“Faltam engenheiros eletrotécnicos”: Os desafios de engenharia associados ao apagão de 28 de abril

Autoria: Margarida Almeida (MEBiol) e Sara Viegas (LEEC)

O apagão do dia 28 de abril deixou receio sobre a fiabilidade do fornecimento de energia na rede ibérica e nas estratégias do país para garantir a produção e entrega de energia. Este artigo deixa uma clarificação sobre o que se sabe que aconteceu, contextualiza os problemas da nossa rede energética e enumera os desafios de engenharia associados.

O que é que aconteceu?

Pedro Carvalho, professor catedrático do Departamento de Engenharia Electrotécnica e de Computadores, explica que: “Havia sintomas de que o sistema estava um bocadinho instável. Quando um sistema está um bocadinho instável, há muita coisa que pode correr mal. Não se sabe exatamente qual foi o gatilho, nem isso é muito importante.

[…] Quando o sistema está instável, qualquer coisa pode levar a uma cascata de eventos, que pode, em último caso, acabar num apagão.” 

A European Network of Transmission System Operators for Electricity (ENTSO-E) anunciou, a 9 de maio, a criação de um painel de peritos para investigar as causas deste incidente que tem tentado estabelecer uma cronologia dos eventos que culminaram no apagão através da recolha e análise, por exemplo, dos dados dos sistemas de proteção e de comando.

Durante a nossa conversa, o professor referiu-se a estes sistemas como “caixas negras” numa analogia com as caixas negras dos aviões que registam e mantém os dados dos vários voos de uma determinada aeronave: “Para se poder entender a informação, não basta olhar para uma dessas caixas pretas, temos que olhar para várias ao mesmo tempo, tentar perceber a relação entre aquilo que é medido num sítio e aquilo que é medido noutro.” Dessas relações, “e sobretudo da cronologia”, é que se pode tentar perceber o que é que esteve na origem da instabilidade.

Sabe-se que a instabilidade foi primeiramente registada em Espanha, durante um momento de exportação para França, Portugal e Marrocos. Cerca de meia hora antes da interrupção, foram detetadas oscilações de tensão e frequência.

“É preciso perceber que Portugal e Espanha não são dois países do ponto de vista de rede. São um só país, um sistema. Não há o sistema português e o sistema espanhol. […] Estamos mais interligados com Espanha, do que muitas províncias de Espanha estão interligadas entre si.” Portanto, a instabilidade da rede espanhola é a instabilidade da rede portuguesa.

Mas Portugal precisa de estar tão interligado a Espanha?

“Portugal é energeticamente independente, no sentido em que nós temos recursos suficientes para satisfazer a nossa procura. Mas a independência não é um valor absoluto. Nós estamos dispostos a comprometer a independência, em algumas alturas, em benefício da eficiência.”

A infraestrutura de transporte de energia é pública e está concessionada. É uma empresa privada que toma conta desses ativos e garante a operação. Os geradores e os consumidores, uma parte deles, também são privados. O mercado de energia funciona “de hora a hora”. A cada intervalo de tempo é avaliada a forma mais barata de satisfazer determinada procura em determinada região. Se houver em Espanha um fornecedor de energia mais barata, que permita um fornecimento mais rentável de energia, “nós vamos comprar essa energia para vender a clientes em Portugal. Essa energia tem que passar na rede e é preciso garantir que passa sem comprometer a segurança da operação.” É um processo bastante complexo, “em grande parte automatizado, mas que envolve pessoas. […] Quem diz que está a produzir a determinada hora pode não conseguir produzir o que disse. Quem diz que está a consumir a uma determinada hora pode não consumir exatamente aquilo que disse que ia consumir. Estes balanços têm que ser fechados em tempo real.”

“Os espanhóis têm tido um excesso de energia solar muito barata. E, portanto, convém-nos comprar essa energia, porque nós não conseguimos produzir tanta energia tão barata.”

Durante o ano passado, a energia hídrica firmou-se como a principal energia renovável, permitindo satisfazer 28% do consumo energético, sendo as energias renováveis responsáveis por suprimir 71% do consumo nacional. Neste contexto, é comum a compra de energia solar espanhola, a baixo custo durante as horas de maior incidência para bombear a água para montante da barragem, e uma vez que se torne economicamente vantajoso, tipicamente mais para o fim do dia ou à noite, a água é então libertada e é Portugal que vende então energia a Espanha. 

