MONSTRA 2024: Animação e Liberdade de Expressão

Autoria: Ana Margarida Pereira (MEEC), João Rodrigues (LEFT)

Entre os dias 7 e 17 de março, decorreu a 23ª edição do Festival de Animação de Lisboa: MONSTRA 2024. O festival passou por várias salas de cinema, entre elas o Cinema São Jorge e a Cinemateca, tendo exibido filmes nacionais e internacionais. O Diferencial teve a oportunidade de conversar com um dos oradores, Bill Kinder, co-autor de “How to make the cut at Pixar”.

Todos os anos a MONSTRA recebe um país convidado e, nesta edição, foi a vez da Irlanda. Com aproximadamente 400 filmes em exibição, incluindo 27 estreias mundiais e 24 internacionais, além de 143 produções nacionais, o festival ofereceu uma experiência cinematográfica diversificada. As projeções incluíram longas, curtas e curtíssimas-metragens, distribuídas por sete competições diferentes, desde produções de estudantes até filmes exclusivamente portugueses, e uma secção dedicada ao público infantil, chamada MONSTRINHA [1]. Além das projeções, o festival incluiu também palestras e exposições, que exploraram uma variedade de temas, destacando-se a Liberdade de Expressão, em celebração dos 50 anos do 25 de abril. Passemos a uma análise mais detalhada das várias vertentes do festival.

Sessões Temáticas

À semelhança de anos anteriores, houve sessões temáticas de curtas-metragens animadas. Em Archanim, exibiram-se curtas que destacam diferentes aspectos e estilos arquitetónicos; No Terroranim e Dokanim apresentaram-se curtas de terror, e documentários animados, respetivamente, enquanto Clipanim trouxe videoclipes animados. Triple-X exibiu curtas-metragens de natureza erótica, e por fim, em Jazzanim, os espectadores desfrutaram de curtas musicadas ao vivo, por alunos da Escola de Jazz Luiz Villas-Boas.

Para celebrar a Irlanda, como país convidado, foram reservadas sessões para exibir filmes de animação do estúdio irlandês Cartoon Saloon, e palestras conduzidas pelo diretor do estúdio, Fabian Erlinghäuser.

Outra novidade foi a estreia do Dia da Abstração, um evento dedicado exclusivamente à arte abstrata. O principal objetivo da introdução desta atividade foi “criar um ponto de encontro anual, para os entusiastas dessa forma de expressão artística”, pelas palavras de Ana Santos e Nöel Palazzo, diretoras de Punto Y Raya [2], festival de cinema cuja temática é o abstracionismo.

Ambas estiveram presentes na MONSTRA e introduziram a sessão com uma seleção de projetos que haviam participado na 8ª edição do festival, que teve lugar em Lisboa, em 2023.

Cartaz da 8.ª edição do festival de cinema Punto Y Raya.

Masterclasses e Painéis

A MONSTRA trouxe, mais uma vez, um conjunto variado de masterclasses e painéis, aos quais a equipa do Diferencial teve a oportunidade de comparecer. Estas experiências  são o local de maior discussão de temas e produções recentes sendo, por isso, um grande foco do festival.

Videojogos e Realidade Aumentada

Orientada por Ricardo Blanco e Hélder Rocha, nesta masterclass acompanhou-se os percursos profissionais dos oradores. 

Desde animação aos videojogos, Ricardo Blanco começou a animar em 1997. Durante o evento, destacou alguns dos seus projetos, como a animação de “Os Patinhos” e a sua participação num estúdio de animação, Bigmoon Animation Studios (atualmente Bigmoon Entertainment), na qual iniciou a sua carreira nos videojogos. Falou dos desafios e obstáculos que enfrentou na produção dos mesmos, como a inclusão dos patrocínios, que exige uma especial atenção aos detalhes, e a importância de haver equipas de físicos e engenheiros na indústria para garantir um resultado fidedigno e uma experiência de jogo realista.

Por sua vez, Hélder Rocha, fundador e CEO do estúdio Unloop, baseado em Braga, cujo foco se baseia em experiências imersivas, entrou em detalhe nos seus diversos projetos, mencionando, entre outros, “Mall of Qatar”, o seu primeiro projeto no Médio Oriente e que consistiu na recreação virtual de um centro comercial; e “Odd Space”, um projeto com uma vertente mais didática, que permite com a Realidade Virtual viajar no tempo e no espaço, selecionando o planeta e o ano,.

