Acredito que todos os leitores tenham acabado de completar o verso que Camões escreveu no século XVI: “Amor é um fogo que arde sem se ver”. Para muitos, romance é a busca da alma gémea. Nem nos apercebemos, os que sentem segundo este conceito e os que não, que somente este raciocínio é um luxo do tempo em que vivemos. Não é mistério nenhum que o nosso estilo de vida tem vindo a tornar-se cada vez mais confortável, mas o que nos pode escapar é que a própria evolução tecnológica, científica e social, molda não só a nossa cultura como a forma como encaramos os nossos próprios sentimentos. Mesmo algo tão visceral, como é o amor.
Autoria: Ana Glória Cruz, MEBiom (IST)
Na geração dos nossos avós era muito habitual iniciar a vida a dois muito jovem, mal a mulher aflorasse a maioridade, por via de um casamento, em regra, um dos 7 sacramentos da Igreja Católica. A promessa, perante Deus, é feita “na saúde e na doença, todos os dias da nossa vida”, um juramento inquebrável, imutável, eterno. Interessante é constatar que marido e mulher foram muitas vezes vizinhos antes de serem marido e mulher. A proximidade geográfica facilitava a intimidade, o cortejo, a aprovação parental, e era, aliás, a maior catalisadora do romance.
Porém, dados do PORDATA revelam que apenas nas últimas 5 décadas se assistiu a uma subida de aproximadamente 7 anos, de uma média ao primeiro casamento de 24.4 anos para as mulheres em 1968 para 32.1 em 2018, e de 26.8 para 33.6 para os homens, em Portugal. No entanto, não é esta a única transformação na paisagem romântica ao longo das gerações, existe uma ainda mais fundamental, pois levanta-se a questão da vontade de se casar ou não. Podemos ir mais longe (e muitos foram), questionando a própria monogamia como norma. Atualmente, cada um define as suas necessidades românticas da forma que mais lhe convém e nascem termos como relações poliamorosas, relações abertas,… E perdemos os tabus!
Tal deve-se, na minha opinião, não só ao individualismo, à flexibilidade e à liberdade que atribuímos à nossa cultura ocidental, mas sobretudo ao receio em assumir um compromisso duradouro, face a um mundo em constante mutação. Atualmente, damos espaço a cada indivíduo, em particular também à mulher, para refletir acerca das suas ambições, da sua evolução pessoal e do seu bem-estar, tanto romântico como sexual.
Sublinho a inclusão da mulher nesta linha de pensamento, uma vez que a sua emancipação foi obviamente um importante fator ao contribuir para uma revolução no romance. A mulher vota, a mulher trabalha, a mulher constrói uma carreira e, finalmente, a mulher decide sozinha com quem casar (e se quer casar) não necessitando de aprovação para tal. Contudo, a beleza disto é que a mulher (e o homem!) é livre de escolher o que mais preferir, de encontro ou em rutura com o que é tradicional.
Porém, escreveu também Camões que o amor “É querer estar preso por vontade” e muitos podem não querer abdicar desta liberdade. Assim sendo, há um conflito de duas personalidades que crescem ao longo do tempo, que são atacadas diariamente com novas experiências num mundo em globalização e que detêm o luxo de poder desejar alcançar algo diferente, algo melhor, algo novo para si próprio. De facto, novamente segundo dados do PORDATA, mais de metade dos casamentos acaba, não na morte, mas em divórcio, em Portugal. A meu ver, o que está demonstrado é que, para a maioria das pessoas, somente a busca pela felicidade é que é eterna e, dependendo dos parâmetros de cada um, poderá ser até inalcançável, o que traz muita da ansiedade típica dos dias que correm.
Este é o maior luxo da atualidade: mesmo estando bem, desejamos sempre estar melhor, o que se aplica igualmente ao amor. Neste aspeto, falamos de uma sede insaciável, mas escreveu também Camões que o amor “É nunca contentar-se de contente”…
Para além disso, os ideais cristãos deixaram de dominar os rituais amorosos, merecendo especial destaque, desde o início do século XXI, os casamentos entre pessoas do mesmo sexo terem vindo a tornar-se legais em vários países. Como sociedade, apesar do longo caminho ainda a percorrer, começámos a ter um ponto de vista mais inclusivo, assumindo o género como uma construção social e abraçando a existência de um espetro infinito descritivo da orientação sexual (incluindo a negação da sexualidade). Nenhum dos pontos anteriores poderia sequer ser imaginado, pelo menos não à escala global, pelos nossos avós, que até o podem ter (ou não) sonhado.
E qual o catalisador atual do romance? Os culpados de sempre, as tecnologias, a internet e as redes sociais que trazem os seus benefícios e complicações. Por um lado, são, mais uma vez, um luxo, pois permitem o contacto entre pessoas de uma ponta à outra do globo. Pela primeira vez, vieram a possibilitar que duas pessoas que nunca se viram, e que não se reconheceriam na rua, falem diariamente e, quiçá, ininterruptamente. Portanto, o primeiro passo para qualquer relação é o mútuo conhecimento e não o reconhecimento! Sendo assim, as tecnologias facilitam a procura pela alma gémea. De repente, o indivíduo não tem de se contentar apenas com os candidatos que o rodeiam, pode procurar “o tal” à escala mundial, aumentando assim as probabilidades de o encontrar, se este existir. Forma-se assim um processo de “tentativa e erro” até ocorrer uma combinação favorável às necessidades individuais de cada um.
