O que fazem as HACS na Engenharia?

A vasta mudança estrutural que todos os alunos do Técnico passaram a conhecer tem gerado muitos pontos de discussão. Os semestres passaram a períodos, os mestrados deixaram de ser integrados, os planos de estudo foram alterados. Ainda assim, uma das alterações que mais interesse e discussão tem gerado é provavelmente a reforçada oferta de cadeiras de Humanidades, Artes e Ciências Sociais (HACS). Numa espécie de buffet interdisciplinar, que promove a mobilidade entre as diferentes faculdades da Universidade de Lisboa, os alunos do 1º ciclo do Técnico vão passar a ter uma reforçada componente humanista no seu currículo. Quais são as vantagens, como se sentem os alunos acerca desta mudança e quão bem conseguida será a sua implementação?

Autoria: Diogo Faustino, LEAer

Desde os primeiros rumores das mudanças que se avizinhavam, em conversa com colegas tenho ouvido repetidamente que as HACS não adicionam nada ao currículo. Há uma boa parte de nós que sente que, num curso de engenharia, devemos ter cadeiras de engenharia e não de humanidades. Admito que não é óbvio a importância de estudar psicologia, filosofia ou ciência política para ser engenheiro, mas, com sorte, estarão convencidos em breve.

A engenharia é não mais que a otimização de um projeto com base num determinado conjunto de parâmetros (sejam eles o peso, a rigidez, o consumo ou a ergonomia). A evolução desses parâmetros ao longo dos séculos é a tinta com que se escreve a história da engenharia. Essa evolução, que se prefere gradual e preventiva, é por vezes acelerada por desastres e situações limite que se foram tornando famosas lições para futuros engenheiros. As pressões sociais, económicas e políticas fazem com que se pense a curto prazo. Parte significativa da história recente da engenharia é feita de remendos e retalhos desta “miopia”.

Apesar das ramificações da engenharia se estenderem cada vez mais a outras áreas do saber, houve um passado recente em que os cientistas ainda estavam a braços – exclusivamente – com questões puramente técnicas. Um primeiro exemplo que gostaria de abordar é o colapso da Ponte de Tacoma Narrows (1940). Esta falha estrutural, que ocorreu apenas alguns meses após a construção da ponte, deveu-se a um fenómeno aeroelástico que destruiu a ponte numa questão de minutos [1]. Para além da enorme falta de rigidez transversal e torsional, o projeto desta ponte não teve em conta a frente aerodinâmica do perfil da ponte [2]. As lições deste colapso levaram à incorporação destes novos parâmetros no vocabulário da engenharia moderna e a aeroelasticidade tornou-se um importante campo de investigação, ligada fortemente à engenharia aeroespacial. O colapso desta ponte tornou-se num famoso exemplo pedagógico e influenciou o desenho de todas as grandes pontes desde então (as vias centrais da Ponte 25 de Abril servem precisamente para o seu equilíbrio aerodinâmico).

Um outro exemplo clássico de falha de planeamento foi o colapso das passarelas do Hotel Hyatt Regency (1981). A falha estrutural das porcas que as suportavam levou à morte de mais de uma centena de pessoas. Aparentemente inocente, uma mudança no desenho original das passarelas levou a que as porcas no piso superior tivessem que suportar o peso de ambos os pisos [3]: o equivalente a estarmos pendurados a uma corda com uma outra pessoa pendurada dos nossos calcanhares. Num evento que reuniu mais de um milhar de pessoas, o peso excessivo nas passarelas levou ao seu colapso: a consequente investigação rendeu um prémio Pulitzer ao jornal local. O “Kansas City Star” descreveu um clima nacional de “alto desemprego, inflação e taxas de juros de dois dígitos que adicionaram pressão sobre as construtoras para ganhar contratos e concluir projetos rapidamente” [4]. Apesar das lições não serem tão óbvias e diretas como no colapso da ponte, esta tragédia também marcou e transformou a construção civil.

[5][9]

Não quero com isto argumentar que os desastres da engenharia do século passado se limitaram exclusivamente a falhas técnicas, mas as consequências ambientais, socioeconómicas e políticas da engenharia foram largamente ignoradas: a gasolina com chumbo é um caso de estudo perfeito. Na década de 20, um composto chamado tetraetilchumbo foi adicionado à gasolina devido à sua capacidade de aumentar as taxas de octanagem e aumentar a potência do motor. Em 1965, Clair Patterson publica o artigo “Contaminated and Natural Lead Environments of Man”, tentando atrair a atenção pública para o problema de aumentar os níveis de chumbo no ambiente. O seu trabalho foi alvo de boicotes e pressão da indústria petrolífera. A exposição a chumbo na infância foi relacionada mais recentemente com perda de QI e estatuto social [6], risco aumentado de autismo [7]: o chumbo afeta quase todos os domínios fisiológicos do corpo humano. Este combustível começou a ser substituído por gasolina sem chumbo nos Estados Unidos em 1986, mas só em 2021 é que foi totalmente erradicado dos tanques automóveis em todo o mundo após a Argélia ter finalmente proibido a sua venda [8].

Apesar da engenharia moderna se deparar ainda com novas barreiras técnicas, é com as suas garras noutros campos da humanidade que cada vez mais nos temos de preocupar. Tal como com os casos apresentados anteriormente, dos quais resultaram novos parâmetros para o paradigma da engenharia, também devemos formar engenheiros capazes de incluir as pegadas humanas, ambientais, políticas e culturais dos projetos na sua caixa de ferramentas. A alegoria que estou a tentar construir é assumidamente imprópria para controvérsias científicas mais extremas, nas quais incluo a inteligência artificial e a biomedicina (transumanismo). Nestes campos, trata-se mais de evitar um próximo Projeto Manhattan do que simplesmente ter cuidado redobrado com as implicações mais finas das suas ações. Devo, no entanto, salientar que noto uma adequada preocupação com esses assuntos nos planos curriculares dessas áreas em específico, não sendo, portanto, esse o foco deste texto.

