Autoria: Francisco Ferreira (LEIC-T)
Cristiano Ronaldo, Lionel Messi, Luka Modric e Neymar Jr. Quatro jogadores que, tendo ganho tudo o que havia para ganhar a nível de clubes, entraram no Mundial com o sonho de colocar a joia que faltava na coroa. A última oportunidade para estas lendas que marcaram a sua era e inspiraram muitos jovens a seguir o sonho do futebol. Uma última dança.
Antecedentes
Antes do aspeto futebolístico, é importante mencionar que este era um evento manchado antes mesmo de começar. A decisão de realizar o Mundial no Qatar, tomada em dezembro de 2010, levantou desde logo suspeitas por ser um país nunca antes qualificado para esta competição e sem grande tradição futebolística. Acusações de trocas de votos entre a candidatura espanhola para o Mundial de 2018 e a candidatura arábica foram desde logo varridas para debaixo do tapete, mas o escândalo de corrupção da FIFA de 2015 (que culminou com o afastamento de Sepp Blatter do cargo de dirigente e a condenação de 11 outros oficiais) resultou numa nova abertura da investigação, entretanto arquivada.
Um Mundial de sangue, com dezenas de milhares de mortes de trabalhadores migrantes escondidas pelo governo e media cataris, um orçamento de 220 milhões de dólares (vinte vezes superior ao da Rússia de há 4 anos) e o geral desprezo pelos direitos humanos que proibiu alguns adeptos de se expressarem em todo o país do modo que queriam. Um Mundial ineditamente realizado no inverno devido ao calor infernal do Médio Oriente, perturbava todas as competições domésticas e continentais obrigando a mudanças de formato, antecipações e adiamentos. Muito criticado por treinadores e jogadores, o primeiro mundial hospedado por um país árabe e muçulmano iria seguir em frente.
Após o afastamento da seleção russa, especulou-se que muitas seleções iriam boicotar o país árabe. No entanto, após ameaças da FIFA de suspensão das competições sancionadas, as seleções voltaram atrás na sua decisão. Os capitães que mostraram interesse em usar a braçadeira “One Love” foram avisados que seriam sancionados mal entrassem em campo. Todos recuaram. A competição iria em frente como se nada se passasse, os protestos teriam de ser subtis ou inexistentes sob perigo de punição. A força da autoridade catari fazia-se sentir: ou se jogava como o organizador queria, mantendo a política fora do futebol, ou não se jogava de todo. Estava o destino traçado.
Ao longo do Mundial, detenções e invasões de campo foram suavemente abafadas pelos media locais. O protesto da equipa alemã no primeiro jogo (colocando a mão em frente da boca para simbolizar a censura sentida) foi ridicularizado após esta ter sido derrotada. Cada vez mais era reforçada a ideia que era mais importante focar-se no futebol e deixar o resto para trás. Parecia ser necessário fechar os olhos a algo que nunca deveria ser invisível.
Protesto da seleção alemã antes da derrota frente ao japão, NPR 2022
O futebol
Na primeira jornada da fase de grupos, a seleção anfitriã tornou-se a primeira a perder o seu jogo de estreia após apresentar um futebol sem essência. O jogador equatoriano Enner Valencia bisou na partida, fixando o resultado final com os primeiros golos do Mundial. Em termos de surpresas, a seleção argentina foi derrotada por 2-1 pela Arábia Saudita, o que motivou um feriado nacional no país vencedor. Pelo mesmo resultado foi também derrotada a seleção alemã frente ao Japão. Empates por 0-0 nos jogos Marrocos-Croácia e Uruguai-Coreia do Sul foram também inesperados, mostrando a importância de boas performances defensivas capazes. Goleadas por 4-1 (França- Austrália), 6-2 (Inglaterra-Irão) e 7-0 (Espanha-Costa Rica) mostraram que as seleções europeias entraram com tudo e com vontade de mostrar o que valiam.
Na segunda jornada, começaram as eliminações e qualificações. A seleção anfitriã, após perder 3-1 com o Senegal, tornou-se a primeira a ser eliminada. Seguiu-se o Canadá que, mesmo tendo estado a vencer com um golo do jovem Alphonso Davies (o primeiro golo canadiano em Mundiais), acabou por sofrer a reviravolta para um final 4-1 diante da Croácia. A vitória francesa de 2-1 sobre a Dinamarca ditou a passagem à próxima fase da equipa defensora do título, algo que não acontecia desde 2006. Vitórias em língua portuguesa ditaram também a passagem das duas equipas: Brasil venceu a Suíça por 1-0 e Portugal venceu o Uruguai por 2-0.
Na jornada final, nova derrota catari (2-0) significou um novo recorde negativo: pela primeira vez a seleção anfitriã não pontuou numa fase de grupos. As vitórias da Tunísia e dos Camarões por 1-0 (frente a França e Brasil, respetivamente) constituíram as maiores surpresas, porém não significaram nada no contexto geral, pois as seleções vencedoras foram eliminadas e as equipas derrotadas já estavam apuradas. A vitória de Marrocos sobre o Canadá selou uma passagem com 7 pontos e a consequente eliminação da seleção belga, o primeiro choque. No grupo E, 9 golos nos dois jogos colocaram momentaneamente a equipa do Japão e da Costa Rica na próxima fase. Porém, a vitória nipónica por 2-1 sobre a Espanha colocava ambas as seleções nos oitavos de Final, eliminando as seleções alemã e costarriquenha. Destaque ainda para a vitória sul-coreana frente à equipa das quinas (2-1), que ditou a passagem da equipa asiática às custas da seleção uruguaia.
