Ler

Autoria: Nuno Calaim (Nova SBE)

Vivo nos subúrbios e, como não gosto de conduzir, quando quero ir a Lisboa apanho o comboio. Posso servir-me de uma de duas linhas: ou da de Sintra, ou da de Cascais. Enquanto poucas vezes vi alguém a ler um livro num comboio da linha de Sintra, na linha de Cascais é comum encontrar vários leitores numa só carruagem. A que se devem estas diferenças?

Numa série antiga, as personagens fazem pelo menos duas coisas que não se vê personagens de séries de hoje fazer: fumar e ler. Será que ler, tal como fumar, deixou de estar na moda? Em “Friends”, quando as personagens se reúnem no seu poiso habitual, o Central Perk, é comum que alguém tenha um livro na mão, ou mesmo que esteja sentado numa poltrona a ler. Quando é que isto se vê na têvê de hoje? Porque é que a televisão deixou de mostrar a leitura de um livro como algo comum na rotina de todos os dias e a todas as pessoas?

 Antes de tentar responder a estas perguntas e antes de tentar propor soluções para os problemas que fazem com que, enfim, estas perguntas tenham uma “razão de ser”, vou expor aqueles que são, na minha opinião, os dois melhores argumentos para tentar convencer alguém a ler, seguidos daqueles que são, de novo na minha humilde opinião, dois dos principais benefícios da leitura.Muito bem, argumentos para tentar convencer um não-leitor a tornar-se num leitor:

1. Ler é agradável. Este argumento resume-se muito a isto. Ler é agradável. Claro que se trata de uma tautologia (“Faça favor de ler, ler é bom porque é agradável.”), mas é uma tautologia útil, pois permite expor claramente a principal atração da leitura: o facto de constituir um prazer.


2. Estou sinceramente convencido de que a maior parte do que acontece na realidade que cada um consegue experimentar (isto é, sentir) acontece nos livros. As nossas experiências estão, é claro, limitadas pelo tempo que passamos vivos (de resto, as escolhas que fazemos em relação aos livros que lemos também estão circunscritas ao tempo que temos à nossa disposição), mas mais do que isso, estão limitadas pelo sítio, pela classe e pelo momento em que nascemos, pelos locais por onde passamos, pelas nossas características, pelas decisões que tomámos no passado, etc. Ora, aquilo que acontece em cada livro não está sujeito às limitações atrás referidas: os livros são depósitos de uma vida que não podemos viver, mas que, se lida, podemos experimentar. Acho muito triste que haja muita gente que nunca experimentou uma vida diferente da sua, apenas alcançável pela leitura. Tal como me sentiria muito frustrado se, de repente, me proibissem de ler – sentiria que estava a passar ao lado da maioria das coisas que acontecem por aí, estaria a levar uma vida muito mais reduzida e parca em experiências do que aquela que poderia levar através dos livros. Um não-leitor levará a vida de quem se passeia ao lado de um universo infinitamente mais rico do que aquele experimentado por si e onde não entra (ou melhor, para onde não espreita) porque não quer. Um leitor que seja proibido de ler viverá o resto da vida com a sensação de estar a perder qualquer coisa. A leitura é um desbloqueador, é, mesmo, uma escapatória para fora do “eu”, do aqui e do agora de cada um.

São estes os argumentos que acho mais adequados para incentivar alguém a ler. Não acho que possam ser considerados benefícios da leitura, ou, pelo menos, não benefícios imediatos, e, por isso mesmo, se convenientemente esgrimidos, são a melhor forma de tentar tornar alguém num leitor. Não vale a pena tentar atrair um não-leitor com os benefícios da leitura possivelmente alcançáveis num futuro mais ou menos longínquo (o desenvolvimento da memória, o aumento da cultura, etc.). Eu, por exemplo, conheço perfeitamente os benefícios do desporto, no entanto, não o pratico: acho que é, exatamente, um desprazer e que me rouba tempo que gostaria mais de empregar noutras coisas. Há que atrair os não-leitores com a curiosidade suscitada pelo segundo argumento que apresentei e, depois, prendê-los com o prazer de ler.

   De seguida descreverei aqueles que me parecem ser os dois principais benefícios da leitura (benefícios não só para o leitor, mas para uma sociedade de leitores).

1. Ler faz praticar a empatia. Os bons livros fazem algo que a realidade apenas ocasionalmente faz por nós: transformam figuras que nos são exteriores em seres humanos.

