Autoria: João Carranca, LEEC
A Iniciativa Liberal foi um dos grandes vencedores destas passadas eleições legislativas, passando de 1 para 8 deputados em 2 anos. Muitos dos seus votos vieram da nossa geração e o partido reconhece isso, gostando de se apresentar ao país como um partido de futuro e de jovens. Carlos Guimarães Pinto, um dos mais proeminentes deputados estreantes desta legislatura e ex-presidente do partido, teve a simpatia de aceitar o nosso convite para uma entrevista dedicada à atualidade política até, ao futuro dos jovens e ao impacto da pandemia. Ainda desabituado aos inúmeros corredores do parlamento, recebeu-me, enquanto representante do jornal, num dos novos gabinetes da IL.
JC: Queria começar por falar um pouco do seu percurso; passou pelo Dubai, a partir de 2007 saiu da Faculdade de Economia da Universidade do Porto e foi para o Dubai, ficou lá até 2015, salvo erro.
CGP: Antes de mais, muito obrigado pelo convite e pela oportunidade de dar esta entrevista. Eu estudei economia na faculdade de economia do Porto, quando os cursos ainda eram de 5 anos, e depois fui contratado por uma consultora em Portugal. Estive a trabalhar em Lisboa durante 1 ano e a certa altura apareceu um headhunter que me convidou a candidatar a um emprego no Dubai. Eu estive lá um pouco mais de 7 anos, regressei depois a Portugal em 2015 para fazer o meu doutoramento, revisitar e matar saudades. Enquanto o fazia, tinha uma certa perspetiva de poder voltar novamente ao Dubai, mas acabei por ficar cá mais tempo, foi basicamente isso. Antes de ir para o Dubai já tinha estado 6 meses na Índia, estive na Turquia durante um semestre, e tinha trabalhado na Roménia dois meses.
JC: Portanto tem uma noção do mundo, já passou por uma quantidade razoável de sítios.
CGP: Sim, até porque eu fui para o Dubai, mas o Dubai era apenas a minha base – a minha empresa era lá, eu passava lá o fim de semana, passava lá um dia por semana na minha empresa – mas em boa parte das semanas eu ia para outro país qualquer, porque o meu emprego exigia bastantes viagens. Passava sempre dois ou três meses num dado país, estando lá 4 dias por semana, e voltava no fim de semana para o Dubai, e foi assim durante o pouco período que lá estive. Se virmos ali um triângulo entre Nigéria, Filipinas e Cazaquistão, estive por quase todos os países dentro desse triângulo.
JC: Que mudanças de mentalidade é que experienciou nos seus anos no Dubai, com toda essa experiência?
CGP: Sabes, quando se visita muitos países, ao conhecer, trabalhar e interagir com as pessoas, no princípio a primeira coisa que se nota são as diferenças – como é que um nigeriano é diferente de um uzbeque ou de um filipino, ou de um europeu ou o que quer que seja. A partir de certa altura começa-se a apreciar mais as semelhanças entre todos, porque quando convivem pessoas de diversas culturas, aquilo que têm de semelhante entre si- que é grande parte das coisas- é aquilo que nos define enquanto seres humanos, e isso permite-nos reconhecer muito da natureza humana, porque expurgamos a questão cultural. Aquilo que as diferentes pessoas de diferentes países têm de igual é aquilo que nos define enquanto seres humanos, e eu acho que isso me ajudou muito a perceber o que é que nos define enquanto seres humanos.
JC: Portanto, neste contexto das questões do tempo que passou lá fora, sei que já deu aulas em Hanói, no Vietname, e eu vi uma entrevista em que fala de como é que eram os alunos lá e quais é que eram as diferenças, e de como eram dos melhores alunos que já teve, eram muitíssimo investidos, e tinham imenso interesse em aprender. A minha pergunta é: o que é que nota de diferente entre o ensino universitário lá e cá e o perfil dos alunos lá e cá?
