Culto no Cinema

Autoria: Francisca Branco (LEAer) e Patrícia Marques (LEFT)

Encontramos no cinema vias de expressão e representação únicas – por vezes, toma até a forma de trabalho historiográfico e (propositadamente ou não) didático. Não é a nossa intenção primária neste artigo qualificar as caracterizações de cultos – que são aqui referidos enquanto a soma de atitudes e crenças associadas à veneração de uma entidade – nem explorar o rigor das reproduções face à realidade, até porque exploramos histórias reais e fictícias. Procuramos, sobretudo, entender como se dá uso à linguagem específica do cinema para fazer retratos de rituais, pessoas e ambientes associados a cultos, à sua integração e às suas dinâmicas.

The Wicker Man é talvez uma das obras de terror mais influentes, sendo considerado um ícone do folk horror, não fossem claras as semelhanças com, por exemplo, Midsommar, um filme de 2019 da autoria de Ari Aster ou o videoclipe da música Burn the Witch [3] dos aclamados Radiohead. É na figura do Sargento Howie, um polícia vindo do continente encarregue de investigar o desaparecimento de uma menina na ilha escocesa onde se passa todo o enredo, que acompanhamos o conflito entre a religião cristã e o paganismo que, neste caso, remonta às origens celtas. A dualidade entre o tipo de culto não é apenas explorada através das práticas e crenças (ressuscitação vs. reencarnação, exploração da perspetiva de salvação segundo o sacrifício). Embora tenha a fé profundamente cravada em si, a figura de autoridade legal, lógica e pragmática, contrasta com o líder local, uma personalidade cujo carisma e envolvimento com a comunidade são as principais características. Estas relacionam-se, claro, com as de qualquer líder de um culto real, usualmente dito como “visionário” ou “carismático”. [4] Em Midsommar, são também abundantes as cenas ritualísticas à luz do dia, elementos sexuais e referências à fertilidade feminina, no entanto, o envolvimento da personagem principal no culto sueco tem uma motivação, desenlace e foco mais pessoais. Fragilizada pelos eventos familiares traumáticos e a relação amorosa em deterioração, Dani, interpretada pela atriz britânica Florence Pugh, é levada a encontrar um sentimento de pertença e sentido em Hårga, o culto pagão sueco que é cerne da história. [7]

The Sound of My Voice (2011) apresenta-nos Maggie, uma misteriosa visitante do ano 2054, que se viu perdida em 2011. Acompanhamos a sua missão humanista pelos olhos de Lorna e Peter, um casal que se infiltra no culto de Maggie com o intuito de o expor como uma fraude, através de um documentário. Esperançosos em encontrar o típico líder persuasivo, deparam-se com uma figura frágil, pacífica, cujas palavras dóceis atuam como arma silenciosa, entrando lentamente na mente de quem as ouve no momento certo. O cenário da cave onde a ação se desenrola é desconfortante desde os primeiros minutos – não que esteja a acontecer algo peculiar, mas o ambiente que consome aquele local pressupõe um clima fatídico, quase como se aquela entidade dominante estivesse a traçar a sina de qualquer aspirante a seu seguidor. Vemos maioritariamente representados elementos introspetivos, com apelos constantes à libertação do interior pessoal e abordagem de passados obscuros em troca de uma promessa de salvação quando o cruel futuro se aproximar. [12] Zal Batmanglij, diretor do filme, explora essencialmente de que maneira a atmosfera cultista converte as pessoas mais assertivas em fortes crentes.

“If they were broken and could just stay in their brokenness, I think, Brit and I would have been more comfortable with the situation. But the idea that this group was going to save them with a snap of a finger fascinated me.”

