As eleições presidenciais de 2021 aproximam-se em velocidade de cruzeiro e não tarda até que sejamos todos chamados a exercer o nosso direito de voto. Começaram os debates entre candidatos, sente-se a tensão nos comentários políticos dos peritos (e dos taberneiros), e até já se ouvem as tradicionais piadas do Ricardo Araújo Pereira sobre o Chega e o “Tino de Rans”. No entanto, será que a população portuguesa sabe realmente em quem está a votar?
Autoria: Salvador Santos, MEFT (IST)
Com o futuro do mundo nas suas mãos, a segundos de escolher entre começar a 3ª Guerra Mundial ou encontrar uma solução diplomática junto dos seus maiores inimigos, o presidente debate-se interiormente sobre como proteger a sua todo-poderosa nação. Este poderia ser um clássico momento final de um thriller de Hollywood, com o presidente Jamie Foxx a representar todo o poder que o chefe de Estado de um país como os EUA tem ao ser dispor (claramente exagerado, não fosse obviamente um filme americano, mas serve como analogia). Contudo, estará Portugal enquadrado nesse grupo de países, nos quais o presidente é o supremo comandante da nação? Como o leitor já sabe, por muito que relembremos o tão aclamado império português e os nossos antigos reis – alguns com saudade, outros com repúdio –, a resposta é um óbvio e claro não!
Portugal rege-se por um regime semipresidencialista. Explicando num português de café para o comum mortal, o qual percebe tanto disto como do mercado imobiliário lisboeta – não venham, por isso, para aqui reclamar, estudantes de Direito, que isto não é uma das vossas frequências –, este regime respeita quatro características principais [1]:
- Chefia do Estado partilhada entre o Presidente e o Primeiro-Ministro.
- Presidente eleito por sufrágio universal (através do voto de toda a população com idade superior a 18 anos).
- Dupla responsabilidade do Governo, perante o Presidente e perante o Parlamento.
- Poder de dissolução do Parlamento pelo Presidente da República.
Logo aqui se poderá observar que, de facto, temos um sistema político bastante diferente de países como os EUA, o qual se rege por um regime essencialmente presidencialista [2]. Então, se não temos um presidente tão poderoso, em que consiste ser presidente em Portugal? O leitor poderá considerar esta questão insignificante, mas se refletir um pouco perceberá que grande parte da população confunde o nosso conceito de presidente com o de outros países. Pede-lhe o céu e a lua, quando muitas vezes os astros se encontram nas mãos do Governo e da Assembleia da República (AR), tendo o presidente pouca influência sobre eles. Com umas eleições tão importantes à perna, verá o quão essencial é saber a resposta a esta questão.
O que nos diz a Constituição?
A Constituição é o documento legislativo basilar da sociedade portuguesa, sendo de esperar que esteja lá definido o conceito de presidente em Portugal. Encontra-se, pois, na Parte III, Título II, Capítulo I, Artigo 120.º, a seguinte definição:
“O Presidente da República representa a República Portuguesa, garante a independência nacional, a unidade do Estado e o regular funcionamento das instituições democráticas e é, por inerência, Comandante Supremo das Forças Armadas.” [3]
Como já sabíamos, o presidente representa-nos enquanto país, seja nacional ou internacionalmente, sendo responsável por proteger a nossa independência e chefiar as Forças Armadas. Contudo, num país que se encontra em paz há décadas, o primeiro ponto acaba por se destacar em relação aos restantes – imaginem ter o Bruno de Carvalho como presidente, a pouca vergonha à frente de outros países –, mesmo que não contribua diretamente para o bem-estar da população. De facto, a parte de maior interesse para o cidadão comum será aquela associada ao poder de intervir no rumo do país e nas decisões do Estado.
O presidente não é o Governo nem a AR. Não tem competência para legislar, nem para definir o Orçamento de Estado, nem mesmo para tomar decisões como a de aumentar o salário mínimo, por exemplo. Todavia, desengane-se quem pensar que a função do presidente, afinal de contas, está desprovida de importância.
