Imagem: Miguel Pires da Rosa

Autoria: Diogo Faustino (MEAer)

Começo por fazer uma declaração de interesses, dada a sensibilidade que rodeia o tema: nunca fui praxado. Os temas abordados de seguida não dirão respeito exclusivamente ao nosso instituto. As praxes no Instituto Superior Técnico são unanimemente reconhecidas como mais brandas quando comparadas com o panorama nacional, pejado de praxes abusivas que vão anualmente enchendo as páginas dos jornais. Para além disto, o presente artigo de opinião não se trata de uma apologia ao fim da praxe. Assim, caso não se incorra num dos variados crimes que são rotineiramente associados à prática praxística em Portugal, que problema tem, afinal, este agrupamento consentido de adultos (e as atividades lá realizadas)?

  1. É fácil de argumentar que, em muitos casos, o consentimento não é real.

Estão bem documentadas as práticas de retaliação contra os alunos que não pretendem pertencer à praxe. Começando pelo facto de, em várias faculdades, o aluno que não pretenda ser praxado ser rotulado como “anti-praxe”:

“Os alunos que se declarem anti-Praxe, não estão aqui mencionados pois a partir do momento em que não se sujeitam às tradições da Real Academia da Guarda optam por não pertencer à mesma, não tendo deveres para com a mesma, mas também não podem usufruir de eventuais direitos como sendo o Traje, exercer a Praxe ou mesmo ter direito de opinião, podendo mesmo, visto não serem membros da Academia da Guarda, ser-lhes vedado o acesso à Recepção aos caloiros e Semana Académica assim como todas as actividades Académicas (Estes alunos podem, no entanto, mais tarde redimir-se e ser caloiros). ”

Código de Praxe da Real Academia da Guarda

Ou,

“O não cumprimento do disposto terá como consequência o banimento dos atos académicos (uso do Traje Académico, participação no Batismo, Latada, Órgãos da Praxe, Bênção das Pastas entre outros), sendo considerado anti-praxe. Durante o decurso destas reuniões está vedada a solicitação de caloiros para efeitos de praxe, à exceção dos chefes de Latada ou elementos do Forum Veteranum.”

Código de Praxe – Universidade da Beira Interior

As consequências deste rótulo variam bastante (como já defendi anteriormente, esta é uma de várias práticas inofensivas e inconsequentes no Técnico). Há também ameaças muito presentes quanto à exclusão do grupo social, como incentivar os caloiros a não conversar e estabelecer laços com os seus colegas que não pertencem à praxe e a não partilha de materiais de estudo com estes últimos. Aliado aos efeitos sobejamente conhecidos da pressão de pares e da vontade de pertença, torna-se muito real a possibilidade de um caloiro ceder a ser praxado contra a sua vontade de forma a não ser prejudicado e a poder pertencer ao grupo e ser tratado como igual no final do seu ano como caloiro. Novamente, o clima da praxe no Técnico foi respirável o suficiente para que eu não me sentisse excluído.

  1. A praxe continua a ser, a meu ver, radicalmente oposta aos valores que o Ensino Superior representa.

O Ensino Superior é, para muitos, a sua única ferramenta de emancipação, o seu único elevador social, uma celebração da liberdade, da tolerância, da diferença e da individualidade, onde se dão asas à curiosidade científica, à exploração cultural e ao pensamento crítico. O simples facto de existir uma separação hierárquica entre caloiro e doutor, por mais simbólica que ela seja, derrota os propósitos mencionados do Ensino Superior.

“Aos Caloiros é vedada a permanência na via pública após a meia-noite (zero horas) e até à hora do primeiro toque matutino da Cabra, estando sujeitos à Praxe de Trupe e só a esta, durante este espaço de tempo. A infração a que se dispõe este artigo traduzir-se-á em tesouradas secundum praxis se as crinas do infrator tiverem mais de dois dedos de comprimento.”, “ Aos Veteranos e só a estes é permitido mobilizarem para trabalhos domésticos, se estes se efectuarem em suas casas e em benefício mútuo. ” – Código da Praxe de Coimbra

Estabelece-se uma dinâmica de poder que permeia o discurso e as interações entre caloiros e doutores, por mais folgada que seja a praxe. O estabelecimento de valores como a submissão e a obediência permanece na base de todas as praxes e foi o principal fator que me afastou desta prática. E esta não é a única forma de contacto para os recém-chegados, daí o surgimento de práticas como a mentoria[1] ou movimentos como o EXARP[2], a Cria’ctividade[3] ou a AlternAtiva[4].

