Entrevista com José Santa-Bárbara: “em todas essas casas tive gente do partido que estava na clandestinidade”

Autoria: Vasco Lourenço (LEFT)

Autor de várias obras premiadas, José Santa-Bárbara aceitou o convite para uma entrevista em que relembra o seu passado como estudante, ativista e artista.

Nascido em Lisboa a 28 de outubro de 1936, Santa-Bárbara frequentou o Liceu Camões, tendo mais tarde abandonado o Liceu para se dedicar às artes. Começou com o curso de Cerâmica e o curso de habilitação à Escola Superior de Belas Artes (ESBAL) na Escola António Arroio, seguindo depois para o curso de Escultura na ESBAL. O artista trabalhou ao lado de nomes como José Saramago, Pitum e Francisco Keil do Amaral, e desenvolveu trabalhos de dimensão nacional e internacional, como: intervenções plásticas em várias estações de comboios da Grande Lisboa, design dos interiores e exteriores dos comboios da série 2300 da Comboios de Portugal e do logotipo desta empresa, capas dos discos de vários artistas como Mário Viegas, Carlos Mendes, Fernando Tordo, José Jorge Letria, Paulo de Carvalho, Adriano Correia de Oliveira, José Mário Branco, Fausto, Travadinha, Ana Firmino, Celina Pereira, Andrés Stagnaro, O Gajo e José Afonso. [1]

Retrato de José Santa-Bárbara na sala da sua casa em Sintra.

Entrevistador (E): O Liceu Camões foi uma escola importante no movimento estudantil liceal. Como é que foi o seu tempo no Liceu?

José Santa-Bárbara (JSB): Eu andei no Liceu só 3 anos, porque depois fui para a António Arroio. De facto, o Liceu não era a minha carreira. Felizmente, o meu pai tinha andado na Escola de Belas Artes e costumava juntar-se aos fins de semana [com um grupo de amigos], iam beber a sua bica e conversar para o café Nicola. E um deles era o diretor da António Arroio. E o meu pai estava a falar do Liceu, mas eu não gramava aquilo, então o diretor da António Arroio sugeriu: “Porque é que ele não vai para António Arroio?”. Foi logo no dia seguinte.

E: Como é que foi ser estudante de artes durante o Estado Novo?

JSB: Enquanto andei na António Arroio, havia professores que não gostavam muito que a gente fizesse alguns temas. Eu lembro-me que fiz uma peça que era uma varina, uma peixeira, era um tema de trabalho. E havia uma exposição que era feita anualmente na Sociedade Nacional de Belas Artes, que eram as Exposições Gerais de Artes Plásticas, como se chamava. Iam os [artistas] já feitos. Um deles, o arquiteto Keil Amaral, de quem eu era amigo do filho, colega de escola de Belas Artes, viu aquela peça que eu tinha feito e disse “leve isso às Belas Artes, à Exposição Geral”. E eu, para levar, como era uma peça que tinha sido feita na escola e estava na escola, tive que pedir ao diretor da escola, que enfim era um fulano do… E eu pedi “Professor, posso levar?”, “A exposição é onde?”, “A exposição das Belas Artes…”, “Ah, não. Não te deixo levar”. Porque ele sabia que era tudo gente de esquerda. De maneira que não pude levar, mas levei outras coisas que eu tinha feito por fora que não tinham que ver com a escola… Foi aí onde eu expus pela primeira vez.

E: Essas exposições de Artes Plásticas eram organizadas pelo Movimento de Unidade Democrática, certo?

JSB: Era. Tudo gente da esquerda que organizava aquilo. Era sempre visitada pelos rapazes da PIDE. Iam lá todos meter o nariz. Inclusivamente, mandavam tirar coisas e levavam. Enfim, aí fazia-se sentir dessa maneira.

E: Quando esteve na António Arroio foi aluno do mestre Abel Manta, certo?

JSB: Fui sim, senhora. Aquele retrato está ali em cima, a lápis. Era um retrato meu que foi feito pelo Abel Manta. Fez-me aquele retrato de que eu gosto muito. […] E o mestre Manta era um rico professor, era um gajo que ensinava e sabia. Sabia também puxar por um tipo. Foi muito importante para mim, ser aluno dele, porque de facto era um tipo catita.

