mas pessoas competentes de todas as áreas. […] Não se dá só por uma lei de definição de quadros.”
Porém, a crise política permanece e, em março, o povo português vai às urnas, por causa das eleições legislativas. Estas são as eleições que definem quem vão ser os deputados da Assembleia da República durante a legislatura e é a composição da Assembleia que dita que partido, ou coligação, o Presidente da República irá convidar para formar Governo. Pelo que estas eleições acabam por definir, ainda que indiretamente, quem vai ocupar o lugar de Primeiro Ministro.
E o Primeiro-Ministro “é a figura com mais peso na vida pública. […] O Primeiro-Ministro tem um poder imenso. É quem constitui o Governo e o Governo às vezes legisla mais que a própria Assembleia.” E assim as eleições legislativas passam a ser as eleições para o próximo Primeiro-Ministro.
“Fazem [aos eleitores] duas perguntas, quando nós, num voto, podemos ter respostas diferentes para essas duas perguntas.”
“Eu acho que o nosso sistema tem que passar por um sistema mais próximo do alemão, em que a pessoa pode distribuir de maneira diferente o seu voto, ter um voto também preferencial.” No sistema alemão o eleitor vota duas vezes. Com o “primeiro voto”, é escolhido um político de um partido do distrito eleitoral a que se pertence. Com o “segundo voto”, é escolhido um partido a que o eleitor quer dar mais peso no parlamento. Os resultados do primeiro e do segundo voto decidem com igual peso a composição do parlamento. Partidos que recebem menos de 5% dos votos, não chegam ao Bundestag.
Fazer uma eleição direta para o Primeiro-Ministro também não se adequaria ao nosso atual sistema. “Daria uma legitimidade na prática ao Primeiro-Ministro que o equiparava ao Presidente da República, e isto no equilíbrio de poderes poderia ser um bocado estranho.”
Referências:
[1] Mapa Eleitoral de Portugal em 2019 – Wikipédia
[2] IL propõe círculo de compensação no sistema eleitoral – RTP
[3] As profissões dos deputados – Renascença
[4] Dados sobre os advogados em Portugal – Pordata
[5] Advogados dominam um Parlamento que lhes trava restrição de funções – ECO