2. Ler sensibiliza para outras formas de arte. Acho que os bons livros agudizam a sensibilidade que, enfim, alguém que gosta de arte tem. Mas mais do que isto, os livros fornecem referências (sagradas referências!), que é algo que as outras formas de arte não podem fazer ou, pelo menos, não fazem tão bem quanto a literatura. Ler sobre a morte de Bergotte em frente à “Vista de Delft”, ou ler sobre o rosa-veneziano, ou sobre as mãos de Odette, ou sobre a linha do horizonte de Balbec, ou sobre a luz do final do dia em Doncières, ou sobre as macieiras e a costa normanda, desperta-me a curiosidade em relação a Vermeer, Tiepolo, Botticceli, Whistler, Rembrandt e Monet. Da mesma forma que ler a “Anna Karenina” ou a “Busca” me faz querer ouvir Tchaikovsky, Borodin e Prokofiev, Beethoven, Franck, Wagner, Fauré e Debussy. A leitura cria indivíduos não só sensibilizados para a arte, mas que consomem (no sentido económico do termo, é claro) arte.

Parte II – Porque é que não se lê?

1. Uma carruagem da linha de Sintra à hora de ponta não é agradável. Não há espaço para toda a gente: as pessoas têm de ir de pé, desconfortavelmente a tocar umas nas outras. Como está muita gente confinada num espaço pequeno fica muito calor. As pessoas começam a suar. Não é agradável. Ora, será que alguém poderia considerar este ambiente propício à leitura, quando quase não existe espaço para abrir um livro? Claro que não. É legítimo pensar “Ora, mas este não parece ser, de todo, um problema. As pessoas não leem no comboio, mas poderão ler em casa, não é? Não ler num comboio sobrelotado não significa que não se tenha hábitos de leitura.”. Creio infelizmente que o meu crítico imaginário se está a esquecer de que a maior parte do tempo livre das pessoas que apanham o comboio para voltar para casa é gasto na viagem para casa (só uma pequena parte das pessoas que trabalham em Lisboa vive em Lisboa, fazendo com que uma parte importante dos trabalhadores lisboetas gaste horas do seu dia a deslocar-se, especialmente se andarem de transportes públicos e não de carro).

   Mais do que a sobrelotação, existem mais dois fatores que talvez ajudem a explicar a falta de leitores num comboio que circule entre Entrecampos e as Mercês. Uma carruagem de comboio pode ser uma bolha. Quem é que se sujeitaria a condições como as que referi se tivesse dinheiro para ir para o emprego de carro? Alguém que faz diariamente o percurso Rio de Mouro – Sete Rios, Sete Rios – Rio de Mouro não tem, certamente, oitenta euros para gastar em livros por mês (assumindo que lesse um livro por semana). Os livros em Portugal são caros, e as bibliotecas públicas continuam a ter uma atmosfera pouco acolhedora (quando penso numa biblioteca pública penso sempre na secretaria de uma escola). Para além do mais, parece-me mais fácil ganhar hábitos de leitura quando, desde jovem, se tem uma estante com livros em casa, ou quando há um adulto que nos dê livros ou que sugira a nossa próxima leitura. Temo que estes dois privilégios não se tenham verificado na juventude de quem ocasionalmente partilha comigo o regresso a casa. É necessário dizer que a maioria das pessoas que usam o comboio da linha de Sintra são negras e, em Portugal, quase não existe uma classe média negra. Eu, que faço parte da classe média, não tenho amigos negros. Até ao nono ano andei num colégio, onde não me lembro de ter colegas negros. Vivo numa aldeia perto de Sintra, onde não se veem habitantes negros. Na escola pública onde andei a seguir ao colégio, quase não havia alunos negros, tal como quase não os há na faculdade pública que frequento.

  Querem levar Tchékhov à linha de Sintra? Comprem carruagens e aumentem a frequência dos comboios, tragam a Penguin e os seus clássicos a dez euros. Mas mais do que isso, era preciso fazer rebentar algumas bolhas sociais, e isso não tenho a certeza de como se faça.