Ambos os oradores deram particular importância aos perigos da Inteligência Artificial (IA) e de falsa informação num período em que se pode facilmente manipular a realidade, espalhando boatos ou fake news, o que pode até dessensibilizar-nos, como foi o caso da polémica com a tour virtual de Mark Zuckerberg, fundador e CEO do Facebook, durante as inundações de 2017 em Puerto Rico, em que “brincava” com avatares enquanto uma catástrofe se sucedia.

Inteligência Artificial na Animação e BD 

Bruno Carnide, Mário Freitas e Tiago Loureiro abordaram o impacto da IA na animação e na Banda Desenhada, mais concretamente em  como a podemos usar, não para criação de conteúdo, mas como um meio para atingir o resultado pretendido, com uma maior otimização do tempo e esforço. 

Ao longo da tarde, num diálogo de duas horas, os oradores falaram dos diversos processos de criação de conteúdo com IA e da necessidade de inputs humanos para se alcançar o potencial criativo. 

Bruno Carnide, responsável pela criação da primeira curta-metragem portuguesa a utilizar IA para a formação de imagem, execução do guião e composição da banda sonora, indica que não há motivos para temer a substituição de artistas pela IA, argumentando que o papel do artista é fundamental na integração das diferentes partes, e que a IA atua apenas como uma ferramenta, que expande as nossas capacidades criativas. Reforça essa ideia com a seguinte analogia: “Todos temos papel e caneta, no entanto, não somos todos bons escritores”.

Mário Freitas, autor de banda desenhada, guia-nos pelo processo de criação do livro “Polaroid em Branco”, produzido também com o auxílio da IA. Confessa que, recorrendo a IA, manter a consistência das personagens não é tarefa fácil, resultando muitas vezes em figuras com cores ou características diferentes que tiveram de ser trabalhadas e adaptadas por ele. Por essa razão, embora tenha usado a IA para gerar partes da história, ressalta que esta não é co-autora.

Por último, Tiago Loureiro, investigador de IA e engenheiro no mercado dos videojogos, fala em detalhe da utilização de machine learning e dos seus desafios e aplicações no dia-a-dia, terminando o seu discurso com um alerta para o bombardeamento de prompts duma entidade que gera um bias no sistema que é importante tentarmos evitar.

MONSTRA Summit – Liberdade de Expressão na BD e Imagem em Movimento

No ano de celebração dos 50 anos do 25 de abril, a MONSTRA Summit proporcionou uma reflexão sobre a liberdade de expressão nas artes visuais em movimento, ilustração e BD. Cristina Sampaio, André Carrilho, Nuno Saraiva e João Miguel Tavares reuniram-se nesta cimeira para partilhar as histórias, os desafios e a influência social e política dessas formas artísticas. 

Durante a discussão, um tema recorrente foi a imprevisibilidade das reações do público aos cartoons. Tanto as controvérsias causadas como o impacto no público podem surpreender os próprios artistas. Todos os cartunistas reconheceram que os cartoons refletem inadvertidamente as suas opiniões quanto aos temas, mesmo que essa não seja a opinião expressa nos textos que se propõem ilustrar. 

Além disso, foi abordada a falta de proteção oferecida por jornais e canais televisivos em situações de ameaças aos cartunistas, havendo muitas instituições a optar por uma posição neutra durante controvérsias. Os participantes também examinaram o papel dos algoritmos das redes sociais na amplificação de polémicas, enfatizando como publicações descontextualizadas podem levar a interpretações diversas por parte dos usuários.

Para além de cartoons tradicionais, os cartunistas apresentaram “Spam Cartoons” [3], que introduziram como nova forma de humor gráfico, e que consiste numa animação de curta duração sobre questões políticas, catástrofes, entre outros.

Por último, foi feita a distinção entre a recusa e censura, ressaltando o direito tanto do cliente quanto do cartunista de rejeitar a criação ou a publicação de um cartoon. As experiências pessoais dos quatro cartunistas trouxeram à tona a complexidade deste tipo de expressão artística, destacando os diversos desafios e nuances enfrentados nesta indústria.

