Um Desencantamento não Compulsório

O histórico das eleições portuguesas demonstra uma tendência preocupante de aumento da abstenção. Nas últimas eleições presidenciais, em 2016, registou-se um valor de 51,3%, o segundo mais elevado de sempre, nas eleições legislativas de 2019 um valor recorde de 51,4% e, nas eleições europeias de 2019, uma marca próxima dos 70%. [1] [2] [3] Este desencantamento com a democracia levanta questões ao nível tanto da legitimidade das instituições, dado que esta advém de uma porção cada vez menor da população, como  do próprio futuro da democracia.

Autoria: António Luciano, MEMec (IST)

Uma proposta para combater o referido “abandono” político é a imposição do voto compulsório (VC), muitas vezes reclamada de forma irrefletida perante os dados da abstenção; no entanto, este exige uma ponderação e análise séria do que realmente está em questão e das consequências nefastas que daí podem derivar. O modelo de voto obrigatório está também assente num quadro variado de sanções, desde multas a restrição de acesso a serviços públicos

Os dados disponíveis de regiões em que existe VC são escassos e os resultados difíceis de extrapolar para outros locais. Ainda que a informação levante algumas dificuldades de avaliação, é possível comparar os dados existentes, reparar nas diferenças e tirar as respetivas conclusões. Analisemos, então, os casos da Áustria e da Austrália e o efeito estimado do VC em cada um destes países.

No caso austríaco, é possível estudar o impacto do VC através de dados obtidos nos 9 estados austríacos para o período entre 1949 e 2010, para eleições presidenciais, parlamentares e estatais. Durante este espaço de tempo, ocorreram variações no regime de voto para diferentes eleições, permitindo, assim, medir o seu efeito. A análise dos dados conclui que a imposição do VC teve como impacto um aumento de cerca de 10 pontos percentuais na participação eleitoral. Não se conclui influência relevante nos resultados eleitorais [4].

Para a Austrália, os resultados são muito mais significativos, tendo como  impacto um aumento de 24 pontos percentuais na participação eleitoral. Relativamente aos resultados eleitorais, estimou-se que beneficiam em 7-10 pontos percentuais o Partido Trabalhista Australiano (partido de centro-esquerda). [5]

         Atendendo a um plano comparativo geral, os países onde vigora o VC apresentam em média mais sete pontos percentuais de participação eleitoral do que os países sem voto obrigatório.[6]. Ainda que seja efetivo que o VC produza uma redução da abstenção e uma mobilização de faixas da população com menos rendimentos, menores habilitações académicas e/ou desinteressadas em política, verifica-se que não há um aumento relevante na participação política além das urnas. [7]

O VC deixa o sistema eleitoral permissivo a outros fenómenos, como o voto aleatório, o voto de protesto e o populismo. Estima-se que a quantidade de votos aleatórios no Brasil, um outro país no qual vigora o VC, seja aproximadamente 10% do total, para além de se verificarem também fenómenos apontados como votos de protesto, numa perspetiva antissistema, como, por exemplo, o caso do deputado federal Francisco Everardo Tiririca Oliveira Silva, mais conhecido como “Tiririca”. [8][9]. Os dois fenómenos apontados propiciam a manutenção de um sistema que permite, e sobretudo no caso da América Latina, onde se localiza a maior parte dos países onde vigora o VC, a utilização do populismo como estratégia política eficaz, com todos os perigos a ele associados.[10]

Ainda que apresente resultados positivos ao nível da redução da abstenção e mobilização de faixas da população sub-representadas para os atos eleitorais, o voto compulsório está longe de ser um sistema desejável. Desde logo do ponto de vista ético põe em causa a liberdade dos cidadãos, o seu direito a não participar num ato eleitoral e a natureza do voto, que deve ser livre (e de preferência informado).  A natureza coerciva das sanções atinge especialmente a população mais frágil economicamente, em que multas e restrições a serviços têm uma relevância muito maior, colocando ainda mais em xeque o seu voto como ato refletido e livre.

Mais do que optar por soluções fáceis, de índole autoritária, é necessário fazer uma reflexão séria e ponderada das estratégias a tomar para combater o declínio democrático. É verdade que o afastamento entre os cidadãos e a política se deve, em parte, aos intervenientes políticos e às suas ações, cuja integridade e competências são, em múltiplas ocasiões, questionáveis. Porém, há que reconhecer a culpa dos cidadãos ao desistir do seu papel fundamental na democracia. 

Referências

[1] Pordata, “Taxa de Abstenção em Portugal para a Assembleia da República”

[2] Pordata, “Taxa de Abstenção em Portugal para a Presidência da República”

[3] Pordata, “Taxa de Abstenção em Portugal para o Parlamento Europeu”

[4]” Compulsory voting, turnout, and government spending: Evidence from Austria”,Mitchell Hoffman,Gianmarco León, María Lombardi

[5]“Electoral and Policy Consequences of Voter Turnout: Evidence from Compulsory Voting in Australia”, Anthony Fowler

[6] IDEA, “Compulsory Voting”

[7] “Compulsory voting and political engagement (beyond the ballot box):A multilevel analysis” , Miguel Carrera

[8] Folha de São Paulo, “Eleição de Tiririca é caso de voto de protesto, diz analista”

[9] Folha de São Paulo, “Procuradoria arquiva duas representações contra propaganda de tiririca”

[10]”Compulsory Voting and Populism”, Rafael Junqueira ,Peter R. Crabb

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