2. O tédio é necessário à leitura. É muito mais provável que se pegue num livro para ler quando não se tem rigorosamente nada para fazer do que quando a nossa atenção está a ser disputada por uma pequena multidão de pequenos entretenimentos nos quais é fácil mergulhar (como, por exemplo, ver “Friends” na HBO). A eliminação do tédio é um problema dos dias de hoje. Não estou a pensar na destruição da elite ociosa, que quase desapareceu com a Segunda Guerra Mundial, e que tinha tempo suficiente para se sentir entediada. Ao contrário do que por vezes romanticamente se pensa, não estou certo de que essa elite com as tardes livres lesse assim tanto quanto isso e, de qualquer forma, nunca foi suficientemente numerosa para formar uma sociedade de leitores. Não, o meu argumento prende-se com o facto de hoje o nosso tempo livre ser disputado à leitura por outro tipo de ocupações. É muito mais fácil conjugar as forças necessárias para abrir o computador para ver Netflix, ou para ligar o telemóvel para deslizar acefalamente pelo feed de uma qualquer rede social, do que para nos sentarmos para ler a Virginia Woolf. Durante os anos 90 e o início dos anos 2000, quando “Friends” foi rodada, a televisão por cabo já competia com a leitura enquanto forma de passar o tempo. O streaming e as redes sociais elevaram a eliminação do tédio a um outro patamar, porque, enfim, não acabam, para além de permitirem ao leitor-em-potência selecionar aquilo que, de entre todo o conteúdo que disponibilizam, mais o atrai. O facto de o período do dia em que a maioria das pessoas tem tempo para ler (as horas depois do trabalho ou do jantar), ser também o momento em que se encontram mais cansadas não ajuda a situação. Para que a leitura se torne uma atividade comum, é necessário voltar ao tédio.

3. Gostaria de concluir este texto refletindo um pouco sobre a incapacidade que a escola tem de incentivar hábitos de leitura: a verdade é que nunca conheci ninguém que tivesse entrado na literatura através dos livros do currículo de Português. Tal como referi, um dos principais atrativos da leitura é o prazer. Ora, a escola tenta tornar a leitura de certos livros (o “Amor de Perdição”, “Os Maias”, “O Memorial”) ou de certos autores (Camões, Cesário, Pessoa) obrigatória. Toda a gente sabe que não há nada que destrua mais o prazer do que a obrigatoriedade.

   Em vez de tornar a leitura de Camilo, Eça, Antero e Cesário obrigatória (o que faz com que os alunos fujam dela a sete pés, ou que adquiram mais prazer a enganar de alguma forma o professor do que a ler aquilo que lhes querem impor), porque não criar uma lista com livros de autores que cubram o século XIX, e deixar que os alunos escolham três ou quatro livros dessa lista para ler ao longo do período? A escolha livre de um livro é, parece-me, necessária para obter prazer na leitura desse livro. Não defendo uma escolha desacompanhada das leituras do período,acho que o professor deveria ter um papel nessa escolha: através de comentários adequados, ou através de sugestões das quais transpareça a sua opinião, poderia guiar os alunos de melhor forma, encarando-os como sujeitos com gostos próprios, desviando-os da leitura do chamado “pastel” (talvez um pouco ambiciosa para o leitor totalmente ou quase inexperiente) e direcionando-os de acordo com as suas leituras passadas.   Talvez também não fosse má ideia incluir nestas listas autores não portugueses. Imagino que se este texto alguma vez for lido por um certo tipo de pessoa (é improvável) se formem opiniões escandalizadas com esta minha sugestão, a sugestão da possibilidade de que os alunos saltem alguns dos autores tidos como canónicos na literatura portuguesa e que os substituam por autores estrangeiros. Estas pessoas ficariam talvez chocadas com o facto de numa escola portuguesa se dar o romantismo, o realismo e o naturalismo sem se ler Camilo ou Eça. Pois bem, eu fico também muito chocado com o facto de se dar o romantismo, o realismo e o naturalismo sem se ler Hugo ou Zola.

  Uma última sugestão: forçar os alunos a estudar as características do discurso indireto livre em “Os Mais” ou as particularidades das vozes do narrador no “Memorial” é fazer com que muitos alunos, sem se quer lerem os autores, passem a detestar Eça e Saramago. Queremos formar leitores ou académicos? Nada contra os académicos, mas acho que preferiria viver numa sociedade em que toda a gente tivesse lido o “Todos os Nomes” do que numa sociedade formada por especialistas em gramática. Do meu ponto de vista, em Português a avaliação não deveria passar por perguntas que, francamente, não interessam ao menino Jesus (considero o discurso indireto livre um assunto razoavelmente interessante, mas compreendo quem não pense assim), mas sim por curtas conversas com o professor, em que o aluno pudesse expor a sua opinião bem fundamentada sobre o livro que leu, em que pudesse demonstrar que leu realmente o livro.

Pois conversar sobre as nossas leituras é talvez um dos maiores fomentadores de novas leituras.

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