Por Viverem Assim Como Bestas

Perante um mundo atormentado por questões sociais ligadas à desigualdade racial, torna-se importante refletir sobre a sua causa e desenvolvimento. Os Descobrimentos portugueses foram os impulsionadores do tráfico global de escravos e da subjugação de pessoas negras e de povos indígenas para fins comerciais. Estarão então estes acontecimentos ligados? De que forma é que o discurso em torno das descobertas portuguesas, desde a epopeia de Camões aos manuais de História, contribui ainda para a perpetuação destas desigualdades?

Autoria: Guilherme Pata e Maria Inês Xavier, MEBiom (IST)

“As armas e os barões assinalados
Que da ocidental praia Lusitana
Por mares nunca de antes navegados
Passaram ainda além da Taprobana

Em perigos e guerras esforçados
Mais do que prometia a força humana
E entre gente remota edificaram
Novo Reino, que tanto sublimaram;”

Não é preciso pensar muito para descobrir qual a origem desta estrofe. Desde cedo que somos apresentados a Os Lusíadas como sendo o epítome do orgulho português. O seu estudo começa na disciplina de Português e estabelece as bases da mensagem de Portugal como país conquistador de feitos gloriosos no passado. Estas bases vão sendo solidificadas à medida que vamos progredindo nos anos escolares e culminam na análise de Mensagem, de Fernando Pessoa, onde se encontra bastante explícito o pensamento coletivo português que ainda hoje vigora: afinal quantos não serão os portugueses que padecem de um saudosismo desmedido associado à grandeza ilusória de uma época gloriosa passada? Que descontentes com o status quo das suas vidas embarcam na crença plantada de povo eleito abençoado, merecedor das mais dignas vitórias e conquistas?

“A que novos desastres determinas
De levar estes reinos e esta gente?
Que perigos, que mortes lhe destinas
Debaixo dalgum nome preminente?

(…)
Que famas lhe prometerás? que histórias?
Que triunfos, que palmas, que vitórias?”

Curiosamente, o acriticismo português encontra-se bastante presente na visão tida quanto à personagem mais reivindicativa da epopeia de Camões, o Velho do Restelo. Esta personagem, através da interrogação retórica citada, permite uma outra visão dos Descobrimentos, de ceticismo e de crítica à ganância dos navegadores. Ele torna-se, então, associado ao conservadorismo e ao pessimismo face aos acontecimentos da altura e, devido a tal, é interpretado como ignorante perante os grandes feitos que ocorriam. Mas será que o Velho do Restelo teria alguma razão? As suas preocupações são económicas e críticas ao egoísmo português e, fazendo uma análise mais profunda, compreendemos como é que tal influenciou as intenções para com os outros povos. 

“E assim que onde antes viviam em perdição das almas e dos corpos, vinham de todo receber o contrário; (…) por viverem assim como bestas, sem alguma ordenança de criaturas razoáveis (…) e o que pior era, a grande ignorância que em eles havia, pela qual não haviam algum conhecimento de bem, somente viver em uma ociosidade bestial.”
— Gomes Eanes de Zurara, em Crónica do Descobrimento e Conquista da Guiné

As raízes do comércio de escravos transatlântico podem encontrar-se na exploração portuguesa da costa africana de meados do século XV, que precede os eventos glorificados na epopeia de Camões. Nesta altura, surge uma outra obra portuguesa que retrata eventos dos descobrimentos: a primeira obra sobre africanos subsarianos escrita por europeus daquela época. Por mandato de D. Afonso V, Gomes Eanes de Zurara escreveu a sua Crónica do Descobrimento e Conquista da Guiné, relatando os feitos do tio do monarca, o Infante D. Henrique. Na crónica, são descritos os escravos africanos de várias etnias capturados pelos navegadores portugueses. Escreve Zurara: “alguns de razoada brancura, fermosos e apostos; outros menos brancos, que queriam semelhar pardos; outros tão negros como etiópios, tão desafeiçoados, assim nas caras como nos corpos, que quase parecia, aos homens que os guardavam, que viam as imagens do hemisfério mais baixo” [ênfase minha]. Apesar desta heterogeneidade de origens, todos estes prisioneiros são, aos olhos do cronista, “bestas”, como vemos na citação anterior. Torna-se então claro que, logo nas origens da escravatura portuguesa, encontramos uma imagem profundamente racista, anti berber, anti árabe e, especialmente, anti negra. 