Retrato de José Santa-Bárbara da autoria do Mestre Abel Manta.

E: Mais tarde, em maio de 59, assinou uma carta dirigida a Salazar a exigir a sua demissão, juntamente com outros 402 estudantes. Como é que essa carta chegou a si?

JSB: Eu nessa altura já era do chamado MUD juvenil. E [a carta] foi mandada ao Botas. Claro que não gostou. E tudo lá ficou assente. Enfim, eram histórias, e o que é engraçado, engraçado… Um gajo agora ri-se e acha graça, mas na altura não se achava graça nenhuma. Porque eles tinham que ter um cuidado. Tu viste aquilo [relatórios da PIDE do paradeiro de Santa-Bárbara]. Eles seguiam-me, se eu estava no Algarve, se estava nas Caldas, se estava em Lisboa… Eles sabiam sempre onde é que eu estava. Mas também os conseguia enganar muito bem, porque em todas essas casas tive gente do partido [Partido Comunista Português] que estava na clandestinidade. Tive-os em casa, em vários períodos. E, em Lisboa, tinha o Zeca. O Zeca era um tipo completamente… Parecia que não vivia neste mundo. De maneira que tinha muito pouco cuidado com o que fazia. Os tipos [a PIDE] estavam fartos de saber que o Zeca ia lá a casa. Ele vivia em Setúbal nessa altura e quando vinha a Lisboa ficava em minha casa. E até tinha um pijama meu para dormir lá em casa. De maneira que ele chegava e trazia sempre muitos telefonemas para fazer. Às vezes ouvia isso e dizia “Oh Zeca pá! Acaba-se isso dos telefonemas. Acaba-se, porque o telefone é escutado”, “Epá, Achas que sim?”, “Tenho a certeza! De maneira que tu, se fazes favor, não tens essas conversas cá! Se for para dar um recado qualquer à Zélia, dás, agora estar a ter conversas dessas…”. De maneira que cada vez que ele aparecia lá em casa… A casa onde morava era um duplex, tinha 2 andares. A partir de uma altura quando o Zeca lá ia, tirava o telefone lá de baixo e punha lá em cima. De maneira que acabavam-se os telefones. Os gajos [da PIDE] eram de um primarismo e de uma ordinarice! Às vezes, o telefone tocava. Se era eu que atendia “É só para dizer pá! A tua mulher é uma ganda puta, anda-te a pôr os cornos”. E se era ela que atendia o telefone, era o contrário. Claro que um gajo desligava e seguia em frente. E depois o PIDE à porta. Havia um gajo que eu dizia que era o meu PIDE de estimação, porque era sempre o mesmo ainda por cima, que se punha encostado à parede de um prédio em frente ao meu. É que era uma coisa incrível, e quando os meus filhos eram putos e iam para a escola, ia lá uma carrinha buscá-los, de maneira que eles desciam e às vezes a carrinha ainda não tinha chegado e vinham os gajos e diziam: “Então… Quem é que lá está hoje em casa?”. E eles que já estavam industriados: “Estão o meu pai e a minha mãe!”. Eram umas cenas de facto tristes.

E: Para além dessa carta, que mais fez dentro do MUD juvenil?

JSB: Na altura das eleições do Humberto Delgado, andávamos na Escola de Belas Artes e organizaram manifestações, barulheiras… Lembro-me de que houve uma reunião de apoio ao Humberto Delgado no Liceu Camões, mas uma coisa que era pedida oficialmente. A malta foi. À saída, era a PIDE a tirar fotografias a quem saía daquilo. E depois, no Saldanha, a GNR a cavalo e com o chanfalho na mão, a correr atrás da malta, a dar porrada. Inclusivamente, havia um café aqui, não sei se ainda existe, na Duque d’Ávila, a malta meteu-se dentro do café e os gajos entraram a cavalo! Eram cenas dessas e, ainda por cima, quando andávamos na escola de Belas Artes, havia um estupor de um gajo, alentejano, que era colega de lá na arquitetura e que era da GNR. Aparecia sempre, fardado, juntamente com os outros a dar porrada na malta. Era um estupor de um gajo! E depois a malta gozava com ele, de maneira que ele tinha também um pó, já não nos podia ver! Era o Rui Marchante, o nome até lhe assentava bem! Enfim, era um grande coiro.

