Autoria: João Dinis Álvares (MEFT)
No ato de investigar, parte-se de um ponto em que se assume que tudo o que outros disseram antes de nós já foi debatido, corrigido e aprimorado e mesmo que quiséssemos questionar o que fazemos, não há tempo nem espaço para tal. O foco é trabalhar. A motivação da investigação, mais do que aquela que nos move no dia-a-dia, tem de ir para além disso. Porque é que estudamos o que estudamos?
“O facto de que a curiosidade se prende sempre com o que vem a seguir, e já se esqueceu do que veio antes, não é um resultado que vem apenas da curiosidade, mas é a condição ontológica para a curiosidade em si.”, Martin Heidegger, Ser e Tempo, 1927 (Trad. da versão em inglês da Harper Perennial)
Curiosidade é a motivação fundamental da investigação, mas não é a investigação em si que é curiosa, é o ser em si do ser humano. Na ausência da curiosidade, nada mais nos restaria do que enfrentar a ausência de motivo para viver. A curiosidade é a ferramenta primordial para uma pessoa se manter viva e a preocupação* para com o que nos rodeia, tal como é definida por Heidegger, é a razão por trás dela.
“Há um desejo por completude inerente à lógica humana, uma hesitação perante o caso particular, uma constante luta pelo caso geral. Porque deveria ser o caso geral mais interessante do que o caso particular?”, Ludwig Wittgenstein, Sobre a Certeza, 1969
Wittgenstein, poucos anos depois de Heidegger, descreve a curiosidade como uma luta constante por algo mais geral, por algo mais abstrato, por algo que não é tangível à primeira vista.
A curiosidade mantém-se viva apenas enquanto continuar a correr atrás de algo que cessará de existir mal o Dasein pare de existir também. (Dasein é a experiência de ser do ser humano, termo cunhado por Heidegger).
A investigação, conclui-se, surge como um espelho de algo que é uma condição a priori do ser humano, a curiosidade, a preocupação, mas também como algo que só nós, humanos, conseguimos fazer. A curiosidade vai atrás de algo cada vez mais geral, cada vez mais abstrato, mas abstrato apenas dentro do sistema de conhecimento humano. Ou seja, para além da motivação, há a preocupação de que só um ser humano o pode fazer e que toda a investigação perderá o seu valor mal a experiência humana pare de existir também.
“O clássico exemplo do desenvolvimento histórico de uma ciência e até da sua génese ontológica é a emergência da física matemática. O que é decisivo para o seu desenvolvimento não é o seu grande apreço pela observação dos factos, nem a sua aplicação da matemática para determinar o caráter dos processos naturais; é, sim, a maneira como a Natureza é projetada matematicamente. Nesta projeção, há algo constantemente à-mão (matéria) que é descoberto antecipadamente e o horizonte é aberto de forma a que uma pessoa possa ser guiada prestando atenção aos itens constitutivos dentro de si que são quantitativamente determináveis (movimento, força, posição e tempo). […] Na projeção matemática da Natureza, o que é decisivo não é primeiramente o matemático em si; o que é decisivo é que esta projeção mostra algo que é a priori.”, Martin Heidegger, Ser e Tempo, 1927
A matemática é a linguagem que a humanidade desenvolveu para compreender a Natureza. A própria necessidade da existência da matemática vem da falta de rigor da língua falada, que está num constante processo de evolução. “É o uso particular da palavra que lhe dá o significado”, como diria Wittgenstein. Assim, pela criação de símbolos abstratos com uma definição precisa, desenvolveu-se um espaço sobre o qual podemos projetar a Natureza. Nada do que é definido na física realmente existe, é apenas uma interpretação da projeção e, por esse mesmo motivo, nunca poderemos estar certos de que o que é definido na física é verdade. O máximo que se pode fazer é verificar a consistência entre as várias coisas inventadas.
Tal como a filosofia, a física e a matemática são apenas uma coleção de definições e ferramentas que nos permitem ir mais a fundo no conhecimento humano. Porém, no final, não podem produzir nada para além daquilo que não conseguimos compreender. Nunca iremos perceber aquilo que não conseguimos perceber.
“Porque não conseguimos imaginar um vidro branco translúcido?”, Ludwig Wittgenstein, Anotações Sobre as Cores, 1950
Agora que já se falou de onde vem a motivação da investigação, da assunção mais fundamental da física matemática como projeção da natureza, podemos focar-nos nos dois elementos mencionados no título deste texto, o espaço e o tempo.
“O espaço é aquilo em cuja mais pequena divisão todo o tempo pode acontecer e o tempo é aquilo em cuja mais pequena divisão todo o espaço é contido.”, Abu al-Ala al-Maarri, Epístola do Esquecimento, 1033
O espaço e o tempo foram definidos de várias formas ao longo da história. Immanuel Kant, na sua Crítica da Razão Pura (1781), propôs que estas duas entidades fossem as duas condições a priori do conhecimento humano.
“O espaço não é um conceito empírico que foi derivado de experiências externas. […] É a condição subjetiva da sensibilidade, a partir da qual a intuição exterior é possível para nós.”