CGP: Eu fui para Hanói pela primeira vez em 2017. Estive lá nesse ano letivo, e voltei a estar enquanto era presidente do partido. Estive lá um mês por ano para dar uma cadeira concentrada nesse mês. Depois voltei, quando deixei de ser presidente do partido, e chegou a surgir um rumor de que tinha emigrado para Hanoi, quando era uma coisa que fazia todos os anos(risos). Era uma experiência de que eu gostava muito por se tratar de uma grande universidade, uma das principais do Vietname e que atrai os melhores alunos do país todo. Estamos a falar de um país muito grande. A primeira vez que lá fui, dei uma cadeira que já não dava há muito tempo e por isso tive de ir estudar. Estudei o manual capítulo por capítulo e no final de cada capítulo havia uma série de exercícios. Para alguns do mais difíceis eu ia confirmando as minhas resoluções nas soluções para ver se estava tudo bem. Surpreendentemente, cheguei às aulas e quando cheguei à parte prática, percebi que muitos alunos tinham tudo feito, mesmo aqueles exercícios mais difíceis de que falei. Os trabalhos de grupo depois confirmaram que eram de facto alunos mesmo muito bons com capacidades matemáticas extraordinárias, acima do meu nível. Estamos a falar de alunos de 22/23 anos comparados comigo, e eu estava nessa altura a fazer o meu doutoramento. Fiquei positivamente surpreendido com o potencial brutal que ali estava.
JC: Também dá aulas na UPorto. Consegue fazer uma comparação direta?
CGP: Como em qualquer faculdade, Hanoi tem alunos maus, alunos medianos e alunos muito bons. Eu diria que os alunos muito bons de lá serão melhores que os alunos muito bons de cá. Mas há que dizer que o Vietname é muito maior e que naquele pólo em Hanói estavam os melhores alunos do país todo.
JC: Mudando um pouco de tópico e falando dos engenheiros e do Técnico, diz-se muito que lhes faltam capacidades de comunicação e que isso é um entrave à progressão de carreira. Tem alguma sugestão de complemento à formação atual que recebem os engenheiros neste país?
CGP: Eu trabalhei em consultoria estratégica e posso dizer que alguns dos melhores colegas de profissão que tive eram precisamente engenheiros. Agora, há muitas pessoas com enormes capacidades analíticas e que não têm facilidade em comunicar. Eu próprio sempre tive dificuldades nesse departamento e ainda hoje, apesar de ter melhorado, tento trabalhar nisso. Muitas vezes não se trata só da comunicação mas da gestão de imagem. A imagem também conta na altura de comunicar. Acho que não é uma questão específica dos engenheiros. Creio que é algo que não se trabalha na universidade no geral. Lembro-me que no meu tempo quase não se faziam apresentações orais. Haviam muito poucos grupos em que as pessoas se expunham. Acho que a necessidade de treinar a comunicação é muito grande. Não tanto no início de carreira mas ao começar a querer progredir serão precisas todo o tipo de “skills”. Uma delas é a comunicação, e outra também muito importante na minha opinião é a gestão de relações interpessoais – como é que se gere equipas e como é que se gere a própria pessoa. Falo disto por experiência. Eu comecei a minha carreira sem nenhuma destas capacidades e tive de as desenvolver.
JC: Acha então que deveriam haver mais apresentações e mais conferências, entre outros?
CGP: Eu não sei se dentro das disciplinas devia haver mais dessas atividades. Às vezes com os tamanhos das turmas é insustentável. Aquilo que recomendo muito é que sejam vocês a tomar essa iniciativa, a criar os núcleos e eventos dedicados a essas áreas. Uma das coisas que me ajudou mais na universidade foi a AEISEP, à qual me juntei voluntariamente. Acho que deviam promover clubes de debates, por exemplo. Não tenham medo que as coisas corram mal, se há altura em que se podem dar a esse luxo é agora, não quando estiverem em frente a um CEO a fazer uma apresentação para o trabalho.
