Le Suicidé, Édouard Manet[1]
Se cientes de alguém que pondera terminar a própria vida, natural e socialmente somos incentivados a impedir o cujo. Ora, existe sanidade na procura de morrer? Nesta que é uma questão determinante para apoiar campanhas de prevenção ao suicídio e acelerar o debate acerca do suicídio assistido, há uma série de pressupostos a analisar – objetivo a que me proponho.
Autoria: Patrícia Marques (LEFT)
Pelas nossas comunidades, flui o dogma de combate ao suicídio. Dogma não necessariamente por ser uma proposição de uma doutrina religiosa ou desatualizada, mas por (poder) aparentar irrefutável e incontestável. Na verdade, a ideia é usualmente distribuída sem justificação profundamente analítica e num apelo meramente emocional – não que tal seja insuficiente ou anule a validade da tese. Nesta perspetiva, a ideia do artigo não é propriamente contrariar este movimento, é ir mais além no porquê de promover a vida e a vida em qualidade, captar as bases fortemente racionais para esta corrente de pensamento. Para tal, será percorrida uma jornada por tópicos díspares – os ditos “autodeveres”, autossabotagem, penalizações e potencial humano, levantando aplicações e dilemas reais.
Associar uma ação a um “autodever” implica que esta seja tomada por e tenha fins no sujeito em si mesmo, ou seja, o impacto é causado unicamente (se impossível, essencialmente) no autor da ação. Introduzir este conceito levar-nos-á a refletir sobre as obrigações que temos perante nós mesmos, especialmente a de nos melhorarmos. Tal conceito é abordado na ética Kantiana, sob a perspetiva de uma lei moral que implica, dir-se-ia, a preservação da própria vida, nomeadamente.
Uma visão de um “autodever” requer, como explicitado acima, um imperativo superior à inclinação da pessoa, seja até por convicções espirituais ou religiosas – digamos, por exemplo, uma visão holística das tendências humanas ou a crença numa existência dos seres motivada por algo superior ao nosso conhecimento carnal. Um outro exemplo é o das implicações da nossa ausência na vida de outrem e a definição do suicídio como um ato egoísta para com os entes queridos da pessoa, os seus dependentes, aqueles com expectativas sobre si. Ora, não menosprezando tais óticas, passemos para uma mais individualista, analisando se este (suposto) dever moral de subsistirmos e nos automelhorarmos é também uma necessidade biologicamente natural.
Se não é só um dever como também uma tendência humana, como explicar a autossabotagem – talvez como uma adversidade? Seria natural assumir que todos nós somos dotados de uma sede por bem-estar; dessarte, também uma necessidade interna de procura por meios provedores de felicidade e por mecanismos de defesa perante ameaças externas e maus hábitos. Ou será que não? Partindo da premissa de que a resposta não é um trivial “sim” ou “não”, dissecar as nuances da autossabotagem é concluir que se centra numa manifestação de múltiplas ações destrutivas praticadas contra o próprio sujeito, isto é, uma série de comportamentos inconscientes de autopunição e com consequências negativas na sua realização pessoal e crescimento profissional. Consiste, portanto, num tipo de comportamento seriamente limitante, derivado do domínio da subconsciência e oposto àquilo que engloba os desejos reais e conscientes. Sendo assim, a autossabotagem espelha que nem sempre o melhoramento das nossas condições é a resposta óbvia ou natural.
Não basta refletir sobre a possibilidade de o automelhoramento não ser uma tendência humana sempre prevalente, há que mencionar um outro problema que consiste em explicitar o modelo correto a perseguir, se é que este existe, ou seja, refletir sobre aquilo em que consiste nos melhorarmos. Definir os parâmetros do bem-estar e do “autodever” significa estabelecer o modo como as pessoas devem viver as suas vidas pessoais, o que não só é inibidor dos direitos individuais, como, mesmo que apenas sugerido, toma um tom paternalista. Certamente, as comunidades sobrevivem em condições de consenso (ou, pelo menos teoricamente, acordo pela maioria) relativamente aos assuntos comuns, no entanto, exigir dos indivíduos determinado caráter para consigo mesmos pode ser duvidoso.
Tal deixa margem para a possibilidade de penalizar as pessoas com maus estilos de vida, se for institucionalizado. Levanta-se toda a problemática dos direitos e deveres das pessoas, bem como a sua interligação. Como exemplo, doar sangue é um dos direitos humanos, algo que consensualmente tem um intuito positivo – beneficiar a saúde de outrem sempre que tal não prejudique a do dador. Sendo este um ato que procura não só o bem comum como eleva o caráter de alguém, ao nível empático, deverá ser compulsório? Alguns dirão que sim, devido a todas as nuances positivas da ação, ainda assim, certamente muitos de nós discordarão, se acreditarem que a melhor alternativa é a do incentivo e nunca a de obrigação, pois impedir um espaço livre de opção torna escassa a nossa liberdade. Do mesmo modo, é possível fazer uma analogia para com a preservação de bem-estar no sujeito em si mesmo. Será o incentivo das práticas benéficas a decisão a tomar, quiçá, impedir outrem de se “autoprejudicar”? Claramente, se procuramos maximizar o bem comum, diremos que sim. É precisamente nesta situação que regressamos à problemática de definir aquilo que é benéfico ou não.
Face a esta questão, alguns dos exemplos ilustrativos são o suicídio assistido e eutanásia, em que existe o auxílio de terceiro(s) e a solicitação provém do doente por sua vontade expressa[3], conforme sofrimento intolerável e mediante o grau de consciência para a tomada de consciência. O objetivo, neste artigo, não é aprofundar estas nuances, apesar de extrema relevância, mas abordar um dos argumentos que se opõe a estes atos – o do potencial humano. Não só devemos procurar um aperfeiçoamento do nosso ser em prol do bem individual e social, visando o dito unus pro omnibus, omnes pro uno[4], como é possível nos apoiarmos neste conjunto de capacidades que temos em nós, que apenas resta desenvolver – o nosso potencial. Este pode ser considerado um argumento teleológico para a sustentação da vida carnal e a procura constante do melhor para nós (e os outros) – dois dos desígnios à nascença dos humanos. No entanto, facilmente se abre um espaço para questionar a última inferência, especificamente, a factualidade do pressuposto de potencial a nós inerente e, segundo, o seu poder – deverá alguém deparado com possibilidade nula de melhorar o seu estado sustentar-se (e crer) no potencial de aprimorar a sua vida? Não estaremos a confundir potencial humano com um potencial que não depende do humano?
No que toca a questões éticas, tanto a escassez de uma visão empática e global como uma fraca compreensão de doenças do foro mental impedem o auxílio em situação de urgência. Aliado a isto, estamos cientes da árdua distinção entre aquilo que é prejudicial ou benéfico para outrem, a dualidade dos direitos humanos e os conflitos morais, nomeadamente, a liberdade para tomar decisões conscientes que possam parecer contrariar o bem-estar. Ora, o movimento de combate ao suicídio equivale ao apoio a pessoas em possível estado de visão segmentada, incentivando precisamente a clareza do olhar e os atos de consciência.
Referências:
[1] Le Suicidé, Édouard Manet [Acedido pela última vez a 05/03/2022]
[2] Kant’s Moral Philosophy [Acedido pela última vez a 13/03/2022]
[3] Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida [Acedido pela última vez a 12/03/2022]
[4] Um por todos, todos por um.