Autoria: Ângela Rodrigues (LEFT), João Dinis Álvares (MEFT)
Só mais tarde é que perceberia que o portal ia dar ao átrio do antigo Pavilhão de Civil, o sítio onde hoje fica a ala psiquiátrica do Instituto Superior Prisional, se a memória não me falha. A travessia da Piscina para Civil foi, no entanto, atribulada, por mais que a voz do Sr. Borboleta me sussurrasse que só tinha de manter o foco e continuar a andar, que não olhasse para as imagens que passavam, que com tempo ia ficar normal, que era um presente da Deusa Laranja para eles. Primeiro, deixei que o exército passasse, ordenado, e só depois é que me atrevi a segui-los e logo fui bombardeada com imagens de estudantes que choravam em casas de banho, de outros que gritavam em churrascos, já mais para lá do que para cá, de outros que, de canetas na mão, rabiscavam as suas folhas em salas que mais lembravam os breves momentos antes da guilhotina; levei as mãos aos olhos para ver se conseguia afastar tudo aquilo, mas continuavam a vir lágrimas que caíam por um lado, cerveja que se derramava por outro, por trás a solidão que assolava os estudantes. “Vais-te habituar, não tenhas medo”, dizia o Sr. Borboleta, empurrando-me para que continuasse a andar.
Afasto as recordações da travessia, Preocupações para outras alturas, penso, admirando o novo espaço em que me encontro, que mais parece um coliseu romano: no centro, uma arena, delimitada por uma fina camada de terra a cobrir o chão, à sua volta, os vultos dirigem-se aos pisos superiores, em busca dos melhores lugares, como explica o Sr. Borboleta, uns à procura de sítio entre as varandas junto das salas, outros preferindo a vista panorâmica oferecida pelas escadas. “Tragam os prisioneiros”, brada a GALP, qual César. Imediatamente, um exército de vultos abre as portas do Museu de Engenharia Civil, de onde sai um grupo de estudantes, apenas em roupa interior, acorrentados, arrastados por um aluno envergando um traje de estatura particularmente baixa, “Minha Senhora, ei-los, os que ousam discordar”.” Este é o lacaio pessoal da Deusa Laranja”, explica o Sr. Borboleta, apontando para o pequeno espécime loiro, que se encontrava agora a falar com o Dez Anéis, “É ele que no final tem de guardar o sangue derramado, essencial para pagarmos o cachet aos Saúde Mental e carimbar os convites para o momento musical. Daí a terra no chão, que absorve o sangue, assim ele não demora tanto tempo a limpar e consegue guardar tudo mais facilmente”. Mal acabo de ouvir isto, a Deusa Laranja declara o início da Sobrevivência.
Vão soltar os Catedráticos agora, olha, dizia o Sr. Borboleta, ainda ao meu lado, enquanto o centro da arena se abria, restos de areia que deslizavam para o escuro que logo foi ocupado por pedaços de metal brilhante, O que é que eles são?, São antigos lutadores que já não conseguem andar, muitos já tiveram AVC’s, e o Conselho dos Curadores dá-lhes uma nova vida, uma forma de se agarrarem ao pouco fôlego que ainda têm, Parecem monstros de aço, os estudantes não têm nenhuma hipótese contra eles, é só uma chacina. O Sr. Borboleta acenou, de olhar fixo na arena e sorriso ligeiro. Num varandim que se destacava de todos os outros por ser adornado com filamentos de ouro, vi empregados de tabuleiro na mão, a servir champanhe aos vultos que lá estavam, um dos quais tinha os dez anéis que já conhecia. São eles, pensei. O que se seguiu foi um banho de sangue, sem dó nem piedade, os vultos levantavam os braços a pedir por mais, Com mais força, Levanta-te lá, só aguentas isto?, Olha ele a tentar fugir, coitado, ouvia por todo o lado. No meio de tanto vermelho, discerni um estudante que se escapulia a todos os ataques, ligeiro, perseguido por um Catedrático, a sua careca a espelhar os raios de Sol que entravam pelo telhado.