– Zal Batmanglij, 2012 [13]

Paul Thomas Anderson é um dos cineastas mais reconhecidos dos nossos dias e o seu repertório de filmes é aplaudido quase sem exceção. Familiarizamo-nos, entre os seus objetos de estudo, com o das relações interpessoais, em particular, a ligação paternal que é tópico tanto em There Will Be Blood (2007) como em The Master (2012), embora em contextos e profundidades muitíssimo diferentes.*** Neste último, a relação de pai-filho é estabelecida entre as personagens Lancaster Dodd (Philip Seymour Hoffman) e Freddie (Joaquin Phoenix), respetivamente. Este veterano da Segunda Guerra Mundial, Freddie, que lida com dominantes doses de pós-trauma e tendências violentas, acaba por se cruzar com Dodd, líder magnético do movimento filosófico The Cause, tornando-se, no fundo, um dos seus casos de estudo. A aceitação, o senso de utilidade e a aparente mentoria são componentes de forte peso na integração de Freddie na família e no culto retratado, que rapidamente foi comparado pelo público à Igreja da Cientologia, fundada por L. Ron Hubbard no século passado. As alegações foram comentadas pelo autor: “I didn’t want it to be a biography. It’s not the L. Ron Hubbard story”. [15] The Master pode ser entendido, assim, não como uma descrição de um sistemas de crenças e práticas específico mas como um meio para melhor entendermos como esse conjunto de cânones combinado com ligação emocional contribuem para características comuns daquilo que é um culto – exploração e dominância. É um dos exemplos como o ato de servir é nebuloso nas suas implicações e motivações.

A família Manson é colocada debaixo dos holofotes de Hollywood. O culto hippie de Charles Manson, motivado por ideais racistas, foi responsável pelo assassinato de nove pessoas, entre julho e agosto de 1969, tendo sido a morte de Sharon Tate, uma estrela do cinema em ascensão, a que mais chocou o mundo. A constante abordagem do massacre de 8 de agosto de 1969 nos grandes ecrãs levanta questões acerca daquilo que ainda se mantém em segredo acerca do caso. 

Em Charlie Says (2018), Mary Harron explora todos os detalhes da vida da família Manson, certificando-se de que não conta a história de quatro assassinos, mas sim de quatro almas cujas situações familiares as encaminharam para o conforto das palavras de Charles Manson, este grande líder visionário que procura atingir o nirvana e resigna qualquer ensinamento do mundo exterior, que não o da pura sobrevivência. Entramos na pele de Lulu, uma das assassinas de Sharon Tate, como ficará recordada, a quem são dadas as boas-vindas à família. Rapidamente nos apercebemos da obscenidade deste local, palco de orgias, consumo de drogas e planeamento de crimes, mascarado de uma busca por um estado de se sentir amado e da renúncia ao próprio ego. As raparigas da família dão-nos a conhecer o seu quotidiano recheado de ideais misóginos, visíveis tanto na adoração do prazer sexual masculino e na fixação que Manson tem pelo nu feminino, como na sua mente encarcerada, incapaz de formar qualquer opinião pessoal sem antes proferir a dupla que batiza o filme, Charlie says. A influência das palavras de Charlie é de tal forma bem transparecida que o terror dos assassinatos cometidos passa de forma leviana, ao sermos preparados para o “grande espetáculo” durante toda a nossa visita a Spahn Ranch.

“I had to make the decision that everything I had believed was now wrong. I would now have to be fully responsible for the damage, the wreckage and the horror. It is countless how many lives were shattered by the path of destruction that I was part of. And it all came from such a simple thing as just wanting to be loved.”

– Patricia Krenwinkel, 2014**

Quentin Tarantino, por outro lado, opta por contar a história de um ator e do seu duplo numa tentativa de salvar as suas carreiras falhadas, que têm a (infeliz) coincidência de terem Sharon Tate como vizinha em Once Upon a Time… in Hollywood (2019). Apontando o foco do filme para estes dois atores, Tarantino raramente menciona a mente por detrás dos crimes, numa tentativa de reescrever a história – o que teria acontecido realmente a Sharon Tate caso tivesse estes vizinhos improváveis? O clímax do filme, o encontro mortal entre a atriz e a família Manson, embora satírico, mantém-se fiel à tensão típica da representação do massacre nos grandes ecrãs.