JC: Falando agora de educação, tópico que vai ocupar boa parte desta entrevista, o seu partido propõe uma reestruturação do sistema atual de colocações no ensino público. Já falou muitas vezes dos “guetos” localizacionais que existem com o sistema atual em que os alunos são colocados por área de residência. Dando o exemplo da secundária D.Filipa de Lencastre, que por ter boas classificações nos rankings tem muita procura, excedendo largamente as vagas disponíveis. Que critérios sugere para substituir os atuais numa situação destas em que nem todos vão poder entrar?
CGP: Acho que o ponto principal desta discussão é dar autonomia às escolas para se gerirem, nomeadamente para poderem escolher o número de turmas que têm. Aquilo que acontece é que uma escola, mesmo que seja muito boa, não pode aumentar a sua oferta. O que nós queremos é que as escolas boas possam aumentar a sua oferta e as piores, como têm menos procura, diminuam cada vez mais a sua oferta. Outro pilar importante disto é que haja liberdade dos alunos, ou seja, um aluno pode querer escolher a Filipa de Lencastre, mas também pode querer escolher outra escola ao lado que não faça parte da rede pública. Eu entendo, até certo ponto, que o critério territorial acabe por fazer parte, o que não entendo é que não exista um mecanismo de autonomia dentro das escolas para que possam receber mais alunos. Se o seu vencimento depender do número de alunos, deveriam poder arranjar uma maneira de terem mais salas, contratarem mais professores e funcionários, para que possam receber mais alunos, algo que criaria incentivos a todas as outras escolas para copiar os métodos usados pelas melhores escolas. Se permitirmos isto, ainda assim haveria um limite de alunos que poderiam ingressar na Filipa de Lencastre, e aí sim deveriam entrar critérios como a questão territorial. Tenho no entanto algumas reservas em relação à maneira como foram desenhados os mapas territoriais de acesso a certas escolas. O da Filipa de Lencastre, por exemplo, não é propriamente concêntrico, parece mais uma espécie de estrela. Mas voltando ao essencial desta proposta, o que nós queremos é dar liberdade de escolha entre escolas da rede pública e escolas da rede privada desde que custe o mesmo ao estado, e que as escolas, em termos financeiros, dependam do número de alunos que lá se inscrevem. Isto criaria um conjunto de incentivos para que as escolas melhorassem a sua qualidade e que recebessem alunos não porque estes vivem ali perto, mas sim porque são efetivamente boas. Se fizermos isto deixaremos de criar este tipo de guetos territoriais.
JC: Outra questão em relação ao ensino, desta vez direcionada mais ao ensino universitário e não tanto ao secundário: durante a pandemia falou-se muito num regime de ensino híbrido de aulas que se prolongasse para além da pandemia. Acha que isto é preferível ao retorno que se tem visto ao modelo 100% presencial?
CGP: Eu acho que isso não deve ser uma questão política, e que não deve ser resolvida na Assembleia da República. As universidades devem ter autonomia para criar modelos de ensino. Pode haver universidades que optem por esse modelo híbrido ou até por um modelo 100% on-line e devem ter liberdade para isso. Agora eu pessoalmente acho que a existência de uma componente presencial forte é importante até para a formação pessoal dos alunos. Não gostaria muito de ver uma geração inteira de alunos a fazer três anos de licenciatura, mais dois de mestrado, sentados em casa sem ver os amigos, sem ter encontros românticos, quando estão na idade para isso. Haverá certamente alunos que fazem a sua vida social fora da universidade e até dirão que preferem ter aulas on-line, tenho no entanto que dizer que em certas disciplinas acho que isso não funciona. Em cadeiras mais matemáticas, por exemplo, em que é preciso fazer exercícios, a interação presencial é importante.