Quero, assim, sublinhar a importância da formação em HACS no contexto do cientista e engenheiro do séc. XXI. A influência bidirecional entre a ciência e a sociedade e as suas expressões artísticas e culturais tem sido inegável ao longo da história. A teoria da evolução de Darwin acabou por despoletar uma série de teorias da sociedade, agrupadas num movimento conhecido como darwinismo social, com consequências reconhecidamente nefastas (de inspirações racistas, eugénicas – survival of the fittest). Da mesma forma, o estabelecimento da teoria da relatividade de Einstein teve um profundo impacto na cultura [10]. Obviamente possibilitando tecnologias como o GPS ou o micro-ondas, a perspetiva de maior relevo para este artigo será a sua influência na arte: tanto Dalí como Picasso foram assumidamente influenciados pela nova mundividência – “A Persistência da Memória” é um exemplo perfeito da redobrada atenção que a arte passou a dar à plasticidade do tempo. O impressionismo e o cubismo beberam também bastante desta vertente.

Também a relação oposta se verifica, sendo a atividade científica e a sua comunicação fortemente influenciadas pelas diferentes correntes estéticas ao longo da história. O romantismo, por exemplo, ajudou a transformar as ideias do galvanismo (antecessor da moderna eletrofisiologia) numa possível poção da vida, capaz de reanimar cadáveres.

Há uma infinidade de exemplos de efeitos colaterais da engenharia na vida humana, como a síndrome do edifício doente, ainda mais relevante agora, já que é sabido que estes “edifícios doentes” são importantes vetores na transmissão de SARS [11]. Esta síndrome é causada pela má ventilação dos edifícios, pobre exposição solar (relacionada com problemas de humidade e temperatura), substâncias químicas nocivas nos materiais de construção ou até a interação psicossocial do ambiente de trabalho.

Uma ilustração clara de como a engenharia infiltrou os campos da psicologia, da filosofia foi a implementação da linha de produção em massa. O Fordismo, como ficou conhecido o modelo de produção, pode não ter assumido as dimensões previstas por Aldous Huxley mas foi certamente uma revolução do consumismo social, da organização e estratificação do trabalho e teve profundas consequências na mobilidade social e direitos laborais desde então.

Desde a explosão das criptomoedas às várias polémicas que envolvem a obsolescência programada ou a automatização dos postos de trabalho é fácil perceber que a engenharia também afeta muito diretamente a política. No livro “21 Lições para o Século XXI”, Yuval Noah Harari argumenta que é necessário que os políticos estejam preocupados desde já com as questões tecno-científicas porque os cientistas não vão parar de investigar e criar para dar tempo a que a legislação adequada se desenvolva. A classe científica é retratada como estando “insuficientemente ciente das implicações políticas de suas decisões”.

O meu principal ponto é este – a engenharia tem que estar mais consciente dos efeitos das suas intervenções nos diferentes campos da Humanidade. Tentar solucionar um problema e, no processo, criar vários outros parece estar no ADN do engenheiro. No entanto, este modelo tem cada vez menos margem de manobra. Não nos podemos dar ao luxo de continuar a formar engenheiros com uma sistemática “cegueira” relativamente a todas as áreas já referidas. Esta é, sem dúvida, uma das mudanças mais relevantes no novo modelo de ensino do Técnico. Peca, claro, não só por tardia mas também por uma falta de “curadoria”: sinto que, apesar do modelo de opção livre no acesso a estas cadeiras ser apelativo, acaba por traduzir uma desvalorização da importância desta vertente humanista do currículo.

As HACS são vitais para o resto da nossa ação, não só enquanto engenheiros. Ajudam-nos a ser humanos e cidadãos mais completos, a apreciar e refletir mais profundamente sobre a vida, exploram outras paixões ou hobbies que possamos ter e permitem-nos conhecer melhor os nossos colegas. As HACS na engenharia fazem falta!

 Referências:

[1]-https://www.youtube.com/watch?v=VnvGwFegbC8

[2]-Billah, K. and R. Scanlan. “Resonance, Tacoma Narrows bridge failure, and undergraduate physics textbooks.” American Journal of Physics 59 (1991): 118-124.

[3]-https://pt.wikipedia.org/wiki/Colapso_da_passarela_do_Hyatt_Regency

[4]-https://web.archive.org/web/20160108175310/http://skywalk.kansascity.com/articles/20-years-later-many-are-continuing-learn-skywalk-collapse/

[5]-https://www.indovance.com/knowledge-center/hyatt-regency-walkway-collapse-did-the-structural-analysis-go-wrong/

[6]-https://today.duke.edu/2017/03/lead-exposure-childhood-linked-lower-iq-lower-status

[7]-https://www.medicalnewstoday.com/articles/317754

[8]-https://www.nationalgeographic.com/environment/article/finally-the-end-of-leaded-gas

[9]-https://www.engineeringclicks.com/hyatt-regency-walkway-collapse/

[10]-As Contribuições da Teoria da Relatividade para a Sociedade e às Organizações, Revista de Administração FACES Journal, vol. 18, núm. 2, pp. 28-43, 2019

[11]-https://en.wikipedia.org/wiki/Sick_building_syndrome#Psychological_factors

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