O que fazer quando não levas o telemóvel para a retrete?

Realmente, a humilde sensação de gratidão pode nos surpreender no mais inesperado momento. Foi quando eu estava sentada na sanita que me apercebi da incrível dádiva que tenho possuído toda a minha vida, e de que foi por ela nunca me ter faltado que não a considerei mais vezes. A água potável. Estavam à espera que eu dissesse outra coisa, não é?

Autoria: Alina Chervinska, MEAmbi (IST)


Parece que é quando nos apercebemos de que um bem tão simples e essencial como a água potável pode desaparecer da nossa casa, e do quão drasticamente diferente seriam os nosso dias com essa mudança, que aprendemos a sentir gratidão pelo mesmo. Quem diz água, pode dizer ar fresco a encher os pulmões, ou o toque gentil do sol na pele, ou o toque de outra pessoa. Ou um peluche. Provavelmente te consegues recordar que, quando eras pequeno e a tua mãe queria se desfazer de um brinquedo que já há muito não era objeto de brincadeira, te agarravas a ele com uma afeição renovada. O medo de não voltares a ver a boneca com um corte de cabelo duvidoso (feito por ti) ou o peluche do Scooby-Doo fez-te parar de o negligenciar. Mas, diga-se de passagem, que era só por um dia. Tempos depois, em resposta a uma interrogação de olhos arregalados, a mãe conta-te como o Scooby-Doo foi resolver um mistério muito longe e que não sabe quando é que ele há de voltar.

Neste momento, nas cidades, temos medo de perder a cadência habitual dos nossos dias face a uma pandemia. Bom, uma forma de perder esse medo é tomar consciência de que isso já aconteceu. E, na verdade, esta mudança temporária de ritmo fez muito mais do que nos relembrar do quanto gostamos do hábito e da estabilidade; fez-nos também ver o quão flexíveis, afinal, são os carris das nossas vidas: o estudo e o trabalho tinham que continuar – então arranjou-se forma de manter a funcionalidade de uma maneira alternativa, na maioria dos casos. Mais importante ainda: não só os das nossas vidas, mas também os carris do funcionamento governamental são mais flexíveis do que nos foi levado a acreditar até agora. As medidas necessárias podem ser e são tomadas, quando o perigo aperta. 

Os problemas ambientais, por exemplo, trazem consequências igualmente perigosas, mesmo que menos imediatas do que, como neste caso, a sobrelotação de hospitais em questão de semanas. Não nos devemos deixar iludir com o argumento da “inviabilidade económica” em resposta às propostas feitas ao governo de planos de ação ambiental e climática, pois nem sempre isso é verdade.
A cadência habitual foi-nos retirada, mas uma realização importante tomou o seu lugar, e esta nova visão de resiliência económica e social foi-nos trazida pela pandemia. 

Quem já alguma vez foi pesquisar estratégias para retomar a motivação para estudar, trabalhar ou mesmo para sair da cama e viver, se calhar já sabe que um exercício recomendado é, no final de cada dia, pensar em três coisas pelas quais se está grato. Quando feito com persistência, começamos a notar que a cada semana que passa, damos graças por coisas cada vez mais pequenas. Talvez seja mesmo esse o objetivo, uma vez que este facto pode não ser óbvio: todos nós temos a capacidade de sentir gratidão por coisas básicas em situações de crise ou de precariedade, mas nem toda a gente mantém esta capacidade quando está tudo em ordem. Então, se calhar, é este mesmo o desafio do tempo moderno para o bem-estar: ter consciência da espetacularidade de uma certa coisa, mesmo tendo acesso diário a ela. Como o chá preto com limão e mel num dia frio, ou a roupa confortável ou a energia inerente a um corpo ainda jovem.

Aliás, é por isso que os nossos pais e avós são pessoas mais gratas no geral: não apenas porque contam com mais anos de experiência, mas também porque na sua altura passaram por épocas em que sabiam que a qualidade de vida que conheciam (boa ou parca) lhes podia ser retirada de um dia para o outro: pela guerra, pelo regime governamental repressivo, por uma praga nos campos agrícolas ou por uma depressão económica. Por isso, havia uma melhor perceção da preciosidade dos seus bens e da fugacidade dos mesmos. Para a nossa geração, os fatores de stress que têm esse poder são as alterações climáticas e uma epidemia. Então, vamos aprender com os nossos velhos.

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