  1. Uma falha que também pretendo apontar ao atual paradigma da praxe é a falta de inclusividade. 

Existe uma dinâmica problemática que está intimamente associada à praxe e que aliena uma boa parte da comunidade estudantil à partida. As comissões que ainda incluam trechos de praxe física excluem uma boa parte dos estudantes com necessidades educativas especiais. Praxes com horários excessivos e/ou que invadam o horário letivo afastam-se de todos os estudantes com percursos educativos alternativos, como sejam os trabalhadores-estudantes, mães ou pais estudantes… 

Mas, no cerne da questão da inclusividade, existe o polémico tópico dos cancioneiros de praxe[5]. São uma coletânea de cânticos, muitos deles ordinários, cujos tons de intolerância e machismo continuam a não fazer fãs, vejam-se alguns exemplos do Técnico:

“Carne de porca eu não vou mais foder”, “Quando vejo uma gaja à frente/viro logo animal” 

Não é a minha intenção (nem seria capaz de) dar lições de moral neste artigo, especialmente quando existem muitas raparigas nestas praxes de livre vontade e que gritam estas palavras com despreocupação, mesmo que seja na lógica do consentimento forçado que já discuti. Também não defendo que a praxe deva ser a ferramenta perfeita de integração, nem que tem que mudar de forma a agradar a todos. Existem, certamente, evoluções muito positivas nesse sentido, veja-se o exemplo da Comissão de Tradições Académicas ESART em Castelo Branco, que este ano anunciou a mudança de nome e conceito do seu tradicional “Jantar Transexual”[6]. Valorizo, assim, todos os membros bem intencionados das comissões de praxe por todo o país que dedicam muito do seu tempo a proporcionar estas atividades aos novos alunos, tal como todas as praxes que vão aderindo ao progresso e não permanecem na inércia cega das tradições.

Só relembro estas deficiências no modelo praxístico porque se argumenta que uma das missões da praxe é integrar os recém-chegados no Ensino Superior. E o facto é que as Instituições de Ensino Superior há muito que se demitiram deste papel, deixando o monopólio da receção dos alunos nas mãos destes organismos extremamente voláteis. O exercício da praxe não é algo que se consiga proibir por decreto[7], e a abolição desta prática não é o caminho razoável a seguir – isto não se aplica a praxes abusivas, no entanto. Para muitos alunos, a praxe continua a ser um meio positivo de integração, onde se formam laços duradouros. Continua a ser o seu direito de se reunirem livremente neste âmbito. Mas é fulcral que as Instituições de Ensino Superior ofereçam uma opção à praxe, na forma de um programa de integração universal, que retire força, em particular, à dinâmica tribalizante da praxe (ou estás na praxe ou és contra a praxe).

Reivindico isto porque a integração é uma necessidade. No fundo, o estudante do Ensino Superior não passa de um adulto que paga propina de forma a ser formado numa determinada área. Mas será que é apenas este o Ensino Superior a que temos direito? Um processo industrial em que cada estudante é uma ilha, com um percurso percorrido de forma solitária com único fim a sua formação académica? Acho que é claro para todos os estudantes do Ensino Superior que um percurso destes é incomparavelmente mais pobre que uma partilha com colegas de turma, curso e faculdade.

Já existe uma forte rede europeia de integração de alunos internacionais de mobilidade. A Erasmus Student Network (ESN) dinamiza atividades que inegavelmente enriquecem as experiências de mobilidade dos estudantes, em boa parte devido ao clima saudável que a Associação cria em torno dos seus eventos. E são raros os testemunhos de más experiências a este nível por parte de alunos de mobilidade, constituindo-se como uma prática de valor a ter em conta.

É, portanto, fulcral que exista um plano de integração que contemple mais do que as insuficientes e desconexas (ainda que de louvar) iniciativas promovidas tanto pelos núcleos de curso, pela AEIST (Semana de Acolhimento), pelo Técnico[1][8] ou pela ULisboa[9]. A estas práticas poderei, com toda a autoridade, apontar o dedo, caso incorram nas falhas apontadas anteriormente à praxe. Precisamos de um mecanismo que não deixe ninguém para trás no que diz respeito à sua integração. Que sejam dinamizadas atividades culturais, visitas de estudo, viagens, saídas noturnas, workshops científicos…

A praxe é dura, mas será que tem que o ser?


Referências:

[1] – https://mentorado.tecnico.ulisboa.pt/

[2] – https://exarp.pt/pt/ 

[3] – https://noticias.uc.pt/artigos/criactividade-uma-semana-alternativa-a-praxe/ 

[4] – https://www.instagram.com/alternativaflul/?igshid=YmMyMTA2M2Y%3D 

[5] – https://diferencial.tecnico.ulisboa.pt/artigo/raparigas-no-ist/ 

[6] –  https://www.instagram.com/ctaaeesart/ 

[7]  – https://noticias.up.pt/wp-content/uploads/2022/09/despacho-praxes-na-universidade-do-porto-2022.pdf

[8] – https://nda.tecnico.ulisboa.pt/nda/tutoria/

[9] – https://www.ulisboa.pt/evento/bem-vindo-ulisboa-202223

2 comentários

  1. Parabéns pelo texto. Eu tive uma experiência bastante positiva na praxe, e consigo concordar com quase tudo o que escreveste. Sinto que a maioria dos textos que vejo a criticar a praxe são escritos por pessoas cuja experiência da praxe resume-se às notícias de praxe abusiva, o que leva a uma extrapolação e à crença de que a praxe é assim em todo o lado. E isso também leva a que quem pertença à praxe assuma uma posição muito defensiva, o que leva a que muitas vezes não se consiga pensar racionalmente naquilo que de facto há a melhorar. Um texto como este, num tom calmo e com recurso a fontes em vez de achismos é uma lufada de ar fresco no debate sobre a praxe.

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