Em adição, estas tecnologias possibilitam também relações à distância e a otimização da gestão da saudade nessas situações, o que não deve ser dado por garantido. As videochamadas são uma dádiva capaz de apaziguar os espíritos dos que se vêem longe.
No entanto, como explorado anteriormente, as necessidades individuais de cada um são múltiplas e a subida pela escada da felicidade é infinita, o que dificulta muito as coisas. Como é típico da sociedade em que vivemos, mesmo a busca do amor pode trazer-nos mais ansiedade agora do que nos tempos dos nossos avós, em que o processo era muito mais simples. Na realidade, a quantidade de candidatos pode ser avassaladora e a pressão provocada pela mera possibilidade de encontrar o mais adequado entre eles insuportável, pois, de novo, dificilmente nos contentamos. A propósito, o psicólogo Barry Schwartz tem vindo a defender a tese do “Paradoxo da Escolha”, a qual consiste na ideia de que, apesar de a escolha entre muitas opções estar associada a sentimentos de liberdade e autonomia, também envolve desconforto, ansiedade e insatisfação. Esta componente negativa pode parecer irracional à primeira vista, mas é comprovada de forma empírica em vários domínios da vida, sejam estes a compra de bens de consumo ou o leque de relações amorosas. Sendo assim, o facto de o sentido de responsabilidade em relação à qualidade da seleção se intensificar perante um excesso de alternativas pode assombrar-nos posteriormente com arrependimento e culpa, pois, no fundo, não nos sentimos competentes em tomar a decisão.
Para além disso, tal como noutros campos da vida atual, queremos assimilar toda esta informação de forma a tomar uma decisão o mais imediatamente possível. Não temos tempo a perder. Não temos tempo a dedicar. Não cedemos tempo à causa: é um tudo ou nada, incompatível com a diligente busca pelo amor.
Esta passagem das relações para o mundo online deu origem a alguns fenómenos, inerentes às propriedades desse sítio. É fácil esquecermo-nos que do outro lado do chat está uma pessoa, complexa como nós, procurando para todos os efeitos algo semelhante ao que procuramos e, assim, o respeito não é, muitas vezes, garantido. É igualmente fácil entrarmos numa zona confortável, desleixando a linguagem, desvalorizando o impacto das nossas palavras e negligenciando a qualidade das conversas. Não quero com isto dizer que a comunicação online não sirva propósitos inovadores, como é o sexting. Contudo, pode prejudicar mais as interações do que beneficiá-las, se for descuidada, e, especialmente, se for a fonte predominante dessas interações.
A informação disponível online é também uma faca de dois gumes. Por um lado, protege aqueles que decidem dar uma oportunidade a uma relação emergente da internet: uma rápida busca permite validar muita informação acerca do candidato em questão e possivelmente excluir a hipótese de este ser um assassino em série. No entanto, esta também é uma prática moralmente questionável, julgar alguém através do perfil que constrói nas redes sociais.
Aziz Ansari, no seu livro “Modern Romance”, declara que, de acordo com um estudo realizado pelo psicólogo John Cacioppo da Universidade de Chicago, entre 2005 e 2012, um terço dos casamentos nos EUA foram de casais que se conheceram através da internet. Conclui-se que, de uma maneira ou de outra, é impossível ignorar o impacto que os encontros online têm no romance atual.
Não querendo deixar de referir que o amor não se limita, claro, simplesmente ao nutrido por parceiros românticos, sendo muito mais que isso e assumindo muitas formas igualmente importantes, coloca-se, à parte isso, uma questão: para quê o Amor? O Amor é fundamental porque, de uma forma ou de outra, sentindo-se da maneira que se sentir e, mesmo não acreditando em almas gémeas, o isolamento é contra a natureza humana. Somos, para todos os efeitos, um animal social e, como tal, criamos afetos.
Finalmente, o que é o Amor? O Amor é o que nos une a todos, em todos os tipos de relações, mesmo que familiares ou amigáveis em vez de românticas e estas vão ser influenciadas pelo desenrolar da História, aplicando-se muitos dos pontos anteriores.
Camões regressa com o verso “Se tão contrário a si é o mesmo Amor”! Hoje, o amor tem a liberdade para ser mais pessoal do que em gerações passadas, porque, apesar de ser um sentimento, é também bastante cultural e sofrerá mudanças, podendo ser visto de forma por nós inimaginável em gerações futuras.
Referências:
- Idade média ao primeiro casamento, por sexo (PORDATA);
- Número de divórcios por 100 casamentos (PORDATA);
- FRIAÇAS, Andreia (2020) “Compromisso sem casamento e intimidade sem sexo“, Público, 5 de março;
- ANSARI, Aziz (2016), Modern Romance, Penguin Books;
- JEFFRIES, Stuart (2015) “Why too much choice is stressing us out“, The Guardian, 21 de outubro.