JC: Continuando no tema do on-line, Portugal foi o país que mais tempo esteve com as escolas fechadas durante a pandemia. Cerca de 9 meses no total. Não estávamos preparados e correu mal, no entanto não houve qualquer recuperação de aprendizagens no verão por exemplo, ao contrário de outros países. O que é que acha que ainda pode ser feito para recuperar estes alunos, em particular no básico e na primária, que perderam conteúdos essenciais?
CGP: Eu acho que uma parte da recuperação que tinha de ser feita, deveria ter sido feita em cada um desses anos e não foi feita. Isso está perdido e vamos sentir ao longo dos próximos anos as consequências das decisões que foram tomadas. No entanto, não está tudo perdido. Eu acho que devia haver um programa de recuperação de aprendizagens em que tivéssemos um mecanismo de avaliação para perceber que perdas foram essas, e onde é que elas estão localizadas. Eu não me consigo imaginar a ter perdido meses de aulas no 11° ou no 12° ano. Vamos ter uma perda de qualidade notável, sem qualquer culpa dos alunos, como é óbvio. Lembro me que em 2020, uma forma usada para tentar mascarar essas perdas foi a de fazer os exames nacionais mais fáceis. Não podemos esquecer que grande parte dos avanços técnicos são feitos por uma pequena minoria de tipos geniais, os 5% melhores. Eu tenho medo que esses 5% que iam liderar o avanço tecnológico nos próximos anos não tenham tido a preparação necessária. A maioria das coisas que as pessoas fazem no trabalho não foram aprendidas na escola, foram aprendidas no primeiro emprego e ao longo da carreira, no entanto, estes tais 5% dependem muito da formação teórica que receberam ao longo de todo o seu percurso académico, porque vão usá-la a vida toda. O facto de terem tido essa fragilidade no período de aprendizagem vai pôr em causa todo o progresso tecnológico que vamos ter no futuro. Isto é um dos problemas, o outro problema é que sendo a educação uma das bases para a mobilidade social e tendo sido os alunos mais pobres os que menos acompanhamento tiveram, são estes que vão ficar para trás. Os outros, muitas vezes, têm outros recursos disponíveis, têm pais com qualificações superiores e por isso não sofreram tanto. A minha mãe tinha o 6°ano e o meu pai tinha o 9°ano. Se eu tivesse falhado aulas, por muita boa vontade que os meus pais tivessem, não me poderiam ter ajudado. Termos colocado um entrave à mobilidade social destes alunos e termos aumentado o fosso entre os mais ricos e os mais pobres é algo que não nos devemos perdoar.
JC: E, por exemplo, em relação à componente social: acha que o uso da máscara, assim como o sobreuso dos ecrãs, especialmente nos mais jovens, terá um impacto significativo na saúde mental e na capacidade de sociabilização dos alunos?
CGP: Eu temo que sim. Não sou especialista na área portanto não me vou arriscar demasiado, mas se nós pensarmos hoje, as crianças que vão entrar para a primária já não sabem o que é viver num mundo sem máscaras. A normalidade para eles é aquilo, é estarem rodeadas de pessoas que não sorriem. Dito isto, nós já tivemos gerações que passaram por guerras e que se tornaram bastante válidas e fizeram coisas fantásticas, e há que pensar que as crianças são mais resilientes do que pensamos que são. Ainda assim, amedronta-me muito o facto de estarmos a criar um conjunto de pessoas que cresceram no medo. Eu conheci uma miúda no infantário em que tiveram de trocar o álcool gel por uma solução só de água porque sempre que deixava cair uma coisa ou tocava no chão ia limpar as mãos com álcool gel. Espero que não seja tão mau como alguns preveem mas acho que tudo isto era algo evitável.
JC: Ainda dentro do ensino, um dos temas mais controversos da atualidade académica é a falta de residências universitárias e o seu preço. Creio que a posição da IL em relação ao assunto é que se trata de algo que o mercado pode resolver. A minha pergunta é, tendo em conta os preços das casas atualmente em Lisboa por exemplo e a enorme procura nacional e internacional, se as residências forem construídas e geridas por privados, e tendo em conta que muitos dos que procuram casas em Lisboa têm muito mais poder de compra que o comum estudante, que incentivo teriam estes privados para arrendar as suas casas a estudantes?