Enquanto a maioria dos estudantes eram atacados, vi que aquele, a certa altura, trepou por trás da estrutura metálica do Catedrático que o perseguia, chegou-lhe a boca perto do ouvido e sussurrou-lhe, como se o momento fosse outro que não o de perigo de vida, “os dê dê tês cortam” e, por motivos de o Catedrático pertencer ao Departamento de Matemática, espuma começou a sair-lhe, não só pela boca, mas também por todos os outros orifícios conhecidos do corpo humano, as veias saltaram-lhe pela testa e a pele arroxeou-se, talvez da cor do vinho que bebera ao almoço. Numa tentativa de arrancar o estudante das suas costas, levanta um braço que vai perdendo a força ao longo do movimento e, parado, acaba por cair morto no chão, tão afetado que ficou pelas barbaridades que lhe foram sussurradas.
Não ouvi nada disto, foi-me apenas dito pelo Sr. Borboleta, que me revelou a sua conexão forte com todas as borboletas, que lhe contavam, sabe-se lá como, tudo o que se passava, “Foi aquela ali”, disse-me ele, apontando para uma que pairava por cima do corpo morto. Se quiseres ouvi-las, vou contar-te o meu segredo, e mostrou-me uma pequena caixinha, cheia de farinha, ao que fiquei confusa e perguntei-lhe se aquilo era mesmo farinha, “Mas esta é especial, é da Padeira de Aljubarrota, só tens de snifar”.
De repente, observava o estudante à minha frente, voando como nunca tinha feito, e vi-o a retirar o que restava do Catedrático, para substituir o seu lugar na estrutura de metal. Olhando em volta, apercebeu-se de que era o único estudante sobrevivente, agora rodeado por todos os outros Catedráticos que queriam vingar o seu amigo. Eis que a Deusa Laranja se faz ouvir pelo Pavilhão, “Tu aí, jovem estudante, interessas-me, dá-me um bom motivo para impedir que esses velhos que te circundam te matem”, e, ao som deste pedido, todos os vultos se calaram e atentaram no sobrevivente, imóvel, no meio da arena.
É chegada a altura de quebrar o silêncio, iniciou o jovem o que talvez pudessem ser as suas últimas palavras. Falo, perante todos vós, como um estudante normal, como um estudante que, dia após dia, perde horas em transportes para chegar cá, a este sítio onde a minha voz não é ouvida, como um estudante que abandonou tudo para poder passar às cadeiras, como um estudante que não faz mais nada para além de queimar os olhos perante os ecrãs, que os liga de manhã e são a última coisa que vê antes de ir dormir (por onde estuda efemeridades e que de pouco valerão no futuro), como um estudante que nunca sabe se vai ter uma refeição decente, que tenha o suficiente para aguentar o dia, como um estudante que nunca sabe se vai conseguir pagar a renda do próximo mês, como um estudante que tem de se contentar com os dois metros quadrados que lhe foram dados pela Ação Social, como um estudante que, de tão perdido que está em trabalhos e exames e projetos e apresentações e laboratórios e aulas teóricas e aulas práticas e aulas teórico-práticas e estágios e empresas, deixou que a sua saúde mental caísse num poço tão fundo que não sabe se alguma vez vai voltar a ver a luz, como um estudante de uma faculdade onde não há espaço para todos os que cá estudam.
Como um estudante que, por mais que grite, nada acontece, tudo fica igual, como um estudante sufocado entre modelos de ensino que tanto mudam, mas, lá no fundo, continuam a mesma coisa, como um estudante que tem de se contentar com o medíocre.
Como um estudante que não sabe o que vem depois destes anos aqui preso.
Como um estudante que já perdeu a esperança.
Após uns breves momentos de silêncio, a voz da GALP fez-se ouvir, uma vez mais, meio enfastiada, “É dos que fala muito, podem matá-lo.” Após as suas ordens serem cumpridas, ela materializa-se no centro da arena, por cima do corpo morto do estudante, e propõem, “E se fizéssemos uma casa de alterne no Taguspark? Isso não resolveria os problemas todos?” e riu-se, alto, enquanto olhava para o cadáver.