Depois, andámos metidos nos trabalhos de candidatura, primeiro do Arlindo Vicente, e depois, quando o Arlindo Vicente resolveu desistir e passar para o Delgado. A sede da candidatura era numa moradia no bairro social do Arco Cego, aliás, onde eu nasci, aquele ao pé do Liceu Filipa de Lencastre. E alugou-se uma moradia que ainda por cima era de uma gaja que era da PIDE, mas sabia-se que era, não sei se era angolana sequer, era conhecida pela “preta das virtudes”! De maneira que faziam-se lá reuniões e claro, sempre tudo acompanhado pela rapaziada da PIDE.

Mas, aconteceu-me uma vez, havia um grupo, éramos uns 5 ou 6, fazíamos exposições coletivas. Fizemos uma exposição na cooperativa dos trabalhadores de Portugal, ali naquelas escadas que vão do Rossio ao Largo do Carmo. E tínhamos lá uma exposição e eu tinha uma pintura que era uma mulher com um ar triste e uma tigela vazia com uma colher e tal. E ela à mesa… E tinha uma gaiola, a gaiola tinha lá dentro um pássaro que era vermelho, e eu chamei aquilo “O Banquete”. E então os tipos [a PIDE], normalmente, andavam sempre de gabardine, uma gabardine azul escura. A gente topava-os logo. E então entram dois, com o seu ar de quem vem visitar a exposição e pararam em frente dessa minha pintura: “Essa pintura… Porque é que se chama ‘O Banquete’?” e eu: “É uma ironia, não é um banquete, ela não tem o que comer”, “E porque é que o pássaro é vermelho?”, “Olhe, pintei-o de vermelho, podia ser azul… Foi o único que consegui apanhar”. Era o género. Que histórias!

E havia malta que não fazia a mínima ideia. Eu lembro-me de que, já depois do 25 de Abril, o meu filho tinha um amigo que um dia jantou lá em casa. Estávamos a jantar e estava-se a falar e eu contei a história de ser preciso uma licença de isqueiro, um gajo que usasse isqueiro tinha que tirar uma licença nas finanças, que no fundo era para não fazer concorrência aos fósforos, que a fábrica era do Estado. E eu usava um isqueiro e o meu pai, que nunca teve grandes posses, era uma coisa que ele tinha logo cuidado, todos os anos tirava uma licença de isqueiro para não ter que pagar a multa. Porque depois, se fosse apanhado sem licença, pagava assim uma multa, naquela altura, 250 escudos, era muito. E eu estava a contar essas histórias e lá esse amigo do meu filho, “Ah! Está a inventar”, “Epá! Aprende, informa-te, eu posso-te ensinar muita coisa do que se passava!”. E ele fica logo com um ar muito coiso, mas não queria acreditar que fosse possível. Mas era, eu lembro-me de um dia, já andava na Escola de Belas Artes, e vinha com o meu colega, o Pitum Keil Amaral, morávamos perto um do outro e apanhávamos o mesmo autocarro para ir para casa. E estava eu, no Rossio, na paragem de autocarro, estávamos os dois a conversar, e eu puxei de um cigarro. Aparece um gajo, os tais da gabardine azul, “Pode-me mostrar a sua licença de isqueiro?”. Começo eu… Eu sabia perfeitamente em que algibeira é que a tinha. “Ah! Não sei… Olha tu por acaso não reparaste onde eu pus a licença”, “Eu não…”, dizia o Pitum, depois abri a pasta… E o gajo com um ar, a sentir-se nitidamente gozado, e eu a fazer uma rábula do caraças. “Oh! Afinal estava aqui!”, mostrei-lhe, e ele com umas trombas do caraças virou-me as costas e foi-se embora e a malta que estava na paragem desatou a rir à gargalhada.

E: Teve mais algum encontro com a PIDE?

