Um casal encontra-se confortavelmente sentado no seu sofá, em casa. Decidem que querem trazer um bebé ao mundo e chega a altura de escolher as suas características. Pegam no telemóvel, abrem uma aplicação móvel e voilá – existem opções para tudo. Desde a cor do cabelo, dos olhos e da pele até ao nível de QI e habilidades físicas, isto tudo com simples toques no ecrã.
Será que este cenário pertence à ficção ou não estará assim tão longe? Quais serão as suas implicações éticas?
Autoria: Catarina Pedreira, MEIC (IST)
Muitos de nós temos uma ideia pré-concebida acerca do potencial da engenharia genética, devido à sua forte presença na cultura popular [1] – existem vários filmes, livros e séries de ficção científica nos quais, tendo acesso a técnicas avançadas e/ou a equipamentos futuristas, humanos são transformados em versões melhoradas de si mesmos – ou até mesmo imortalizados. É também claro que para a maioria das pessoas a ficção científica não corresponde à realidade, o que não significa que não estejamos a fazer descobertas muito interessantes e, ao mesmo tempo, a “brincar com o fogo”.
O que é?
A engenharia genética é um campo focado na manipulação direta dos genes de organismos utilizando técnicas de engenharia molecular. Teve início nos anos 70, quando o ADN recombinante [2] – que consiste na introdução de material genético de um organismo no genoma de outro organismo, sendo replicado e expresso pelo último – foi inventado.
A descoberta do complexo CRISPR/Cas – primeiro observado em 1987 por Yoshizumi Ishino [3] – veio revolucionar a engenharia genética. Na natureza, o CRISPR/Cas tem um forte papel no que toca à imunidade de microorganismos, sendo capaz de localizar e cortar um fragmento específico de ADN viral, levando à desativação do mesmo. Este fragmento pode posteriormente ser guardado para lutar contra futuras infeções do vírus correspondente [4].
Em 2012, as cientistas Jennifer Doudna, Emmanuelle Charpentier e as suas equipas conseguiram apresentar o potencial de utilizar o complexo CRISPR/Cas para editar qualquer fragmento de ADN de qualquer espécie [5], trazendo novos horizontes tanto para o campo científico como também para as suas aplicações.
Esta ferramenta evoluiu de tal forma que, hoje em dia, já é possível não só desativar genes específicos, mas também editar DNA e RNA de forma incrivelmente precisa e simples [6] [7].
Para além disto, o CRISPR/Cas não está reservado apenas aos engenheiros genéticos – qualquer um pode experimentar. Já existem kits da ferramenta à venda por menos de 200 dólares na Odin, que permitem fazer edições ao genoma de bactérias.
Aplicações
Existem várias aplicações inovadoras para o CRISPR/Cas, passando pela agricultura (eliminando doenças existentes em alimentos como o trigo [8]), controlo de espécies ameaçadas (modificando geneticamente espécies como corais, para ajudar a combater os efeitos do aquecimento global [9]) e medicina (através de tratamentos experimentais para doenças como a fibrose cística [10]).
Todas estas são interessantes e poderiam ser exploradas a fundo, no entanto o foco deste artigo é analisar e discutir as potenciais implicações éticas da engenharia genética em humanos.
Primeiro, é importante constatar que a modificação genética pode ser dividida num de dois tipos – modificação genética somática (modifica genes em células de um humano já existente, que não estão envolvidas com a reprodução) ou modificação genética da linha germinativa (modifica genes de espermatozóides, óvulos ou embriões iniciais, i.e. células envolvidas na reprodução).
A modificação genética somática abrange a adição, remoção ou edição de genes, tipicamente para eliminar uma doença genética de um ser humano ou aliviar os seus sintomas. Por outro lado, a modificação genética da linha germinativa adiciona, remove ou edita genes que vão ser propagados para o ser humano que se desenvolva a partir daquelas células e, também, para todas as suas gerações futuras [11] – um “jogo” muito mais perigoso e eticamente questionável.
Implicações Éticas
Na modificação genética somática, o objetivo é fazer terapia ao corpo de pessoas que têm uma doença com possibilidade de cura e que, caso tenham idade legal, possam fornecer consentimento para tal.
Este tipo de terapia ainda não está completamente disponível em contexto clínico, devido a parâmetros regulatórios em falta [12] [13] que são necessários para obter a confiança da comunidade médica e do público em geral.
Os raros medicamentos que já foram aprovados e estão disponíveis têm atualmente os preços mais elevados do mercado [14] e estão, por isso, fora do alcance da maioria da população.
Existem também, claro, riscos associados ao processo – poderão ser experienciados efeitos secundários que ainda não são totalmente conhecidos.
Apesar disto, parece existir um grande potencial para o uso da ferramenta CRISPR/Cas em terapia experimental, especialmente porque promete curar doenças até agora consideradas incuráveis, como Atrofia Muscular Espinal [15] ou certos cancros [16].
Esta tecnologia, tal como muitas outras, tende a ficar mais segura à medida que os anos passam. Se os benefícios ultrapassarem os riscos, se não existir nenhuma alternativa de menor risco, se os pacientes forem informados dos possíveis efeitos secundários e se, posteriormente, fornecerem um consentimento informado, esta parece ser uma hipótese eticamente (e cientificamente) viável.
Finalmente, existe um detalhe relevante a favor da modificação de células somáticas no âmbito da cura de doenças – teoricamente (pelo que se observou até agora), não é possível que estas mudanças se propaguem para futuras gerações [17].
E no que toca a mudanças genéticas hereditárias?
A potencial utilização desta poderosa “tesoura genética” para edição da linha germinativa é muito mais controversa e eticamente questionável, relativamente à mencionada anteriormente.
