A Guerra dos Memes

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A net é muitas coisas. Aproxima e separa pessoas, concentra e dissolve vontades. Uma faca pode ser usada para matar ou cortar pão.

Texto: Francisco Carvalho*


Na primeira edição, explorámos a importância dos anos formativos para criar cidadãos competentes. Agora, olhamos para como a internet afecta a nossa democracia no presente.

Selva no Feed:

Um meme
Um meme

Precisamos de definir meme. Um meme é uma ideia, uma crença, ou comportamento que se transmite de pessoa para pessoa numa sociedade. O termo foi cunhado por Richard Dawkins em 1976 como um análogo informacional e intangível do termo gene, mas nunca foi tão relevante como agora. Tal como o “gene egoísta” de Dawkins, podemos pensar em memes como vírus informacionais, que podem ser vantajosos, neutros, ou nocivos. Rezas, palavras, e piadas são memes.

Um memeplex, ou “espaço memético”, é um conceito originalmente introduzido para descrever religiões ou filosofias políticas. É o nome que se dá a um conjunto de memes que interagem favoravelmente e que repelem memes incompatíveis, como uma relação massiva de simbiose. Ajuda a explicar a polarização de ideologias políticas, ao rejeitar ideias incompatíveis ou enfraquecedoras de um espaço estabelecido[13].

O meme da utilização de ferramentas
O meme da utilização de ferramentas

Somos o que comemos, e em poucos domínios isto é tão verdade como numa democracia. Ao pensar num feed de rede social, imagino uma manjedoura infinita ligada a um silo cheio daquilo que o dono da quinta decidiu que os animais podem comer. Uma imagem desconfortável, sobretudo quando sabemos que acesso à internet é acesso ao mercado combinado de biliões de fontes, desde o blog pessoal mais enviesado até ao jornal investigativo mais rigoroso.

Ninguém tem tempo para conhecer tudo – e especialmente neste mercado saturado, com pouca distinção superficial entre lixo e tesouro – é arriscado gastá-lo com desconhecidos porque nos sujeitamos a uma experiência medíocre. Desta dinâmica emerge uma economia da atenção, um ecossistema que selecciona a reprodução dos memes que sequestram os nossos cérebros de primatas com mais eficácia.

Acontece que alguns dos memes mais bem sucedidos no habitat digital são nocivos, como certas notícias falsas e sensacionalistas. O próprio acto de produzir conteúdo deste tipo para captar cliques é recompensado pela estrutura do feed, em que a tendência é para olhar para um cabeçalho ilustrado e continuar a scrollar.

Câmaras de Eco

É comum associarmo-nos a pessoas com convicções compatíveis com as nossas. As plataformas online permitem-nos estar expostos apenas às vozes que desejamos, e é frequente que se comece a tomar determinados valores como certos. Bolhas ideológicas funcionam como criadouros para memeplexes. A falta de contacto com opiniões contrárias torna difícil distinguir estes espaços meméticos da realidade mais ecléctica. Isto, por exemplo, ajuda a explicar o choque de muitos, na sua bolha “educada” de classe média liberal, perante a victória de Donald Trump.

A intervenção da Cambridge Analytica nas eleições americanas de 2016 demonstra como a democracia está despreparada para lidar com o paradigma tecnológico actual, quer a nível institucional como civil. Quantidades massivas de dados obtidos com recurso ao facebook foram usados para perfilar comunidades susceptíveis a mudar o voto, e identificar a propaganda mais persuasiva até ao nível individual. Isto mostra-nos o poder de marketing personalizado e direccionado.

Há também quem defenda que guerra memética teve um papel importante nas eleições de 2016. Com acção coordenada a fazer subir macros de imagens desde os cantos obscuros do 4chan até às contas de twitter de políticos proeminentes, e consequentemente à nossa consciência colectiva[16]. O carácter descentralizado e sem autoria dos memes é parte da sua beleza, mas também os torna ferramentas adequadas a perversão e uso em ataques informacionais organizados. Por exemplo, no caso dos milhares de trolls russos que, nos últimos anos, espalharam confusão e propaganda posando como ocidentais através de contas de social media falsas com o objectivo de influenciar a opinião pública e exercer poder indirectamente para defender os interesses de Moscovo[18].

O poder de engenharia de memes é difícil de ignorar, mas pode ser surpreendente para muitos que o departamento da defesa americano tenha estado atento às suas aplicações militares desde 2006[19]. O impacto de tudo isto é visível na derrota do lado com mais escrúpulos (ou excesso de confiança) nos casos das eleições americanas, no referendo do Brexit, (que passou sem qualquer esboço de plano de execução) ou mais recentemente no progresso assustador do Artigo 13 (robots de censura) nas instituições europeias.

