A Guerra relatada por uma professora

Geralmente, limitamo-nos a ser recetores das notícias que vêm de leste, mas, para recebermos essa informação, alguém tem de a contar. Em seguida, apresentamos a entrevista de uma professora vinda da Ucrânia.

Autoria: Beatriz Costa (LEFT) e Maurício Augusto (MEEC)

Quem tem vindo a acompanhar as notícias é incapaz de se manter indiferente à situação que a Ucrânia atravessa, mas, se uns apenas as acompanham no conforto do seu lar, outros são obrigados a vivê-las. As novidades correm o mundo, enquanto os dias de confronto se vão contando e o futuro incerto se vai escrevendo. Contudo, são os pequenos testemunhos, documentos, recordações e histórias com “h” pequeno que constroem a História com “h” grande. Neste contexto mais intimista, o jornal Diferencial esteve à conversa com Sara Duarte, professora há quatro anos na Ucrânia. Embora seja professora de francês, Sara deu-nos uma lição de História, Cultura e talvez até mesmo de Civismo.

Beatriz: Inicialmente, antes de a guerra ter começado, a intervenção russa era um assunto muito abordado entre estudantes e professores?

Professora Sara: Sim, falava-se um bocadinho, mas nunca ninguém imaginou que as coisas se iam tornar assim. Não nos podemos esquecer que a Ucrânia já estava numa situação de conflito com os separatistas do Donbass desde 2014, quando aconteceu o Euromaidan, por isso, essa situação era familiar e todos os dias nos jornais falava-se nisso. No entanto, nenhum de nós, quer seja os alunos do primário, quer seja os alunos do secundário ou até os adultos professores, imaginou esta situação e que a guerra ia acontecer assim. Nós pensávamos que talvez o conflito se intensificasse um bocadinho em Donbass, mas nada mais que isso.

Beatriz: Como é que o corpo docente reagiu à iminência da invasão russa? Era um assunto discutido nas aulas abertamente?

Professora Sara: Eu sou professora primária, por isso, não falávamos muito com os meninos. Contudo, todas as escolas internacionais na Ucrânia seguiram as recomendações das embaixadas e, como a nossa escola tinha maioritariamente alunos americanos e professores americanos, todos nós, quando o presidente Biden recomendou sairmos da Ucrânia, saímos da Ucrânia.

Beatriz: Saiu a pedido do presidente Biden. Não saiu a pedido da embaixada da França ou da embaixada de Portugal?

Professora Sara: A embaixada de França foi a última embaixada a recomendar às pessoas saírem e não participou praticamente nada na evacuação dos cidadãos.

Beatriz: Como tem gerido as suas aulas de francês após ter vindo para Portugal?

Professora Sara: Nós estamos a dar aulas online, mas muitos dos nossos alunos infelizmente, ou felizmente para eles, agora estão a inscrever-se em escolas locais. Por exemplo, tenho alunos que estão na Polónia, na Alemanha, na Hungria, alguns em França e até tenho um aluno que está em Portugal. Os pais estão a inscrever esses meninos em escolas internacionais e muitas dessas escolas estão a dar apoio aos alunos do primário ao secundário e oferecem os cursos de inscrição para os alunos, porque são quase sempre escolas privadas, como a nossa.

Beatriz:  Que dificuldades é que acha que irão enfrentar no regresso à Ucrânia, caso estejam interessados em voltar? 

Professora Sara: Nós temos a nossa vida toda lá. Eu não vivo em Portugal há mais de vinte anos. Temos tudo lá: as nossas lembranças, os desenhos dos miúdos, os amigos, o trabalho, tudo! O futuro está muito incerto. É assustador ver as pessoas de quem gostamos assim e é muito difícil acordar de manhã e ver a cidade onde nós temos a nossa casa a ser bombardeada por um louco. Não sabemos em que estado as coisas vão estar, não sabemos quando é que esta guerra vai acabar e é óbvio que, em Kiev e em todo o país, há cidades que estão já completamente destruídas, que é o caso de Mariupol, por exemplo, que está a ser bombardeada constantemente. Portanto, nós não sabemos o que vamos encontrar quando regressarmos e também não sabemos se vamos poder regressar. Eu vivi oito anos na Rússia, eu conheço muito bem a Rússia também. O meu filho fala russo, ou falava. Eu penso que, se os ucranianos ganharem, o Putin é capaz de dizer “eu vou destruir tudo antes de ir embora”. Por isso, eu não sei o que é que nós vamos encontrar lá. Gostava de ser muito positiva e tento ser positiva, porque é um povo muito corajoso…