Neste cenário, o objetivo é diferente. A modificação das células germinativas não tem como propósito resolver um problema já existente num ser humano (como aliviar os sintomas de uma doença genética), mas sim tentar resolver um problema antes de este surgir – modificar gâmetas ou embriões iniciais para que o ser humano dali proveniente não venha a desenvolver uma dada doença hereditária.
Talvez estejas agora a pensar algo do género: mas qual é o mal de prevenir uma doença hereditária num humano e nos seus sucessores? Isto não devia ser algo bom?
Este método poderá vir a ser exequível no futuro, quando houver mais informação. Atualmente, no entanto, existem várias questões éticas que devem ser levantadas.
Por exemplo, como podemos garantir a segurança deste processo, visto que vai afetar todas as gerações sucessivas?
Caso exista algum erro no processo, este erro vai ficar gravado na memória genética do humano resultante e vai ser passado ao longo de várias gerações. Pode nunca ser descoberto, como também se pode manifestar após várias décadas ou mesmo séculos, podendo já estar espalhado na população em geral. Pode dar origem a doenças novas ou outras mutações, que não são possíveis de prever e que podem não ter cura [18]. Mesmo não existindo qualquer erro, não é possível prever os efeitos secundários que podem surgir.
Apesar de haver uma parte significativa da comunidade científica que alerta acerca do grande perigo de editar células hereditárias, e de haver leis a proibir esta atividade em cerca de 40 países, em 2018, o cientista He Jiankui anunciou que tinha alterado geneticamente o ADN de dois embriões de gémeas para não conter o vírus do HIV, transmitido pelo pai. Estes embriões foram depois implantados e a gravidez teve sucesso [11].
O cientista recebeu muitíssimas críticas negativas pela sua experiência irresponsável [19], cujos efeitos a longo prazo são impossíveis de prever. Está de momento preso, até ao fim de 2022, por ter violado leis chinesas.
Este acontecimento levou novamente a uma conversa global sobre o sucedido e vários especialistas na área (incluindo Charpentier, co-criadora do CRISPR/Cas como ferramenta) pediram uma moratória global em todos os usos clínicos da modificação genética da linha germinativa [20]. O documento não exclui a possibilidade de que este tipo de modificação possa existir no futuro, no entanto argumenta que ainda não estamos prontos (e alguns, provavelmente, nunca estarão).
Outra questão ética a levantar, e provavelmente a mais assustadora, é a da potencial evolução da edição genética hereditária para supostas “melhorias”, tal como nos filmes de ficção científica.
Estamos a falar de um cenário em que existiriam bebés “desenhados” de forma específica: teriam um dado nível de inteligência, dadas características físicas e biológicas; tudo escolhido a dedo pelos pais.
Não é preciso imaginar muito para perceber onde é que isto poderá correr mal. Até que limite podemos “comportar-nos como Deus”? Será que é correto modificar a nossa espécie desta forma, tanto para nós humanos, como para os outros habitantes deste planeta? Será que o queremos realmente?
Este tipo de modificação iria permitir a criação de humanos “melhores” do que outros, o que iria certamente levar a um grande aumento da discriminação e desigualdade a nível global, uma vez que as classes mais pobres não teriam a possibilidade de recorrer a este procedimento da mesma forma que as classes mais ricas. Esta aplicação poderia até levar a dividir os humanos em sub-espécies, agravando ainda mais estes problemas [20].
Nas mãos erradas e com fantasias de eugenia, é possível andar para trás no tempo e voltar a um passado vil e tenebroso. Não é coincidência que, em 2016, a Agência de Segurança Nacional Americana tenha classificado a edição genética como uma arma capaz da destruição em massa dos seres humanos [21].
Em suma, é necessário ter em mente que o CRISPR/Cas foi descoberto, como ferramenta, há menos de uma década – é tudo extremamente recente. A engenharia genética não é nociva por si só; tem um potencial sem precedentes para salvar vidas e ajudar pessoas caso seja utilizada de forma eticamente responsável.
No entanto, estando a lidar também com pessoas com outras intenções, são necessárias regulações e sanções claras em mais países, mais conversas a nível internacional e um maior nível de consenso acerca da edição de células hereditárias. Sem assegurar isto, o mais provável é que surjam cada vez mais cientistas como He, que se focam somente no “como fazer” e não no “será que devia”.
Para saber mais:
- Série-documentário “Unnatural Selection” (disponível no Netflix)
- Vídeo educacional sobre o CRISPR: https://www.youtube.com/watch?v=jAhjPd4uNFY
- Livro “A Crack in Creation”, escrito pela cientista Jennifer Doudna
Referências:
[1] – “Genetic Engineering.” 2020.
[2] – Science History Institute. “Herbert W. Boyer and Stanley N. Cohen.” 2017.
[4] – Synthego. “Everything you need to know about CRISPR-Cas9.” 2021.
[6] – addgene. “CRISPR Guide.”
[7] – LiveScience. “What is CRISPR?” 2018.
[10] – Cystic Fibrosis News Today. “CRISPR/Cas9 Approach for Cystic Fibrosis Treatment”
[11] – Center for Genetics and Society. “Human Genetic Modification.”
[14] – The Wall Street Journal. “At $2 Million, New Novartis Drug is Priciest Ever.“ 2019.
[16] – OncLive. “First CRISPR Cancer Results Fuel Hope.” 2020.
[17] – European Group on Ethics in Science and New Technologies. “Ethics of Genome Editing. ” 2021.
[18] – Yale Insights. “Is CRISPR Worth the Risk?” 2018.
[19] – Globo. “Cientista chinês que editou genes em embriões é criticado em congresso.” 2018.
[20] – nature. “Adopt a moratorium on heritable genome editing.” 2019.
[21] – abc News. “US officials list gene editing as possible weapon of mass destruction.” 2016.