CGP: Vamos por partes. As residências universitárias não são um bloco de apartamentos nem hotéis. Têm exigências muito específicas até a nível de espaço. Um estudante não está à espera de viver num T2 sozinho. Uma residência universitária pode ser mais rentável que um complexo de apartamentos de luxo por ter exigências diferentes em termos de localização, em termos de espaço. Uma residência universitária tem de ter um espaço comum, muitas vezes os quartos são partilhados. O que me parece é que quando falamos de privados não estamos necessariamente a falar de for-profit, estamos a falar de cooperativas, e estamos a falar de associações académicas que façam o seu próprio investimento, que tenham os seus próprios fundos para lançar cooperativas de habitação, e isso tem aparecido. Também acho que aos poucos vai sendo importante a descentralização do ensino universitário, mesmo dentro da própria área metropolitana de Lisboa. Muitas vezes consegue-se oferecer uma melhor qualidade de instalações, de espaço e de residências universitárias fora dos centros das grandes cidades e isso também ajudaria a resolver esse tipo de problema. Eu acho que vai acontecer um pouco de cada. Por um lado, a tal iniciativa privada for-profit, por outro, as iniciativas de cooperativa e de associações de estudantes ligadas às universidades e finalmente a própria deslocalização que vai permitir haver mais espaço, infra-estruturas novas e residências mais acessíveis.
JC: No programa da Iniciativa Liberal, no que toca a privatizações é referida claramente a intenção de privatizar a RTP e a CGD. Tem alguma posição pessoal ou existe até alguma posição consensual na IL sobre a CP?
CGP: Em relação à CP, acho que é importante que esta não seja monopolista. Há regulamentos europeus que Portugal ainda não cumpriu no sentido de abrir o mercado de transportes de longa distância a outras companhias. Isso tem sido adiado através de diversos truques. A partir do momento em que houver concorrência deixa de fazer sentido que pelo menos a CP longo curso continue a ser pública. A CP carga já há imenso tempo que devia ser privada e, mais uma vez, estar em concorrência porque senão o que temos é uma empresa que não tem incentivo à boa gestão: primeiro porque não está no mercado concorrencial e depois porque sabe que sendo pública, qualquer que seja o défice que tenha, vai ter sempre financiamento para isso. Aliás, Portugal ainda é um dos poucos países onde a sua principal empresa de comboios é exclusivamente pública. Quando falamos na questão suburbana onde existe a necessidade de ter uma boa rede frequente mesmo que dê prejuízos, aí pode fazer sentido ser público ou então privado com algum tipo de financiamento público. Nós temos um exemplo hoje que é a Fertagus que presta um serviço de comboio suburbano.
JC: Mas por exemplo, imagine a ligação Portalegre-Lisboa. Que incentivo é que uma empresa privada teria para manter uma ligação dessas a funcionar, já que não dá lucro e custa muito dinheiro em termos de manutenção e gestão?