“Depois deste susto, limitámos a interligação com a Espanha e os preços [da energia] subiram imenso. São milhões de euros por dia que se gastam a mais pelo facto de se estar a ter cautelas quanto à importação. […] Há aqui um equilíbrio entre segurança e eficiência. Se queremos muita segurança, devemos estar dispostos a pagar por isso.”

O que é que a engenharia pode fazer… Relativamente à causa

“A pergunta a que os engenheiros devem tentar responder é porque é que o sistema estava instável para começar. Porque é aí que atua a engenharia.”

A fiabilidade da rede energética separa-se em dois aspectos muito diferentes, a segurança, que “lida com estes aspetos da capacidade de resistir a grandes perturbações em tempo real”, e a adequação, que se refere “ à capacidade de ter recursos suficientes para satisfazer a procura. Se vocês não tiverem capacidade de produzir energia para satisfazer uma determinada carga, não conseguem depois garantir a segurança […] Há problemas interessantes nestes dois aspectos da fiabilidade.”

A estabilização está relacionada com o controlo de tensão e o controlo de frequência, que são duas grandezas elétricas, que definem o estado da rede. Há equipamento para o controlo destas duas grandezas, mas como cada central está integrada num sistema, “o controlo local de cada uma destas grandezas não garante que o sistema seja estável como um todo, a estabilidade garante-se nas interações entre isto tudo”.

“Antigamente tínhamos poucas centrais muito grandes e com controladores muito bem conhecidos, hoje temos muitas centrais pequenas. Isso muda tudo. Tínhamos interações entre duas ou três centrais que eram muito fáceis de modelizar, com um programa de simulação, simulava-se um monte de situações. Era bastante fácil prever todos os cenários.” Conheciam-se muito bem os esquemas de controlo e os parâmetros da rede, que era sobretudo de muito alta tensão. Hoje temos centrais ligadas em vários níveis de tensão e cada uma tem os seus sistemas de controlo. “Garantir que um sistema destes, com uma complexidade destas, é estável é um problema de engenharia enorme.”

O investimento deverá então concentrar-se no desenvolvimento de modelos de controlo para os vários tipos de centrais elétricas, mais complexos, que consigam prever melhor o comportamento da central nos vários cenários.

Estes modelos de controlo “reagem com algoritmos, […] a um conjunto de informações que conseguem obter. Portanto, simulariam aquilo que um humano faria se tivesse a informação e a conseguisse processar a tempo.” A complexidade crescente destes modelos decorreria de “sistemas que são muito mais, complexos, no sentido em que têm mais peças, mais interações.”

O que é que a engenharia pode fazer … Relativamente à consequência

A partir do momento em que a luz voltou, começou-se a pensar no que se podia aprender com este apagão, do ponto de vista logístico e do ponto de vista da engenharia. “Toda a gente está muito empenhada em aprender sobre as causas para as evitar. Mas eu acho que […] é mais eficaz [investir] em recuperar rápido do [em] evitar.” Continuando, o professor explica: “A causa pode sempre acontecer.  Mas a consequência pode ser muito mitigada.

Na segunda-feira em questão, Portugal utilizou duas centrais nacionais com capacidade de fazer black start (levantar a rede do zero sem auxílio de uma rede de energia externa), ao contrário de Espanha que se ligou a França e a Marrocos. Primeiro, arrancou-se a central a gás natural da Tapada do Outeiro, que criou condições de tensão para alimentar cargas locais e colocar ao serviço outras centrais da região Norte. Fez-se a mesma coisa com a central de Castelo de Bode em Tomar, uma central hídrica, e só a seguir é que se levantou gradualmente o resto do sistema.

Uma intenção já anunciada pelo Governo é a de integrar a função black start nas centrais do Alqueva e do Baixo Sabor. Adicionalmente, já há alguns anos que Portugal tem apelado à construção de mais interligações energéticas nos Pirenéus com o objetivo de aumentar a conexão com o resto da União Europeia para 15% até 2030.

Por outro lado, também é preciso garantir que nas situações de instabilidade há capacidade de parar as cascatas de eventos desencadeadas,“é preciso haver coordenação de proteções” e garantir que o sistema consegue “isolar os defeitos [na rede] de maneira que eles não se propaguem e que não cresçam. […] É preciso ter sistemas computacionais que monitorizem em tempo real o sistema elétrico e que alertem para situações que têm o potencial de serem críticas. Isso hoje já se faz, mas é preciso fazer melhor.” 