Em Stamped from the Beginning, o ativista e professor americano Ibram X. Kendi afirma que, em vez de estas ideias racistas terem sido a base para a captura de escravos não-europeus, elas surgem em contrapartida como uma justificação para esta decisão económica por parte do Infante. Em ‘Memória e Retórica: Mouros e Negros na “Crônica de Guiné”’, o historiador Jerry Santos Guimarães escreve que Zurara encontra estas justificações na história bíblica da Torre de Babel, na qual, defende o cronista, os ancestrais destes povos terão sido afastados de Deus. Apesar de descrever a dor sofrida pelos prisioneiros de seu Infante, explicando como foram vendidos e separados das suas famílias, entre berros, choros e lamentações, Zurara caracteriza o destino destas pessoas como se fosse uma mera força do destino. Escreve o cronista: “Ó poderosa fortuna, que andas e desandas com tuas rodas (…) põe ante os olhos desta gente miserável algum conhecimento das coisas postumeiras, por que possam receber alguma consolação(…)!”. Novamente, encontramos aqui uma tentativa por parte do cronista de racionalizar as atitudes dos navegadores portugueses: apesar do sofrimento infligido aos escravos, foi graças à sua escravatura que puderam ser “civilizados” e tornar-se Cristãos — as tais “coisas postumeiras” que dariam consolação aos cativos.

Kendi defende que foram estas ideias de Zurara que deram origem aos pensamentos racistas anti Negros dos séculos seguintes. É, então, com base nestas passagens que surgem as defesas da escravatura e do colonialismo, que vieram a infligir profundas feridas e cicatrizes históricas por todo o mundo. No entanto, apesar deste legado trágico, na cultura portuguesa encontramos ainda uma glorificação dos chamados Descobrimentos, começando talvez pela ironia de “descobrir” terras já anteriormente habitadas. Esta glorificação cria referências indissociáveis da glória dos tempos passados no cidadão comum, sem mostrar o reverso da moeda. É de notar que o próprio Gomes Eanes de Zurara e, claro, o Infante D. Henrique, se encontram imortalizados em vários monumentos portugueses. Entre eles estão o Padrão dos Descobrimentos, em Belém, construído para comemorar o Infante, juntamente com o Parque das Nações, não descurando também a famosa epopeia já mencionada. A abordagem de análise direta de Os Lusíadas sem uma componente crítica associada torna-nos cegos para qualquer consequência negativa que possa advir dos Descobrimentos. Mesmo tendo os portugueses realizado brutalidades nos locais que conquistaram, estas são relativizadas, ou, pior, nem surgem na discussão.

Infelizmente, o acriticismo não se resume a uma glorificação do foro artístico. A forma como os manuais de história encaram o tráfico de escravos tende a tratar estas pessoas como meras comodidades económicas. A título de exemplo, um dos manuais da Porto Editora de História B do 10º ano, Tempos de Mudança, menciona o papel central de Portugal no chamado “comércio triangular” entre os três continentes. Como sabemos, pessoas negras eram capturadas e compradas em África e vendidas nas Américas, onde substituíram as populações nativas e eram escravizadas, nomeadamente para a produção de açúcar, algodão e minérios que eram posteriormente vendidos na Europa. O livro retrata isto com a expressão “tráfico negreiro”, assumindo que os alunos entenderão o significado do termo na sua plenitude. Deste modo, em relação à exploração desumana da mão de obra Africana, e aos genocídios nas Américas (nas quais se observou uma perda de 80% da população), não são oferecidas perspetivas, e muito menos perspetivas críticas. Contrastemos isto com os outros elementos do “comércio triangular” que o livro retrata: são dadas passagens a “fidalgos mercadores” e às “dificuldades de afirmação da burguesia mercantil portuguesa”, mas nenhuma ao sofrimento das pessoas escravizadas. Esta cegueira implica que, ao contar a nossa história, os alunos são privados de um total entendimento dos impactos que Portugal teve no mundo e, consequentemente, de como estes impactos se refletem no estado atual do mesmo.

A mesma cegueira por parte deste manual não acaba nos feitos dos portugueses. Por exemplo, verifica-se também na descrição da chegada dos espanhóis às Américas. As atrocidades que Cristóvão Colombo e os seus navegadores cometeram nas Caraíbas, entre as quais a dizimação da população da ilha Espanhola (atualmente dividida entre o Haiti e a República Dominicana) e a sua suplantação por escravos africanos, não são mencionadas. É dito que os espanhóis conquistaram o continente graças à sua “superioridade bélica”, que “ditou a sua vitória”, que é uma afirmação com historicidade bastante duvidosa. Por exemplo, no caso da conquista do México, a expedição de Fernão Cortez (na qual integravam apenas cerca de quinhentos homens) só sucedeu graças a uma coligação com adversários indígenas da monarquia Azteca: tribos conquistadas pelo império e inimigos políticos. Ou seja, a ação dos povos indígenas, que foi o que realmente permitiu a conquista espanhola das Américas, é ignorada. Assim sendo, não se trata de uma questão de falta de neutralidade por parte do manual na sua apresentação dos factos históricos, mas sim na seleção de factos e na forma como estes são apresentados, que, intencionalmente ou não, pinta as forças europeias como naturalmente superiores.