Einstein, apesar de ter adorado o livro, disse apenas que o único erro cometido neste tinha sido a separação, logo no início, entre o espaço e o tempo. Com a teoria da Relatividade, juntam-se os dois e a questão que surge é a seguinte: O que é que uma pessoa estuda quando estuda o espaço e o tempo? Porque é que não conseguimos ver o espaço a curvar na presença de matéria (apenas os efeitos que a curvatura tem)? Porque é que a luz é a velocidade limite da Natureza?
Vou debruçar-me sobre Relatividade Geral, mas prometo que não o farei de uma maneira como se estivesse a vender a teoria, nem vou mostrar gráficos bonitos.
Como diria Zeca Afonso, “Vejam bem”.
A Relatividade Geral é apenas uma parte da área mais abrangente da física matemática e, por isso mesmo, não deixa de ser mais uma ferramenta do arsenal humano para projetar a natureza na sua maneira de compreender o mundo. Entenda-se a “sua maneira de compreender o mundo” como a maneira própria da lógica humana, aquela que assume os princípios da não contradição e da causalidade como pilares fundamentais.
“Dasein é essencialmente des-separação** – ou seja, é espacial. Dasein é espacial na medida em que constantemente se comporta des-separadamente para com as entidades que encontra espacialmente.”
“O Tempo é primordial como a temporalização da temporalidade e, como tal, torna possível a constituição da estrutura da preocupação. A temporalidade é essencialmente estática. A temporalidade temporaliza-se primordialmente do futuro para o presente. O tempo primordial é finito.”, Martin Heidegger, Ser e Tempo, 1927
Em “Ser e Tempo”, Heidegger conclui que o espaço é temporal, dado que experienciamos o espaço como o ser do Dasein, na medida em que é desta forma que o ser do ser humano se comporta dentro do mundo. E esta experiência tem de ser experienciada ao longo de um certo tempo.
Nós nascemos no espaço-tempo. Nunca vivemos fora do espaço-tempo, nunca houve um momento que tenhamos sentido em que o tempo parasse de ir para a frente nem que o espaço cessasse de existir.
Nunca poderemos estar num sítio que não seja espaço. Nunca poderemos ser se o tempo parar.
Por mais que o espaço e o tempo se tenham unido no espaço-tempo, de acordo com Einstein, esta entidade continua a ser a condição a priori daquilo que experienciamos.
Somos-dentro-de-um-mundo e o nosso conhecimento é limitado a este tipo de ser, tal como a língua que usamos para comunicar limita a maneira como pensamos***.
Se conseguíssemos definir o espaço-tempo, poderíamos também definir o que não é espaço-tempo. Sinto que já ouvi este tipo de problema de definição algures.
O que é que a Relatividade Geral descreve então?
Dado que não conseguimos definir o espaço-tempo, a única coisa que a Relatividade pode providenciar é uma descrição de como o espaço e o tempo se relacionam. É apenas uma teoria fenomenológica, como a física em geral, na medida em que permite uma interpretação da relação entre estas duas entidades, mas não explica porque é que acontece dessa forma. Aparte: Para os matemáticos que talvez se estejam a coçar, definir o espaço-tempo como uma foliação tetradimensional já é a projeção do espaço-tempo sobre a matemática, portanto não serve de definição.
“A teoria original tem de se reinventar sempre que é exposta a um contexto novo.”, Slavoj Žižek, na introdução a “Da Prática e da Contradição”, Mao Tse Tung, 1937
Por que motivo havemos de investigar, então? Por que motivo devemos testar teorias?
A resposta já a demos anteriormente. Os únicos seres que podem testar as teorias de acordo com a sua maneira de conhecer o mundo são os humanos, mas o mesmo serviria para qualquer tipo de ser. O melhor que conseguimos fazer é verificar se os resultados são compatíveis com as expectativas que temos, de acordo com o que conhecemos. Mas isto não serve de motivo.
“Uma vez que as entidades sejam descobertas, elas mostram-se exatamente como as entidades que já antes eram. Este ato de descoberta é o tipo de ser que pertence à ‘verdade’”, Martin Heidegger, Ser e Tempo, 1927
Apesar da verdade pertencer ao Dasein, não é necessariamente subjetiva. Mas também é por isto que estamos limitados à nossa maneira de ver o mundo.
Se cheguei à motivação daquilo a que me propus no início do texto? Não me parece, mas espero ter mostrado alguns caminhos possíveis. Talvez tenha ajudado quem chegou aqui a encontrar a motivação por si mesma.
Notas:
* preocupação é a palavra que escolhi para traduzir sorge (alemão). Pode não ser a mais correta.
** des-separação é a possibilidade de se abrir um espaço entre o ser humano e o objeto em questão, de tal forma que as coisas podem estar perto ou longe do ser humano (do Dasein, mais corretamente).
*** entenda-se a limitação do pensamento, não da maneira como é proposta na hipótese de Sapir-Wohf, mas mais no sentido em que as palavras escondem algo por trás de si.