Atualmente, a principal preocupação do sistema quando há uma perturbação é “garantir que a perturbação não danifique permanentemente a infraestrutura. Porque a danificar permanentemente a infraestrutura, depois a seguir, para a levantar não são oito horas, são oitenta horas ou oito dias”, revela o professor.

Estas reformas na operação da rede requerem algoritmos mais sofisticados que têm de ser idealizados, testados e aplicados, mas não há profissionais suficientes a trabalhar no assunto. “É preciso muita gente com cabeças boas a pensar sobre isto. Faltam engenheiros nisto, sim. Faltam engenheiros eletrotécnicos que saibam tratar deste problema. Isto é uma coisa que tem sido sentida há muito tempo na União Europeia, [e mesmo até nos Estado Unidos.”

O que se fala por aí…

  • As Microrredes

Numa tentativa de mitigar futuros apagões do género do dia 28 de abril, têm surgido algumas ideias nos media de possíveis soluções, nomeadamente, a questão de uma implementação geral de microrredes. Contudo, a percepção pública sobre no que consiste uma microrrede é um pouco vaga. A definição oficial da Infopédia para microrredes é: “sistema integrado que consiste em recursos de energia distribuídos e várias cargas elétricas operando como uma rede única e autónoma, mas talvez seja mais fácil entender o conceito com um exemplo. Nas palavras do professor Pedro Carvalho: “Um prédio que tem um gerador no terraço, um gerador de emergência, é uma microrrede.

O professor descartou a opção de aplicar microrredes na grande maioria das infraestruturas, sublinhando a sua inviabilidade. “Há soluções dessas de microrredes para sítios que são críticos. Se houver um apagão, a Casa Branca, de certeza, não fica às escuras.” Mas não é viável replicar as soluções da Casa Branca em todos os prédios

Para começar, os geradores de emergência precisam de combustível, que eventualmente, se a energia não for reposta a tempo, irá ser consumido na sua totalidade. Em relação aos painéis fotovoltaicos, é necessário entender que a produção energética por eles gerada não varia, mas a carga requisitada pelos consumos sim. Deste modo, é necessário uma bateria e um sistema de controlo de tensão e frequência para adaptar a produção à carga. “Normalmente a frequência e a tensão são dadas pela rede.” Ora, quando a rede vai abaixo, este sistema perde a capacidade de produção e por isso o painel fica inutilizado. Uma maneira de resolver este obstáculo seria ter um gerador auxiliar ou uma bateria  integrados no sistema de controlo. O preço de implementação generalizada destas soluções de microrredes é exorbitante e, por esse motivo, a sua adoção como regra seja uma reação desmesurada a um “apagão que acontece de 20 em 20 anos.

  • Apaguinhos e Apagões

Naturalmente, depois de um evento como este, as pessoas sentem uma maior apreensão em relação à ocorrência de qualquer apagão, ainda que se trate de algo muito localizado. A partir desse momento, “prevenção” foi a palavra na boca de muita gente, mas o que é que é possível fazer nesse sentido e o que é que devia ser a prioridade?

“Todos os dias há interrupções na rede que põem clientes fora de serviço. É todos os dias. E há padrões de qualidade para isso.”,  afirma o professor. “Portanto, é aceitável interromper pessoas durante um certo tempo. Do ponto de vista da engenharia, não é possível garantir que as pessoas não sejam interrompidas.” 

No entanto, este tipo de interrupções a que o professor se refere são normalmente restritas a uma determinada área, a uma casa, a uma cidade, e devem-se a incidentes aleatórios do dia-a-dia. Como por exemplo, um camião que bate e danifica um poste ou a lenta degradação de componentes do sistema elétrico de alimentação de uma casa.

Assim sendo, os esforços devem priorizar a prevenção dos grandes apagões cujas causas são relativamente antecipáveis e cujas consequências podem ser mitigadas. Um apagão com duração de 2, 3 dias ou mais, apenas pode ser justificado por uma destruição da infraestrutura, causada por exemplo, por uma catástrofe natural, de acordo com o professor. Se não houver destruição física da infraestrutura, é esperado que se possa repor o serviço rapidamente no futuro, mesmo que o “apagão” seja de grande dimensão.

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