“(…) A verdade é que escravos ou servos, moradores ou foreiros, o que lhes tocava (…) era sempre a mesma quota de sacrifícios, de trabalhos forçados, de fome e de miséria.”
— Teresa Mesquitela, em “A Escravatura no Brasil e a sua abolição”

Neste manual, o assunto da escravatura é novamente abordado no final do capítulo do Liberalismo, em duas páginas dedicadas à sua abolição. Mesmo sendo esta a temática, estas passagens limitam-se na sua maioria a citar leis e a oferecer uma descrição da história legislativa da abolição. A resistência a movimentos abolicionistas é dada como derivada de “interesses económicos lesados”, o que, embora verdade, ignora as motivações ideológicas racistas que eram utilizadas para justificar a escravatura. Como já foi referido, estas motivações tiveram origem na exploração portuguesa da costa africana e, mesmo após a abolição, permaneceram instaladas, mantendo a opressão sistémica de pessoas negras em diversos países. A única frase que retrata o tratamento das pessoas escravizadas é uma citação do artigo “A Escravatura no Brasil e a sua abolição” de Teresa Mesquitela, citada acima. Como a citação indica, os problemas que se originaram com a escravatura não desapareceram aquando da sua abolição.

“Um nativo de Angola, embora com limitações da sua incultura, sabe que é português e afirma-o tão conscientemente como um letrado de Goa saído de uma universidade europeia. O Português (…) experimentou juntar-se, senão fundir-se, com os povos descobertos, e formar com eles elementos integrantes da mesma unidade pátria. Assim nasceu uma nação (…) dispersa pelas sete partidas do mundo; mas quando olhos que sabem ver perscrutam todas essas frações de nação, encontram (…) que ali é Portugal.”
— António de Oliveira Salazar, num discurso (1956).

O pensamento colonial europeu, tal como a escravatura, era justificado em grande parte com base em ideias racistas: os africanos, sendo a raça inferior, comparáveis a crianças, seriam incapazes de governar e desenvolver as próprias terras, e, portanto, estas deveriam ser administradas por europeus brancos. Esta governação e desenvolvimento envolveu também uma “integração” cultural, pela qual os povos indígenas foram evangelizados e adotaram os costumes dos seus colonizadores, sendo roubados das suas raízes nativas. No entanto, na segunda metade do século XX, com a formação das Nações Unidas, surgiu um ceticismo global em relação ao colonialismo. À luz disto, Portugal pretendeu posicionar os seus territórios coloniais não como colónias, mas como “Províncias Ultramarinas” — ou seja, os territórios ultramarinos seriam parte integrante do território português, e os seus cidadãos seriam portugueses.

No entanto, apesar deste discurso superficialmente inclusivo, esta era, efetivamente, a mesma política definida no Ato Colonial de 1930, de “possuir e colonizar domínios ultramarinos e de civilizar as populações indígenas que neles se compreendam”. Estas “Províncias Ultramarinas” foram uma das grandes bandeiras de Salazar com objetivo de exacerbar o orgulho português, estabelecendo a pirâmide da hierarquia social onde no topo se encontrava o homem branco. Foi legalizado e institucionalizado um apartheid onde existiam três grupos distintos, os brancos, os assimilados e os indígenas. Os assimilados eram, por definição, “todos os indivíduos de raça negra ou dela descendentes que, pela sua ilustração e costumes não se distinguissem do comum daquela raça”. Para serem considerados assimilados tinham de falar corretamente português, ter adquirido hábitos como comer com talheres e à mesa, ter bom comportamento e receber salário. A forma como tal segregação era conduzida era muito semelhante às leis de Jim Crow nos Estados Unidos: existiam autocarros separados para negros e para brancos, bares em que nem assimilados podiam frequentar e na via pública, os homens negros mais velhos afastavam-se para deixar os rapazes brancos mais jovens passar, ao contrário do suposto costume. Mesmo em lojas como farmácias, era comum ver negros à porta esperando que os brancos fossem primeiramente atendidos — e, caso estivessem, teriam que se vergar. Estes relatos duram até 1970, uma data próxima o suficiente para influenciar a forma como a raça é vista nos dias de hoje.