Equipa sul-coreana após assegurar a qualificação aos oitavos de final, Hindustan Times 2022
Nos oitavos de final, os jogos mais marcantes foram decididos nas grandes penalidades: a Croácia eliminou o Japão após um empate a uma bola (com 3 defesas de Livaković na lotaria final) e a seleção de Marrocos derrotou a Espanha após um nulo (coincidentemente, 3 defesas de Bounou na decisão garantiram a passagem da equipa africana). Houve também duas goleadas: 4-1 do Brasil sobre a Coreia do Sul e 6-1 de Portugal sobre a Suíça (destaque para o hat-trick de Gonçalo Ramos que, tendo sido chamado por Fernando Santos a substituir o capitão nacional após problemas disciplinares, não desapontou).
Yassine Bounou a defender a última grande penalidade espanhola, MSN 2022
Nos quartos de final, a seleção brasileira, favorita desde o início da competição a conquistar o Hexacampeonato, foi eliminada após um desempate por grandes penalidades causado por um empate a uma bola. Neymar Jr. nem pode fazer o seu remate dos 11 metros, o destino estava selado ao fim de 4 penalties para cada lado. A Argentina, após estar a vencer por 2-0, deixou-se empatar, levando o jogo para os penaltis, com vitória argentina. Este jogo bateu o recorde de cartões amarelos num jogo (17) e foi marcado pela morte do jornalista Grant Wahl nas bancadas, que nos dias anteriores tinha sido proibido de entrar num estádio por estar vestido com uma t-shirt que mostrava um arco-íris na frente. A França venceu a Inglaterra por 2-1, selando a passagem às meias-finais. Portugal foi eliminado por Marrocos com 1-0: após um golo antes do intervalo, a equipa das quinas não conseguiu penetrar a defesa marroquina e ficou pelo caminho. A equipa africana tornou-se a primeira da sua confederação a estar presente nas 4 melhores da competição.
En-Nesyri a celebrar o golo marcado a Portugal, Marca 2022
Nas meias-finais, não houve grandes surpresas. Uma vitória de 3-0 da Argentina sobre a Croácia selou a sexta presença da equipa albiceleste no jogo decisivo. A desorganização defensiva croata e o génio de Messi e Alvarez resultaram num jogo de sentido único. Do outro lado, a França venceu Marrocos por 2-0. Mesmo com este resultado, a seleção africana não deixou de lutar, causando problemas na defesa gaulesa até ao final, mas sem conseguir alterar o resultado.
Os perdedores encontraram-se no dia 17 no Khalifa International Stadium: dois golos de cabeça nos primeiros nove minutos (Gvardiol para a Croácia e Dari para Marrocos) e um remate em arco de Orsic na segunda parte selaram o resultado final em 2-1. Estava acabado o trajeto marroquino. Performances defensivas de excelência, o controlo do meio-campo exímio de Amrabat e o génio atacante de Boufal e Ziyech relembraram o mundo que o continente-berço tem muito talento e que tem cada vez mais capacidade de o mostrar. Por outro lado, a medalha de bronze foi um ponto final satisfatório na carreira internacional de Modric, tendo o jogador croata terminado o Mundial com o prémio de Bola de Bronze (3º melhor jogador do Mundial).
A final, assistida por 88966 pessoas em Lusail, trouxe-nos o melhor jogo da competição. Um final apropriado para o Mundial excelente destas duas seleções. Indo para o intervalo a vencer por 2-0, graças a um penalty convertido por Lionel Messi e uma jogada de equipa finalizada por Angel Di Maria, a equipa albiceleste parecia ter o jogo nas mãos. Porém, 2 golos em 2 minutos de Kilian Mbappé (uma grande penalidade e um remate em queda, apenas ao nível dos melhores) levaram o jogo a prolongamento. Os 30 minutos extra trouxeram mais um golo a cada uma das maiores estrelas: Messi marcou primeiro aos 108 minutos e Mbappé converteu novo castigo máximo para empatar o jogo aos 118’. Tivemos nova lotaria, que terminou com um 4-2 a favor dos albicelestes, colocando a 3ª estrela no emblema da camisola.
Messi, vestindo uma túnica oferecida pelo emir Sheikh Tamim bin Hamad Al Thani levanta o troféu Jules Rimet, CNN 2022
No fim
O mundial teve de tudo: surpresas, goleada, performances individuais brilhantes, equipas que demonstraram o que de melhor há na defesa e no ataque, golos para recordar, controvérsia (tanto dentro do campo como fora do mesmo) e vários treinadores a demitirem-se após eliminação.
Killian Mbappé, além de receber o prémio de Bola de Prata, tornou-se o segundo jogador a marcar um hat-trick numa final, depois do inglês Geoff Hurst em 1966. Emiliano Martínez ganhou o prémio Luva de Ouro e Enzo Fernández conquistou a distinção de melhor jovem jogador do torneio.
Lionel Messi conseguiu o que tanto queria, levando a taça para casa 36 anos depois. “Por ti Dios”, referindo-se a Diego Maradona, a quem dedicou a conquista do troféu. Recebendo a distinção de melhor jogador do torneio, completou a sua tarefa: ganhou tudo , escreveu o seu nome na história dos maiores de sempre e capitaneou a equipa albiceleste à conquista que faltava, catapultando o seu nome para a frente dos candidatos à próxima Bola de Ouro. Foi encontrado um novo campeão do mundo. O sol da bandeira albiceleste tem novamente motivos para sorrir.
Messi a beijar a taça, Football.london 2022
Referências:
[1] The New York Times. FIFA Indictments. (acedido a 18-12-2022)
[2] Statista. World Cup in Qatar: The Most Expensive Ever. (acedido a 18-12-2022)
[3] Cristiano Ronaldo chateado por ficar no banco (acedido a 18-12-2022)