Talvez por razões evolutivas, talvez por um período recente de notícias centralizadas e selectas fontes autoritárias de informação (TV, rádio, jornais), estamos vulneráveis a mera desinformação por exposição, maus a desconfiar[1,2].

Ninguém gosta de ser manipulado. Para nos habituarmos às novas circunstâncias, tomar consciência é um começo. A seguir interessa saber verificar a veracidade de afirmações, confiablidade das fontes, e manter presente que os memes e opiniões que nos passam à frente servem os seus próprios interesses: reproduzir-se.

Navegar informação digital

No que toca a factos, uma dose saudável de cepticismo vai longe. Especialmente com assuntos que nos afectam emocionalmente, ou estórias que confirmem opiniões que já mantínhamos antes, porque são as que mais afectarão as nossas decisões. Num processo pessoal de fact-checking pode ser útil perguntar: [3,4,5,8]

  • Quem está a partilhar isto e porquê?
  • Que provas apresentam e quais as suas fontes?
  • Há outras fontes a dizer a mesma coisa?

Escolher em quem confiar também pode ser traiçoeiro.

Os dias dourados da infância da internet – em que bom aspecto do site indicaria legitimidade – já passaram. Uma leitura apta de um site deve ser lateral – isto é, devemos abrir vários separadores, procurar outras publicações com o mesmo tópico. Mais que ler o About, para confiar que estamos a ler verdades, devemos ver o que outros têm a dizer sobre a publicação, a sua reputação, e tendências.

Leitura lateral
Leitura lateral

Não há uma verdade absoluta. Toda a informação sobre o mundo passa por humanos. Haverá sempre viés, mas podemos ajustar as conclusões que tiramos de certos materiais ao que já sabemos sobre o autor ou plataforma. Tal como o leitor saberá decerto dar um desconto à minha afirmação quando digo, por exemplo, que “o website do diferencial está uma verdadeira obra-prima”.

Não seria escandaloso se dissesse que hoje política é pouco mais que uma novela em que boas estórias ganham rotineiramente a factos. Factos são aborrecidos, não têm sobrevivido na selva da atenção. Memes melhores singram mesmo que acabem por destruir a sua população de hospedeiros, porque os memes não querem saber.

Podemos fazer a nossa parte como cidadãos interpretando o que lemos com proporcionalidade a quem o escreve, e partilhando apenas conteúdo que satisfaça os nossos critérios de confiabilidade, para evitar espalhar falsidades que levam a decisões inaptas. Como uma vacina: se a maioria estiver inoculada, o vírus desaparece.

Munidos de uma boa estrutura para escrutinar a informação de que precisamos, olhamos brevemente para uma das promessas douradas da internet:

Democracia Digital

Vivemos numa democracia representativa porque em tempos foi impraticável recolher a opinião popular directamente para tomar decisões. Com o desacoplar da transmissão de informação da distância física, ganhamos o potencial para contactar qualquer pessoa, organizar grupos e acção remota. (ver primavera árabe e longa marcha, o occupy).

Em vez de clarear e evoluir os nossos modelos políticos, o paradigma (de corrupção) actual reforça a confusão e obriga a população a adoptar ou apatia, ou ruído. O espaço para diálogo e nuance é escasso no sistema. Temos visto manifestações de impacto graças à internet, mas muito pouca reforma estrutural.

Pela primeira vez na história, democracia directa é possível.

Rua em Marrocos durante a Primavera Árabe
Rua em Marrocos durante a Primavera Árabe

Antes da revolução, no entanto, temos de consertar a maneira como apreendemos a realidade e, consequentemente, como tomamos decisões. Em terra de cegos quem tem olho é rei, e a guerra dos memes não espera por ninguém.


Referências e recursos:
[1] Stanford researchers find students have trouble judging the credibility of information online
[2] Stanford scholars observe ‘experts’ to see how they evaluate the credibility of information online
[3] Fake News: A Survey of Research, Detection Methods, and Opportunities
[4] 5 Tips to fact check the Internet
[5] Poynter Institute, non-profit school for journalism
[6] Citizens disillusioned with democracy: poll
[7] Partido de la Red and DemocracyOS
[8] The Facts about Fact Checking: Crash Course Navigating Digital Information #2
[9] Digital Democracy | Carl Miller | TEDxAthens
[10] Santiago Siri : Internet and blockchain-based technology, a revolution for Democracy
[11] Solid
[12] Democracy Earth, the promise of a safe and independent online voting system
[13] Meme
[14] Ministério da Cultura não revela posição sobre diretiva dos direitos de autor
[15] Meme wars
[16] The Aesthetics of the Alt-Right
[17] Meme Warfare
[18] How Russian Trolls Used Meme Warfare to Divide America
[19] MEMETICS—A GROWTH INDUSTRY IN US MILITARY OPERATIONS
[20] Cambridge Analytica’s US election work may violate law, legal complaint argues
[21] Democracy Earth

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