Alê Abreu – O Menino e o Mundo dos Perlimps

Na masterclass de Alê Abreu, animador e diretor brasileiro, este explicou ao público o processo criativo e as dificuldades da produção do aclamado filme “O Menino e o Mundo” e como este inspirou o seu filme mais recente, “Perlimps”.

Começando por “O Menino e o Mundo”, Alê Abreu explicou a importância deste filme para deixar a sua mensagem ao mundo e como a sua realização e o seu processo gráfico fazem parte da mensagem transmitida. Este processo incluiu recorrer principalmente ao uso de revistas e jornais para realizar colagens que, misturadas com os desenhos, criaram os cenários e momentos do filme.

Já em “Perlimps”, a intenção foi o uso de muitas cores, o que lhe recordava “O Menino e o Mundo”. Um método na produção da arte apresentada no filme foi a criação de manchas, maioritariamente aleatórias, com as quais, através da edição de imagem, Alê Abreu alcançou o resultado final. Ele demonstrou-nos esse processo, que passava pela criação da maioria dos planos e cenários, e pela colocação posterior desses elementos naturais na cena.

Alê terminou apontando como, apesar de gratificante, a produção de “Perlimps” foi também desafiante, tanto pelo trabalho artístico, como pelo facto de entretanto ter surgido a pandemia, que atrasou o seu lançamento. 

Bill Kinder – Making the Cut at Pixar – A Arte da Edição na Animação

Nesta masterclass o produtor da Pixar, Bill Kinder, que esteve envolvido na criação de “A Bug’s Life”, “Ratatouille” e “Toy Story”, compartilhou conhecimentos sobre o mundo da edição de animação, enfatizando o seu papel crucial na realização de filmes. 

O editor está presente em todos os passos do projeto, desde o primeiro esboço da história até ao corte final. Cada elemento, por mais trivial que possa parecer, contribui para a visão holística do filme. Bill Kinder reforçou o lema ‘movie first, scene second, cut last’ (filme primeiro, cena depois e corte por último), sublinhando a importância de manter a integridade e coesão da narrativa em cada etapa do processo de produção. 

Reconhecendo o fracasso como precursor natural da inovação, compartilhou os desafios da produção de filmes premiados, destacando que “a certo ponto, todos pareciam terríveis”. Um exemplo concreto disso foi em “Up”, onde, inicialmente, se tinha pensado numa montagem para ilustrar o desenvolvimento da relação amorosa entre as personagens Carl e Ellie. Nesta montagem a relação começava com um golpe, algo que se tornava uma parte constante da dinâmica entre eles. No entanto, este segmento, apesar de cómico, não provocava os sentimentos pretendidos na audiência, e ainda se estendia por mais de 20 minutos, que Bill reforçou ser demasiado para uma montagem. Isto contrasta com o corte final, “Married Life”, que dá um sentimento completamente diferente à história, permitindo que o público se envolva mais profundamente com as personagens.

Mostrou também como grande parte do processo de criação de um filme de animação, que pode durar vários anos, é dedicada ao desenvolvimento do enredo e dos storyboards, e a animação final, geralmente, só começa cerca de 8 meses antes do lançamento.

Bill Kinder ainda destacou a importância de reconhecer a animação como mais do que um género, visto que é um meio de contar uma história, não um romance ou um drama. Na opinião do editor, classificar todos os filmes de animação como um só género é ignorar todo o processo crítico e criativo que está por detrás da produção e edição dos mesmos. 

No fim da palestra, o Diferencial conversou  com Bill, que garantiu haver no mundo da animação oportunidades para engenheiros de diversos ramos. Dentro da produção dos filmes, estes têm papéis essenciais na criação de animações realistas e no desenvolvimento de sistemas computacionais para processamento de dados. Além disso, destacou a importância dos engenheiros na redução do impacto ambiental dos projetos. A utilização de CPUs requer sistemas de refrigeração e é necessário pensar de que forma isso pode ser implementado, minimizando a pegada ecológica dos estúdios. 

Referiu também que o mindset de engenharia é fundamental para o planeamento da produção, incluindo a definição de prazos realistas e a alocação eficaz de recursos. Por último, para os interessados em ingressar neste tipo de indústria, Bill enfatizou que não existe uma única trajetória, compartilhando a sua própria experiência como prova de que a jornada é uma aventura, onde o indivíduo é “a única constante”.