Beatriz: O mundo tem acompanhado as imagens que têm vindo da Ucrânia e, de facto, os ucranianos estão a lutar pela sua liberdade e são um povo muito unido, muito forte e muito corajoso.

Professora Sara: Eles são muito corajosos, sim. E estão a defender-se muito bem. Eu tenho amigas minhas professoras que têm apenas vinte e quatro e vinte e cinco anos e que estão a combater com armas na mão todos os dias.

Beatriz: Nem todas as professoras do colégio internacional foram para outros países? Ficaram?

Professora Sara: Não, porque a nossa escola promove muito a diversidade e é uma escola inclusiva e, portanto, nós temos professores americanos na sua maioria, mas também temos professores portugueses, como eu, professores franceses, professores ucranianos também. Alguns professores ucranianos saíram, as mulheres puderam sair, mas algumas tomaram a decisão de ficar lá e defender o seu país e a sua cidade, outras ficaram por motivos pessoais. Não nos podemos esquecer que há pessoas idosas que não se podem deslocar e, então, há certas pessoas que decidiram ficar por lá.

Beatriz: Esteve-me a dizer, há pouco, que também já conhecia a realidade russa, já tinha vivido na Rússia. Conhece ou há ucranianos que estejam a favor da intervenção russa?

Professora Sara: Não, não conheço. A situação da Ucrânia e da Rússia é muito particular. Durante a época soviética, havia muito movimento de população e há muitos ucranianos que têm avós ou descendentes russos e a mesma coisa do lado russo. Eu tenho amigos russos que têm avós na Ucrânia, mas mesmo esses são contra a guerra.

Beatriz: Ou seja, sente que da parte da Rússia também há uma contestação em relação à guerra?  Ou sente que o povo russo apoia a guerra?

Professora Sara: Eu não sei, eu não posso responder a essa pergunta. A realidade é que, quando eles invadiram a Crimeia em 2014, eu vivia na Rússia e, segundo o que eu me lembro, ninguém se revoltou, quer seja na Rússia ou na Europa. Toda a gente aceitou, ninguém disse grande coisa. Foi um bocado… uma situação de aceitação. Falou-se um pouco sobre isso na altura, que não estava correto, mas ninguém se insurgiu contra isso, nem em Portugal, nem em França, nem em Espanha… Não houve assim grande alarido. Em relação ao que se passa agora, falei com um ou dois amigos na Rússia, mas não posso falar em nome da população geral. Eu sei que há uma grande propaganda: o que eles divulgam lá, não é o mesmo que é divulgado na Europa e nos outros países do mundo. Mas também sei que alguns têm medo e eu própria, quando falo com eles, não digo muita coisa, porque eu também não quero pôr a vida das pessoas em risco, se as pessoas não querem. 

Acho que a juventude está informada, porque eles utilizam VPNs para ter acesso à informação do estrangeiro, eles são muito modernos, estão atualizados, mas acho que a outra parte da população que esteja mais afastada das grandes cidades, como Moscovo ou São Petersburgo, poderá estar a favor dessa guerra. Sim, porque durante os anos em que eu vivi na Rússia, nós vimos uma evolução da mentalidade… Um certo saudosismo… o Putin desenvolveu um certo saudosismo pela época gloriosa da União Soviética. Eu, na altura, ensinava no secundário e os meus alunos não tinham muito conhecimento da história da União Soviética pelos lados negativos da repressão, dos Gulags. Eles não tinham muita informação sobre isso… o que eles sabiam era que a Rússia era poderosa, que salvou a Europa do nazismo. E ficavam assim por ali. Sabiam também que era uma grande cultura, em termos de arte, de literatura, de música… eles conheciam isso, mas eles não sabiam até que muitos desses escritores, entre outros, tinham sofrido, como o Soljenítsin que foi depois para o Gulag. Por isso, não me posso pronunciar em nome da população geral.