JSB: Eu por acaso fui dos poucos que nunca fui [preso]. Eu lembro-me de que, na Escola de Belas Artes, quase todos os contínuos eram informadores da PIDE. E a gente conhecia-os, também sabia. Eu lembro-me que durante as eleições do Humberto Delgado, ele foi fazer campanha lá no Porto e veio de comboio para Lisboa. E a malta sabia e juntou-se em Santa Apolónia à espera do Delgado. E no dia seguinte o gajo [o PIDE] olhou para mim e disse assim. “Eu ontem vi-o…”, se calhar nem viu, mas decidiu atirar, “Ah sim? Mas viu-me onde?”, “Ah, estava em Santa Apolónia, à espera do Humberto Delgado”, “E depois? Por acaso até estava”, disse eu. Mas eram primários! Enfim…

Quando estava lá em baixo no Algarve, porque era lá professor em Silves, e Silves era chamada de Terra Vermelha, tinha a indústria da cortiça e aquilo era quase tudo gente do partido. Olha, o meu sogro [de Silves] esteve preso, esteve em Caxias. E havia um gajo, que se sabia, que periodicamente ia pagar aos informadores. E então era um gajo das gravatas, os gajos que vendiam gravatas na rua. Era uma coisa que havia em todas as terras, em Lisboa e tudo. E então quando se via o gajo das gravatas chegar a Silves, a malta dizia assim “Epá! Hoje é dia de pagamento! Hoje é dia de pagamento!”, porque, já se sabia que era o gajo que depois ia pagar aos informadores. Eram umas cenas, pá, umas cenas… Mas dentro propriamente, nunca fui.

E: Como é que depois, mais tarde, conheceu o Zeca?

JSB: Nessa altura, eu vivia nos Olivais. E, num prédio a seguir ao meu morava, o Adriano Correia de Oliveira, de quem eu era amigo. Noutro prédio, o Zé Niza. De maneira que havia assim um grupo. E o Zeca apareceu, pronto. Um dia, virou-se assim para mim “Epá! Estava cá a pensar… Queres fazer uma capa para um disco meu?”. E a partir daí… Fiz nove capas para ele. E depois o Zeca era a tal coisa, frequentava a casa. Era a casa dele em Lisboa, era a minha. E depois, como havia os outros ao pé, havia sempre ali um grupo. E claro que a PIDE sabia dessas coisas todas. Lá informados andavam os gajos. Cumpriam o seu serviço.

E: Tinha que ter algum cuidado especial quando produzia as capas? Para passar pela censura.

JSB: Isso era importantíssimo. Era um tipo tentar dar a volta às coisas para não serem muito evidentes, não é? Havia símbolos, o da pomba, não sei o quê. E havia aquele [álbum do Zeca] da toupeira, “Vou ser como a toupeira”. E eu então lembrei-me de um dicionário que havia, de 1927 salvo erro, em casa do meu avô. E lá tinha a toupeirinha, gira, desenhada. E depois o que era a toupeira: “A Toupeira é um animal”, não sei o quê… E depois tinha assim: “Toupeira é também o nome dado a pessoas que trabalhavam na clandestinidade contra um regime” ou não sei o quê… E eu assim “Olha! porreiro!” Fotografei e pronto! [Pega no livro com uma figura do álbum] Estás a ver isto? O que tinha era assim: “Mulher velha e mal vestida […] Pessoa que trabalha às ocultas para subverter instituições”. E depois eu, o corte que eu fiz foi assim “pessoa que trabalha verter instituições, etc”. Mas os gajos, à primeira não viram mas depois mais tarde, houve algum esperto que… [Continua a ver o livro] E isto foi o artigo, estava lá em casa o Fernando Assis Pacheco, um grande jornalista e poeta, um gajo porreiro, que ia lá muito a casa também, e estava eu a fazer isto, esta capa. E ele: “Epá, posso tirar uma fotografia a isso?”, “Tira”, e tirou. Nessa altura, havia uma revista de música chamada “Musicalíssimo”, e o Fernando Assis Pacheco também escrevia e colaborava, e fez esta coisa de “Santa Bárbara, capista de Zeca”, depois quando foi para pôr o nome ao livro, foi esse mesmo.

Capa do álbum “eu vou ser como a toupeira” de José Afonso.

Referências:

[1] Soares da Rosa, Abel: “Santa-Bárbara, Capista de Zeca”, Lusitanian, 1ª Edição: Outubro de 2023

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