Cientes de que o cinema nem sempre é (nem tem o dever absoluto de ser) uma criação à imagem da realidade, que se traduz como um espelho do que é vivido no passado ou presente, podemos, no entanto, encontrar nestas análises uma série de denominadores comuns à vivência e ambiente de culto. Neste, está imensamente presente a estrita importância de crenças partilhadas, práticas idênticas, objetivos ou desejos semelhantes e simbolismos. Apresentam-nos um líder dotado de um perfil carismático, domador de ideologias consideradas fora do padrão, e que domina o ofício das palavras. Do lado da plateia, encontramos os seus leais seguidores, cuja fragilidade emocional e procura por reconforto os tornam submissos a uma inegável adoração a esta figura. Sem enquadramentos automáticos no binómio positivo-negativo, o fenómeno do culto pode ser visto como o conceito de comunidade a multiplicar a sua magnitude, a ser consumido (e por vezes priorizado) pelos seus membros devotos.

Anotações

*Curiosamente, Christopher Lee, ator principal, não foi pago pela participação no filme The Wicker Man: “I got paid nothing. I keep repeating to people and they don’t believe it’s true,” he said in 2001 documentary The Wicker Man Enigma. “If they paid me my normal fee – and everyone else their normal fees – they wouldn’t have been able to make the film.” [6]

**Citação retirada do fim do filme. Patricia Krenwinkel foi uma das raparigas da família Manson que foi presa pelo assassinato de Sharon Tate. Encontra-se ainda encarcerada no California Institution for Women, juntamente com Leslie Van Houten. Susan Atkins faleceu a 24 de setembro de 2009 com cancro no cérebro. [9]

***Em entrevista à Newsweek, Paul Thomas Anderson revelou que, em The Master, foram utilizadas algumas cenas inicialmente escritas para There Will Be Blood, um filme centrado em Daniel Plainview e na expansão do seu negócio de petróleo. [15] Este é dominado por simbolismos, à medida que nos surgem os temas da ambição, da fé, do utilitarismo e da família no enredo.

Filmes mencionados (por ordem de aparição no artigo)

  • The Wicker Man, Robin Hardy (1973)
  • Midsommar, Ari Aster (2019)
  • Charlie Says, Mary Harron (2018)
  • Once Upon a Time… in Hollywood, Quentin Tarantino (2019)
  • Sound of My Voice, Zal Batmanglij (2011)
  • The Master, Paul Thomas Anderson (2012)

Filmes sugeridos dentro do tema (por ordem cronológica)

  • Eyes Wide Shut, Stanley Kubrick (1999)
  • The Stepford Wives, Frank Oz (2004)
  • The Invitation, Karyn Kusama (2015) 
  • Get Out, Jordan Peele (2017)
  • Hereditary, Ari Aster (2018)
  • Under the Silver Lake, David Robert Mitchell (2018)
  • Incantation, Kevin Ko (2022)

Referências

[1] Head: The Celtic Head Cult 

[2] Radiohead Artist Stanley Donwood Shares “Burn the Witch” Behind-the-Scenes Shots 

[3] Radiohead – Burn the Witch 

[4] The personality of ex-cult members

[5] How ‘The Wicker Man’ Changed Horror Movies Forever

[6] The unforgettable pyre: How The Wicker Man changed the face of horror

[7] The Real Places, People, and Art That Inspired the Horrifying Village in ‘Midsommar’

[8] “Charlie Says” Director Mary Harron Interview 

[9] The Women Who Murdered for Charles Manson: Where Are They Now?

[10] Charles Manson and the Manson Family – Crime Museum

[11] “Once Upon a Time in Hollywood”: Quentin Tarantino Channels “Night of the Living Dead” at Spahn Ranch

[12] The Sound of my Voice: A Retrospective Look at Indie Gold

[13] The Real-Life Cult Experiente Behind Sound of My Voice

[14] Unused Scenes From ‘There Will Be Blood’ Reworked For ‘The Master’ & More From Paul Thomas Anderson About The Film

[15] Inside ‘The Master,’ Paul Thomas Anderson’s Supposed “Scientology” Movie

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