Exposições

No contexto das comemorações dos 50 anos do 25 de Abril, o Cinema São Jorge foi palco de duas exposições durante o festival, ambas concebidas por alunos da Escola Artística António Arroio. “Encontros Revolucionários Pré-25 de Abril de 1974, em Espaços Interiores” apresentou cenários de cinema de animação, retratando possíveis locais de reuniões clandestinas, pré-25 de Abril, que refletiam o abandono e a passagem do tempo, enquanto “Corre Liberdade, Corre!” foi um tributo à Liberdade, da perspetiva daqueles que não testemunharam o 25 de Abril de 1974.

Até dia 7 de abril, estará disponível no Museu da Marioneta a Exposição Três Famílias, onde se podem ver os cenários e marionetas originais dos filmes “Interdito a Cães Italianos”, de Alain Ughetto, “Retrato de Família”, de Lea Vidakovik e “A Cada Dia que Passa…”, de Emanuel Nevado.

Sugestões da Equipa do Diferencial

“Arquiteto A” é um filme do diretor coreano Jonghoon Lee, que esteve inserido na sessão de Archanim, e relata a construção da casa de uma mulher idosa. O protagonista é reconhecido por construir casas personalizadas com materiais da vida dos clientes, tendo, no entanto,  interrompido a sua carreira após um acidente.

Resultado de uma co-produção entre BAP Animation Studio e Studio Kimchi, o filme “De Imperio” mostra um grupo de fugitivos à procura de um caminho para o centro de um edifício, onde a resistência se está a juntar. Evitando a vigilância, passam por salas com gigantes e testemunham as suas rotinas macabras. O filme foi premiado em 2023 como a Melhor Curta de Terror Portuguesa no MOTELX – Festival Internacional de Cinema de Terror de Lisboa e Melhor Banda Sonora no Festival Caminhos do Cinema Português em Coimbra.

“La Notte (Short 2023)” é um filme baseado no concerto de Antonio Vivaldi, em que o protagonista tenta entrar numa festa exclusiva, ficando rapidamente arrependido. Recebeu o prémio de Best Graduation Film no Festival de Cinema de Animação de Annecy em 2023.

Cartazes dos filmes favoritos da equipa do Diferencial.

Cerimónia de Encerramento

Como sempre, o festival oficializou o seu término com a Cerimónia de Encerramento, que nos foi apresentada, mais uma vez, pelo diretor artístico da MONSTRA, Fernando Galrito. Ao longo desta emocionante noite, fomos não só guiados pelas diversas categorias e premiados, como também por uma vasta homenagem a artistas e membros da indústria da animação em Portugal e no estrangeiro. Alguns dos premiados de maior destaque desta noite foram os seguintes:

Na Competição de Longas, “Linda veut du poulet!” recebeu o Grand-Prix e o Prémio do Público.

O filme “Robot Dreams”, nomeado para o Oscar na categoria de Melhor Animação, foi o vencedor da Competição Perspetivas.

“Sopa Fria”, de Marta Monteiro, que retrata a história de uma mulher vítima de violência doméstica, foi o filme mais premiado da noite. Na competição de curtas, foi reconhecido como Melhor Curta Portuguesa, enquanto na Competição Vasco Granja, dedicada, exclusivamente, ao cinema de animação português, foi distinguido com o Prémio do Público e Prémio Especial do Júri.

Cartazes dos filmes mais premiados da 23ª edição da MONSTRA.

Durante a cerimónia foram anunciados os cartazes da MONSTRA e da MONSTRINHA para 2025. A 24ª edição do festival irá decorrer entre os dias 20 e 30 de março, tendo a Áustria como país convidado. Até lá!

Anúncio da próxima edição da MONSTRA e do país convidado: Áustria.
Fotografia: João Rodrigues

Referências:

[1] Catálogo MONSTRA 2024, [Online, último acesso a 28/03/2024].

[2] Festival Punto y Raya, [Online, último acesso a 28/03/2024].

[3] Canal de YouTube “Spam Cartoon”, [Online, último acesso a 28/03/2024].

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