CGP: Eu diria que ainda hoje não existe uma boa ligação Portalegre-Lisboa de comboio. Não existe porque se existe daria ainda mais prejuízo. Acho que não podemos ser muito românticos em relação a isso. Às vezes a melhor solução pode até ser uma ligação de autocarro. Depende do fluxo de pessoas que se espera. Não tenho informações específicas sobre a ligação Portalegre-Lisboa. Agora, se houver benefícios naquilo que se refere à coesão territorial, aquilo que pode acontecer é haver um financiamento de uma parte dos custos por parte do estado, e aí sim já existiria um incentivo da parte dos privados para gerir essas linhas. Podemos pensar por exemplo no caso das companhias aéreas. A certa altura pensou-se que haveria benefícios em ligar o Porto ou os Açores a determinados destinos, e que as autoridades de turismo local fizeram foi dizer: “Nós temos aqui 1 milhão de euros para quem fizer 30 voos por ano para este destino. Quem é que quer este dinheiro?” e apareceram companhias aéreas para fazer isso. Muitas vezes quando eu falo da TAP dizem “Ah mas a Ryanair também recebe subsídios”. Recebe subsídios, mas são concorrenciais porque houve ali um organismo local que disse “Nós queremos ter voos para o sítio X e, apesar de não serem lucrativos, achamos que são importantes estrategicamente para nós e vamos financiar quem estiver disposto a fazer esses voos”. Se fosse a Ryanair era a Ryanair, se fosse a Easy Jet era a Easy Jet. Isto é muito diferente do dinheiro que a TAP recebe. A Ryanair recebia dinheiro para fazer voos, a TAP recebe dinheiro porque não os faz e tem prejuízo. Por isso, em circunstâncias muito específicas pode justificar-se certas ligações serem financiadas neste modelo. Não vejo é porque é que este financiamento tenha de ser feito por um organismo público que responde ao ministério, e que tenha uma estrutura burocrática. Não vejo essa necessidade específica.
JC: Eu vi algumas das suas posições em duas ou três entrevistas. Em relação à flat tax, por exemplo, diz que não se importaria que a partir de certo rendimento se mantivesse os 45%, desde que ficasse bem definido esse rendimento. Em relação às propinas diz que no mundo ideal desapareceriam. Em relação ao salário mínimo, falou do salário mínimo municipal em vez do salário mínimo nacional. Quanto ao RSI, disse que acredita numa safety net e que atualmente o RSI é pouco e devia aumentar. Isto parecem ser tudo posições quase sociais democratas, mais próximas da Suécia do que por exemplo da Irlanda e da Holanda. Acha que isto é uma interpretação errada?
CGP:(Risos)Acho que tudo isso seriam posições que seriam implementadas na Holanda e na Irlanda. A própria Suécia é bastante mais liberal do que as pessoas pensam. A Suécia e os países nórdicos têm de facto salários mínimos descentralizados. São salários mínimos negociados de setor a setor, algo que até acho que pode ser uma resolução interessante. A safety net de que eu falo aqui foi definida por Hayek, que é uma referência do liberalismo económico mundial. A safety net que temos em que ninguém é recusado cuidados de saúde nem educação é bastante ”Hayekiana”. Eu acho que o RSI bem feito consistiria na prestação social por excelência, porque efetivamente garante que ninguém pode descer abaixo de um certo nível. Acho que era mais importante gastar dinheiro em algo como isto do que em muitas pensões não contributivas que existem hoje em dia. Devíamos dizer: “Ninguém neste país pode viver com menos do que isto”. Em relação às propinas, eu honestamente acho que no mundo ideal as propinas não deveriam existir. Neste momento, caminhamos nesse sentido, trata-se cada vez mais de um custo residual. Acho que o método de financiamento é discutível. Diria que as pessoas que utilizam o curso e depois têm sucesso profissional poderiam financiar essa componente. Em relação à flat tax, acho que é uma ideia importante para valorizar os rendimentos sobre o trabalho que é um dos problemas que nós temos. Alguém que não tenha nada, que não tenha uma herança monetária ou social, tudo aquilo que pode usar para subir na vida são os rendimentos adquiridos com o trabalho e quando escolhemos punir fortemente os rendimentos do trabalho o que estamos a dizer é que quem parte do zero não pode ter ascensão social. Quando eu falo da flat tax a resposta é sempre “Ah, vocês querem é que os milionários não paguem tantos impostos”, e a minha resposta a isso é sempre a mesma. Digam-me quanto é que ganha um milionário. Neste momento as nossas taxas mais altas aplicam-se a salários que não são de milionários. São de pessoas que tiveram algum sucesso na vida e que podem aspirar a mobilidade social. Ninguém que ganhe 4 ou 5 mil euros, que é um salário alto em Portugal é milionário. Alguém que ganhe 5 mil euros por mês líquidos, ou seja 100 mil por ano brutos, se estiver a partir do zero, até conseguir poupar o suficiente para comprar um apartamento no centro de Lisboa vai ter 50 anos. Isto não é um milionário. Por isso é que eu desafio quem critica esta medida a dizer-me quanto é que ganha um milionário. A partir daí, defendo taxas a 45%, ou o que quiserem, mas poupem o resto das pessoas. Seria um grande avanço se conseguíssemos ter duas taxas em Portugal, uma de 15% até certo rendimento e outra de 45% ou mais a partir desse certo rendimento.
