“Can’t you show me nothing but surrender?”
Autoria: Pedro Fonseca (MMAC)
É a minha visão que se os anos 60 foram uma festa de arromba, os anos 70 foram a ressaca terrível da manhã seguinte. Anos de desconforto e desilusão com a confirmação geral de que as reformas, revoluções e novos ideais prometidos ao longo de uma década em pouco ou nada se materializaram; e naturalmente foi no ramo da música que esse sentimento mais se fez ouvir. Das baladas de amor dos Beatles e dos Beach Boys passou-se para o rock mais denso e escuro dos Led Zeppelin, para a folia artística fulminante de David Bowie, e para o punk puro dos Ramones e dos New York Dolls. E do meio de todos estes estilos e artistas surge Patti Smith.
Enquanto o seu álbum de estreia “Horses” seja visto como um marco do movimento punk, descrevê-lo apenas como música punk não lhe faria justiça; seria, aliás, descrever Patti Smith apenas como cantora. Poeta, música, fotógrafa, escritora, estamos a falar de uma artista altamente multi-facetada, talentosa, e acima de tudo, genuína; pois por toda a vida e por toda a obra de Smith não há nada que seja mais evidente que a sua capacidade de ser naturalmente ela própria, a sua recusa em ceder minimamente às expetativas de outros, um controlo inabalável da sua liberdade. “Horses” é um monumento a esta maneira de ser, à qual muitos de nós aspiramos; viver sem quaisquer cedências criativas, sem qualquer receio de desiludir. Patti Smith quer começar o álbum com a sua versão esmagadora de ‘Gloria’ dos Them, então é isso o que ela faz; se ela quer seguir com uma música reggae sobre o desaparecimento de uma rapariga, ‘Redondo Beach’, então é isso que faz; e se depois ela quer entoar um poema de nove minutos com um som de fundo discreto, chega então ‘Birdland’ aos nossos ouvidos, uma obra de arte a vários níveis. Quem ouve o álbum é praticamente convidado a não gostar e a deixar de ouvir, mas isso claramente não interessa a uma artista que não teme em subverter expetativas; porque se de seguida Smith quer entrar por uma via mais íntima e pessoal, é isso que acontece: segue-se ‘Free Money’, sobre a infância passada em pobreza de Smith na Nova Jérsia; ‘Kimberly’, uma homenagem à sua irmã mais nova, e ‘Break It Up’, um hino à possibilidade de uma pessoa se libertar daquilo que a acorrenta. Segue-se ‘Land: Horses/ Land of a Thousand Dances/ La Mer(de)’, a faixa mais irreverente do álbum, com vários movimentos diferentes, e termina-se com uma ‘Elegie’ (“There must be something I can dream tonight”).
O maior hit: ‘Gloria: In Excelsis Deo’. Uma versão de ‘Gloria’, dos Them; Smith eleva a canção, musicalmente e acima de tudo liricamente, a um patamar muito superior.
A minha favorita: ‘Kimberly’. Baseada na memória de infância de segurar Kimberly nos seus braços durante uma tempestade, a faixa oferece, na minha opinião, a performance vocal de Patti Smith mais assombrosa do álbum inteiro.
O que ouvir a seguir: Apesar de Patti Smith ter produzido muitas músicas excelentes ao longo da sua carreira, nenhum álbum se aproxima a meu ver, em termos de qualidade, a “Horses”. “Easter” inclui a minha música favorita de Smith, ‘We Three’, e o seu maior sucesso comercial, ‘Because The Night’; no entanto eu recomendo olhar para artistas diferentes da época, que capturem o Zeitgeist a um nível semelhante, como “Lust For Life” de Iggy Pop, e “Marquee Moon” dos Television. Recomendo ainda o documentário “Rolling Thunder Revue”, dirigido por Martin Scorsese, que explora uma tour de Bob Dylan pelos Estados Unidos e Canadá nos anos 70, e no qual aparece brevemente Patti Smith.