Leveduras expiatórias

Um mundo sem cirrose seria bem melhor, mas sem leveduras a mudança não valeria a pena.

Texto: César Bombarda*


Quem nunca teve um fraquinho por um bode? Não vale mentir nem armar-se em forte. Toda a gente já se deixou seduzir por um bode expiatório. Numa noite mais longa, quando o bar está a fechar e as palavras se enrolam na língua aparece sempre aquela opinião mais ousada, aquela generalização mais apressada ou aquela certeza mais peremptória. Não é bonito, mas não há que ter vergonha. Leveduras expiatóriasÉ normal cairmos nesta cilada e os pequenos excessos que então cometemos têm uma função providencial: lembrar-nos como é fácil perder a postura e desatar a acusar pessoas ou coisas que nem sequer conhecemos. Por exemplo, os turistas. Muita gente é da opinião que em Portugal há um problema na maneira como se organiza a oferta turística, mas quando não há energia para se ser específico, varre-se o assunto dizendo que “A culpa dos preços das casas é dos turistas! Que vão p’ra terra deles e nos deixem em paz, pá!”. Fiquemos no tema, mas mudemos de assunto.

Uma causa possível de cirrose hepática é o consumo de bebidas alcoólicas. As bebidas alcoólicas são produzidas graças à acção das leveduras. Ora, se estivermos interessados em acabar com a cirrose, devemos fazer alguma coisa relativamente às leveduras. Afinal, elas produzem álcool! Suponhamos que temos o poder de eliminar todas as leveduras, fazendo aquilo a que se chama “cortar o mal pela raíz”. O que restaria? Restaria um mundo onde seria impossível fazer tostas mistas, dado que sem leveduras também não há pão levedado nem queijo! Esta história é absurda porque as leveduras são fungos, e por isso não podem ter motivações, muito menos intenção de provocar cirroses. Neste contexto, as leveduras estão a ser usadas como bode expiatório, ou seja, estão a servir de repositório da culpa de todo o mal que a cirrose causa. E como é bom encontrar um culpado! Consigo imaginar os protestos na rua: “Malditas leveduras! É por vossa causa que se gasta tanto dinheiro todos os anos com os tratamentos hepáticos!” ou então “É por causa destes malditos fungos que milhares de pessoas sofrem e ficam com o corpo inchado!”. Não são palavras de ordem muito boas, mas enfim, percebe-se o efeito.

Encontrar um culpado — não só uma causa, mas uma causa personificável, com intenção – para algum fenómeno é muito satisfatório. Permite que se atire contra esse culpado — o bode expiatório — toda a indignação e frustração que são causadas pelas maldades que lhe são atribuídas. Além disso, fica-se com uma solução óbvia para acabar com essas maldades: impedir que o dito culpado continue a agir e, assim, “cortar o mal pela raíz”. Contudo, raramente os bodes expiatórios possuem a chave para a resolução do problema cuja culpa lhes é atribuída. O que os bodes expiatórios fazem é impedir que se continue com uma discussão ordenada capaz de encontrar soluções válidas. Porque quando já está toda a gente cansada de andar à procura de uma solução e aparece alguém e diz “Pessoal, a culpa dos vossos problemas é isto aqui! Olhai bem!”, a maioria de nós fica tentada a parar de pensar e aceitar aquela solução. Não nos esqueçamos da satisfação e do alívio que é encontrar um culpado para alguma coisa! E quando estamos impacientes pelo fim de um problema — por exemplo aquela impaciência quando já só queremos que os exames acabem — somos perfeitamente capazes de nos desleixar, cansados e até aflitos, e aceitar, aqui e ali, um bode expiatório. Todo o cuidado é pouco.

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