JC: Avançando agora para o plano internacional, tem havido uma subida de preços brutal em quase todos os setores, nomeadamente no alimentar e na construção. Acha que os governos e os políticos em geral, não só cá como na Europa toda, podem fazer alguma coisa para minimizar os danos?
CGP: Eu começo por uma coisa: esta subida de inflação já estava a acontecer antes da guerra na Ucrânia. Acho que se vai ver muito esta desculpa de que a inflação só existe por causa da guerra. A subida que já se via antes aconteceu por duas ordens de razões. A primeira é a política monetária expansionista que temos seguido ao longo dos últimos 10 anos, e que no princípio apenas atingiu os preços dos ativos, como por exemplo das ações e o imobiliário, mas que foi cada vez mais chegando à economia real. A segunda foi o que aconteceu durante a pandemia. Primeiro houve uma retração muito grande da procura. Ao fim de alguns meses, a oferta retraiu-se para o nível onde estava a procura. Depois, com o fim dos confinamentos e afins, a procura disparou, só que a oferta demora muito mais tempo a reagir e a reconstruir-se. Esta inflação é resultado disso. Isto vai demorar muito tempo a ser corrigido, e mesmo quando for corrigido continuamos a ter o problema monetário com que lidar. Depois temos a guerra. Há uma componente disto que nós, mesmo enquanto políticos, não podemos evitar. Foram escolhas que foram feitas no passado e nós não podemos fazer nada em relação a elas. O que é que nós podemos fazer? Podemos primeiro fazer com que o setor público absorva parte desse impacto. As pessoas vão sofrer todas, incluindo as do setor público. O estado terá de cortar as suas despesas, e ao cortar as despesas, deveria cortar também os impostos. Por exemplo, na questão dos combustíveis, houve um aumento brutal, que tem um custo na economia. O estado tem então que reduzir os impostos nos combustíveis. Mas há que reiterar que nós não controlamos os preços das matérias primas, e por isso o impacto que podemos ter em situações destas é limitado.
JC: A última pergunta que lhe quero fazer tem a ver com a guerra na Ucrânia. Muita gente diz que Putin é culpa do ocidente. Concorda?
CGP: Não. Putin é culpa de Putin e dos seus oligarcas. Acho que é uma idiotice pensar assim. Estamos aqui a falar de um país que invadiu outro país que não pertence à NATO. Nós achamos mesmo que se a Estónia ou a Lituânia não fizessem parte da NATO, que Putin ia pôr um travão nos seus desejos imperialistas? Alguém com uma mentalidade imperialista alguma vez iria deixar de ter essa mentalidade só por certos países não estarem na NATO? Não. Eles procuram essa desculpa para justificar aqueles que seriam os seus delírios imperialistas de qualquer das formas. Eu acho incrível que haja ainda no ocidente quem dê algum tipo de razão a estas pessoas. Têm morrido milhares de pessoas devido a estas fantasias imperialistas. Alguém imagina que a NATO ia entrar pela Rússia adentro? A única coisa que a NATO ameaça são as expectativas imperialistas da Rússia. Não podemos justificar a invasão de um país com o facto de a NATO impedir que a Rússia invada outros países. É ridículo.