Canto Jovem: A música de protesto na AEIST

Autoria: Vasco Lourenço (LEFT)

A música de protesto é um dos mais conhecidos elementos culturais da Revolução Portuguesa, incluindo no movimento estudantil. Ao relermos as páginas do jornal “Binómio” e de outras revistas, documentos e livros da Associação de Estudantes do Instituto Superior Técnico (AEIST) encontramos discussões sobre o tema e o registo de eventos musicais dirigidos pela AEIST, marcantes na luta dos estudantes.

Fernando Lopes-Graça foi uma das primeiras figuras nacionais da música de protesto. Compositor reconhecido, maestro, dirigente do Movimento de Unidade Democrática (MUD) e militante do Partido Comunista Português (PCP), é, desde cedo, um alvo da polícia política. Em 1940, recusa-se a dirigir os serviços de música da Emissora Nacional [1] ao não assinar a declaração de “repúdio ativo do comunismo e de todas as ideias subversivas”, na altura exigida a todos os funcionários públicos. Mais tarde, a sua atividade artística é fortemente reprimida pelo regime: as orquestras nacionais são impedidas de interpretar as suas peças, perde os direitos de autor sobre o seu trabalho, o diploma de professor do ensino particular é-lhe revogado e é obrigado a abandonar a Academia dos Amadores de Música.

Lopes-Graça define que “A música é como todo o processo artístico, é uma consequência, uma resultante, uma superestrutura, se assim nos quisermos exprimir; a sociedade é que lhe determina as formas e o conteúdo; é influenciada pelo jogo das forças sociais, e só depois influi neste” [3]. Os vários episódios que conduziram a um descontentamento generalizado com o governo, como as fraudes eleitorais, a falsa expectativa criada pela Primavera Marcelista e a crise provocada pela Guerra Colonial, iriam ser os fatores a determinar “as forma e o conteúdo” [2] da música portuguesa dos anos 60 e 70, e serão o combustível do “veículo da música”, que “através do canto, […] pode viver verdadeiramente e agir a fundo sobre a sensibilidade, estimulando a acção [3].

José Mário Branco, Luís Cília, Tino Flores, José Afonso, Adriano Correia de Oliveira, José Jorge Letria, Manuel Freire, Sérgio Godinho, Francisco Fanhais são alguns dos nomes cujo reportório tinha um principal objetivo em mente: “dar esta música ao povo”, em detrimento da “música ligeira” incentivada pelo regime de Salazar [1], dar ao povo música com letras subversivas ou arranjos complexos, que no fundo, não era nada “mais do que dar-lhe aquilo que lhe pertence” [2]. A música de protesto torna-se, não apenas numa máquina de propaganda revolucionária, mas também uma gigante máquina transformadora que opera uma renovação da música popular em Portugal.

Tal como se pode ler no preâmbulo do livro “Cantares”: “A renovação só podia buscar-se numa abertura que, sem o desfigurar [o fado de Coimbra] nos traços essenciais, o fecundasse com a seiva de novos motivos e com a floração de outras invenções expressivas. Foi esta a via largamente aberta por José Afonso, a via de renovação de qualquer forma de arte alienada: o regresso às raízes, ou seja, àquela pulsação dialéctica com o povo, única garantia de vitalidade. Com essa transfusão de sangue novo em formas gastas, José Afonso logrou, numa síntese feliz, trazer até à gente comum géneros musicais que poderíamos considerar, em certa medida, gírias de casta” [4]

Esta transformação começa de facto nos pavilhões das Associações de Estudantes (AAEE). A luta estudantil bebia muito da atividade política dos vários músicos e artistas que desafiavam as autoridades nas letras que compunham. E, de facto, é nos espaços estudantis que os músicos de intervenção ganham mais visibilidade, apenas se cimentando na opinião pública mais tarde.Da autoria do Grupo de Teatro do Instituto Superior Técnico (GTIST), é estreada, em 1969, a peça “O Racismo Não Existe”, que desafia a estrutura colonial e racista da sociedade portuguesa. Esta peça levaria à produção de várias músicas e de um disco para venda.

O arquivo do GTIST tem a gravação de algumas destas músicas:

  • Tema “Terra Nossa (I Parte)”
  • Tema “Terra Nossa (II Parte)”
  • Canção para Desfazer Equívocos

Um ano antes, a AEIST organizou o primeiro Festival de Poesia e Canção de Protesto, um de muitos festivais e eventos dinamizados pela AEIST. São convidados nomes que hoje todos reconhecemos, como José Afonso.

Zeca Afonso passou várias vezes pela AEIST, que inclusive produziu um livro com as letras do cantor, “Cantares”, que reúne dois livros anteriores que foram postos “fora do mercado” [1]. No preâmbulo do livro, escrito pela AEIST, pode ler-se: “Queremos que esta publicação seja uma especial homenagem de simpatia a José Afonso, neste ano em que os vampiros, ainda não fartos de comer tudo, vieram comer o seu pão e tentaram comer até a sua voz, proibindo-o de cantar nas associações de estudantes” [1], depois afirmando que “estas canções têm precisamente isto de peculiar: o não poderem ser comidas nem abafadas, até por já não serem apenas pertença de José Afonso: tão identificadas aparecem como a própria voz do povo, que este as fez suas e aí andam, património comum, aos quatro ventos. E andarão cada vez mais, porquanto de nós dependa” [1].

Mais tarde, proibido de ensinar Judo, tanto no ensino privado como público, José Afonso é convidado pela AEIST para lecionar esta arte marcial. [6] O registo das participações de Zeca Afonso nas actividades musicais da AEIST termina aqui. A AEIST continua a dinamizar eventos até ao final da ditadura, como concertos de Jazz, género musical também conotado com a resistência ao regime. Estes eventos foram no seu conjunto um elemento-chave do movimento estudantil, funcionando como um instrumento de protesto e de formação política.

Referências:

[1] Dinis, Beatriz e Faria, Tomás: “A Emissora Nacional como instrumento do regime” – Diferencial

[2] AEIST: “Esteiro 1” – Arquivo do Instituto de Ciências Sociais

[3] Lopes-Graça, Fernando: “Marchas, Danças e Canções”

[4] AEIST: “Cantares” – Arquivo da Associação José Afonso

[5] AEIST: “Binómio 35” – Arquivo do Instituto de Ciências Sociais

[6] Tiago de Oliveira, Luísa: “O Activismo Estudantil no IST (1945-1980)” – edições fénix

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