Beatriz: Enquanto professora, como é que acha que a guerra pode afetar o percurso educativo dos seus alunos? As novas adaptações para os mais pequeninos, acha que vai ser fácil? Vai ser difícil? Qual é a sua opinião?

Professora Sara: Nós temos muitos alunos que viram coisas que eles nunca deveriam ter visto. Bom, agora, como eu já lhe disse, os meus alunos estão a inscrever-se em escolas locais para ter uma experiência de vida um bocadinho mais normal e uma vida mais estável. Mas eu tenho alunos que saíram da Ucrânia de carro… Os meus alunos, quase todos têm… tinham uma vida muito boa na Ucrânia, eram pessoas com um bom nível de vida e deixaram tudo para trás. Alguns passaram 36 horas, ou mais, dentro de um carro para tentar fugir e viram coisas que não deviam ter visto: bombas, agressões, pessoas muito enervadas, pois era difícil abastecer o carro com gasolina e havia algumas limitações. 

Dos meus alunos, quer sejam do primário ou do secundário, muitos deixaram os pais para trás, porque os homens não podem sair da Ucrânia. Por isso, aqueles que estavam fora do país por outras razões não voltaram. Mas os pais que estavam na Ucrânia, esses não puderam sair, portanto, só vieram as mães com os filhos. Então, são crianças que sofrem por não terem o pai e não sabem se amanhã o pai estará vivo ou não, o que é muito instável para elas. Ainda por cima, não nos podemos esquecer de que estamos num contexto de COVID e que muitos alunos já tiveram dois anos de ensino online. Não é fácil. E acumula-se a isso a guerra. Portanto, são crianças que, obviamente, têm dificuldades psicológicas ou vão precisar de muita resiliência para se reconstruir.

Beatriz: E muita coragem de facto. Para terminar, ultimamente temos visto vários símbolos ucranianos como uma forma de protesto contra a guerra e promoção da cultura ucraniana. Na sua opinião, quais são os elementos mais icónicos da Ucrânia? 

Professora Sara: Sim, eles apreciam muito a cultura folclórica, têm muitas camisetas… Eu penso que o nome é Vyshyvanka. Eles têm umas blusas bonitas com umas rendas, uns bordados, com cores muito vivas como azul ou vermelho. Eu, por exemplo, no meu Facebook, pus uma fotografia da forma como nós nos costumávamos vestir nos feriados. Tenho umas flores que se mete em volta da cabeça. Eles valorizam muito a cultura ucraniana e a língua. É verdade que é um povo na sua maioria bilíngue: falam todos russo e ucraniano, porque a união Soviética obrigava-os a falar russo. Mas sim, de facto, acho que essa roupa folclórica, culturalmente, tem muito valor para eles e é o maior símbolo deles. É engraçado porque descobri certas coisas, quando eu estudei literatura na faculdade, quando era miúda, e muitos escritores, que eu pensava que eram russos, eram na verdade ucranianos! Eu acho que eles estão num grande esforço também de reapropriação em termos culturais.

Finalmente, a professora apela à compreensão e reflexão de todos nós, terminando com a seguinte nota.

Professora Sara: Devemos ter muito cuidado também para não fazer sofrer as pessoas. Há pessoas russas que estão em Portugal, em França e noutros países do mundo que não têm culpa nenhuma do que está a acontecer. Há pessoas que estão cá e noutros países e que estão a ser vítimas de xenofobia, por serem russas, e talvez algumas estejam a favor do Putin, mas há muitas que não estão e nós devemos ter muito cuidado em não fazer aos outros o que nós não queremos que nos façam a nós. E antes de falar e dizer coisas agressivas a uma pessoa por ela ser de nacionalidade russa nós também devemos… ver. E perguntarmo-nos qual a posição dessa pessoa. Porque eu sei que têm havido muitos atos de xenofobia e tenho amigos russos que têm descendentes ucranianos que sofrem por isso. E, como tal, temos de pensar um bocadinho.

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