Este jogo legal por parte do Estado Novo não foi suficiente para convencer as Nações Unidas, que em 1957 reafirmaram que Portugal mantinha as suas colónias. Pouco depois, em 1961, deu-se o início da Guerra da Colonial (ou Guerra da Libertação, como é conhecida nas ex-colónias), que apenas terminou em 1974 com a Revolução dos Cravos. Após a Revolução, o que antes era considerado tão português como Portugal foi deixado em cacos. Timor Leste foi imediatamente invadido pela Indonésia, levando a uma ocupação violenta que apenas terminou em 1999, tendo causado cerca de 100 mil mortes. A luta pelo poder em países ricos em matérias-primas, como Angola, levou à guerra civil, colocando a miséria e a fome nas mãos de um povo já fragilizado. Esta foi uma de muitas guerras de proxy entre as grandes potências da Guerra Fria, e manifestou-se numa luta que se estendeu até 2002, causando 500 mil mortes e a ruína da infraestrutura Angolana. O mesmo ocorreu em Moçambique, com cerca de 1 milhão de mortes e um legado de minas terrestres por encontrar, que hoje continua a ser um dos maiores problemas do país.

O fim da Guerra trouxe também consigo os que nela batalharam, e cujo pensamento anti Negro, moldado pela guerrilha, continua a minar o pensamento corrente e a servir de base para o discurso atual. A perspetiva do Estado Novo em relação às ex-colónias também se reflete nas atitudes de parte da população de hoje em dia em relação a pessoas não-brancas. Existe uma contradição evidente em comentários racistas que exigem que as pessoas “voltem para o seu país”, quando se tratam de países colonizados por portugueses, que suplantaram em grande parte as culturas nativas. No entanto, esta contradição está em concordância com a perspetiva Salazarista, que considerava os povos colonizados como portugueses, mas como portugueses inferiores. É, portanto, uma hipocrisia, na qual o português impôs a sua língua, a sua religião e os seus costumes noutros povos, mas que mesmo assim se recusa a aceitar estes povos num pé de igualdade. 

O resultado de séculos de escravatura e de colonialismo nos dias de hoje é uma disparidade socioeconómica entre brancos e não-brancos, na qual alguns afrodescendentes em Portugal encontram grandes dificuldades em sequer serem aceites como cidadãos do país que lhes tirou as raízes. Apesar de haver uma possibilidade de mobilidade económica, esta torna-se cada vez mais escassa, e as barreiras sociais e geográficas mantêm um nível desproporcional de pobreza. Em Portugal, o rebaixamento de pessoas negras continua a existir, como que uma escravatura dissimulada, muito devido a estas feridas do passado que, curiosamente, são simultaneamente negadas. Olhando para as estatísticas tal é fácil de confirmar: 55% dos portugueses manifesta alguma forma de racismo e praticamente a mesma percentagem, 52%, considera que em Portugal há menos discriminação ético-racial que nos outros países da Europa. A descolonização tardia, cujas feridas ainda não sararam, e um enraizamento da ideia de superioridade racial desde cedo contribuem em grande parte para tal estatística.

Apesar de tudo, os Descobrimentos não deixaram de ser um ponto de viragem na história da Humanidade e foram um motor importante para o início da globalização como hoje a conhecemos. A criação de rotas marítimas permitiu uma nova forma de suprir a Europa de produtos exóticos e o contacto com outras culturas foi crucial para o conceito de multiculturalidade, e para o desenvolvimento de ideiais científicas. A forma como tal foi atingido é que se torna alvo de crítica. A expropriação dos “descobertos” da sua cultura e religião, moldando-os à visão ocidental e rebaixando-os ao nível de um simples produto comercial, que poderia ser facilmente trocado ou comprado, é materializar algo que não tem preço. Tal não pode passar impune aos olhos de quem aprende História.

Referências:

Amaral, C. et al. (2020). Tempos de Mudança – História B – 10.º Ano. Porto Editora.

Barradas, D.; Rodrigues, M.; Torres da Silva, M. (2020). “16 números da desigualdade étnico-racial em Portugal”, em SIC Notícias.

Kendi, I.X. (2016). Stamped from the Beginning: The Definitive History of Racist Ideas in America. Nova Iorque: Nation Books.

Nogueira, P. (2019). “Estupros e torturas: novo livro de Laurentino Gomes descreve os horrores da escravidão”, em Estado de Minas.

Santos, J. (2011). “Memória e Retórica: Mouros e Negros na “Crônica de Guiné” (Século XV)”, em Anais do XXVI Simpósio Nacional de História: ANPUH.

Stannard, D. (1992). American Holocaust: The Conquest of the New World. Oxford University Press.

Zurara, G.E. (Século XV). Crónica do Descobrimento e Conquista da Guiné.

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