“Defender, cumprir e fazer cumprir a Constituição da República Portuguesa.” [4] Quem já assistiu à tomada de posse de um presidente reconhecerá esta citação, pois é parte do juramento obrigatório para realizar a transição de poder. De forma a cumprir este juramento, o presidente tem ao seu dispor um diverso conjunto de competências, algumas realmente poderosas e, quando usadas, com implicações marcantes no rumo do país. [5]
Uma dessas competências é a de dissolver a AR, demitir o Governo e convocar eleições para que seja formado um novo Parlamento. Havendo naturalmente restrições ao uso desta competência, não deixa de ser uma ferramenta poderosa. Foi usada, por exemplo, em 2004, quando o presidente Jorge Sampaio (PS) decidiu dissolver a AR, durante o governo de Santana Lopes (PSD), por acreditar que este já não teria condições para continuar e que a grande maioria do povo se encontrava descontente. De facto, tal é o poder desta competência que o antigo presidente se arriscou a iniciar uma crise política, por cima de uma já emergente crise económica. Tal não aconteceu, tendo-se verificado a veracidade da justificação que apresentara, quando o partido rival do anterior governo, o PS, ganhou as eleições. Teve foi azar, coitado, pois o primeiro-ministro seguinte foi José Sócrates e todos sabemos a salganhada que se sucedeu. [6]
Assim sendo, é visível a importância do papel do presidente para assegurar a sobrevivência e o bom funcionamento da nossa democracia. Posto isto, é compreensível ouvirmos tantas vezes, durante os debates presidenciais e nos telejornais, que é fundamental que o próximo presidente assegure a união e a estabilidade do Estado, prevenindo uma possivelmente desastrosa crise política nacional com a queda do atual Governo.
Além destas competências todas, existe ainda uma que até ao início desta pandemia nunca foi tão impactante nas nossas vidas. Lembra-se de quando quis dar uma volta pelo Chiado no fim-de-semana antes do natal, mas não pôde devido à restrição de circulação na via pública a partir das 13h? Ou quando se viu obrigado a ficar em casa e permanecer em teletrabalho ou com aulas online durante, pelo menos, um mês, sendo poucas as exceções às restrições? Pois, tudo fruto do estado de emergência, no qual a pandemia nos meteu. Sabe quem é que declara e é um dos principais contribuintes para a definição de estado de emergência? Não é António Costa (primeiro-ministro), nem Graça Freitas (diretora da DGS), mas sim o Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa. [7]
Deste modo, espero que para o leitor – corajoso, decerto, por não ter simplesmente adormecido até este ponto – a ideia de Presidente da República em Portugal esteja agora mais clara e que, quando for chamado a ir às urnas, esteja consciente do enorme ato democrático que está a realizar. Porque não, não é só votar! Poderão parecer lamechices ou um daqueles anúncios americanos a gritar “VOTE!”, mas é inegável que muitos foram aqueles que morreram ou viram as suas vidas destruídas a lutar pela democracia que agora é nossa e que cabe a todos nós defender. Ainda mais, sempre ouvi dizer que quem cala consente, por isso, se alguma vez um Hitler ou um Estaline subirem ao poder – incluo os dois para não estar aqui a ferir suscetibilidades, já me basta ter os alunos de Direito à perna, não preciso de extremistas atrás de mim também – e o leitor não tiver votado, depois já não vale reclamar na taberna ao Zé Povinho. Não deixemos, portanto, que nos tirem o que é nosso sem dar luta e, no dia 24 de janeiro, votemos!
Referências
[1] Regime político em Portugal e definição de semipresidencialismo – Semipresidencialismo de assembleia | Opinião | PÚBLICO (publico.pt)
[2] Regime político dos EUA – Política dos Estados Unidos – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)
Constituição da República Portuguesa (2005) – Constituição da República Portuguesa (parlamento.pt):
[3] Definição de Presidente da República (Parte III, Título II, Capítulo I, Artigo 120.º)
[4] Juramento e tomada de posse do Presidente da República (Parte III, Título II, Capítulo I, Artigo 127.º)
[5] Competências do Presidente da República (Parte III, Título II, Capítulo II)
[7] Competência para declarar Estado de emergência (Parte III, Título II, Capítulo II, Artigos 133.º alínea d) e 138.º)
[6] Dissolução da AR por Jorge Sampaio em 2004 – Jorge Sampaio decide dissolver Assembleia da República – DN