Ao longo da história, quem tinha mais animais, mais terras para cultivar era quem, em princípio, tinha mais poder. Agora, ao nível dos países, os que exploram com maior eficiência os seus recursos naturais – como o carvão, o petróleo e o gás – são quem tem um maior crescimento económico, o que lhes confere maior peso ao nível global. Por isso, o comércio da energia é atualmente aquele que move mais interesses.
Dada a importância deste tema – A Energia e a Economia – entrevistámos a Prof.ª Tânia Sousa, atualmente investigadora no MARETEC e professora no IST, da Área Científica do Ambiente e Energia, Departamento de Engenharia Mecânica. O diálogo, pontuado por gargalhadas bem-humoradas e ocorrido num ambiente acolhedor, passou por temas como a exploração de recursos, as repercussões sociais da evolução energética e a interceção da termodinâmica com a economia.
Autoria: Alina Chervinska & Diana Oliveira
1. Perceber as transições do uso de energia
Professora, como pode comentar a interface destes dois temas – a Energia e a Economia? O mix energético tem um papel importante no impacto da primeira na segunda?
“A questão da relação entre a Energia e a Economia: de facto, a energia tem sido fulcral, desde sempre, para a economia. Eu acho que vocês vêem isso quando olham para a economia, não à escala do ano ou das décadas, mas à escala das centenas de anos. (…) Os saltos na evolução das quantidades de energia disponíveis das sociedades pré-históricas, para as sociedades agrícolas e para as cidades [após] a revolução industrial foram necessários ao desenvolvimento económico que lhes está associado.”
“Quanto ao mix energético, até ao fim do século XIX, o que vocês usavam, para além da energia solar e das formas que tipicamente não se quantificam porque não são comerciais (moinhos de água ou os moinhos de vento), era a biomassa. Portanto, [o ritmo de produção] estava bastante limitado: dependia da taxa de renovação das florestas e da disponibilidade de vento e água. A partir do momento em que o homem começou a perceber como podia usar o carvão para produzir trabalho mecânico (embora o carvão fosse usado para outros fins nalgumas sociedades há mais tempo – na China e no Reino Unido, por exemplo) é que começou a aumentar o uso da Energia de forma significativa. Entretanto, a partir de certa altura, começa-se a usar a eletricidade e todas as fontes de energia que se podem usar para a produzir, o que permitiu ter um impacto ainda maior.”
Então, há uma evolução do uso quantitativo e qualitativo da Energia, certo? Primeiro, a biomassa, e depois, à medida que fomos descobrindo outras fontes, fomos aumentando o consumo. Mais fontes permitem maior desenvolvimento económico e mais dinheiro, o que por sua vez dá-nos a possibilidade de ter mais tecnologia e explorar mais os recursos, ou seja o capital e as fontes de energia alimentam-se mutuamente.
“Vocês podem olhar para as fontes de energia primária – a quantidade de petróleo, a quantidade de carvão – mas, essa energia não é diretamente usada para a atividade económica: primeiro, tem um processo de transformação, que a transforma em formas que os consumidores e as indústrias podem usar (o gasóleo, a gasolina, a eletricidade) para depois ser transformada, numa máquina (seja um motor elétrico ou um motor de combustão interna ou um radiador), em energia útil (trabalho mecânico ou calor). Esta última é a que vai produzir valor económico. Por exemplo, num dos artigos de 2006(1), [onde se considerou] a energia útil de Portugal em 150 anos, verificou-se que o rácio exergia útil(2)/PIB é constante ao longo de 150 anos. E isso é impressionante porque é muito difícil explicar como é que numa Economia de há 150 anos era preciso a mesma quantidade de exergia útil para produzir uma unidade de riqueza que hoje em dia, ou seja, 1 Megajoule/€ (a preços de 2010). Ao longo do tempo, este MegaJoule tem ficado cada vez mais barato (devido ao aumento de eficiência), o que gerou um aumento do consumo de exergia útil e, consequentemente, crescimento económico.“
Como assim? Como é que isso pode ser explicado?
“Isto é ao nível da exergia útil. Tipicamente não se tem essa perceção porque se avalia a intensidade energética ao nível das energias final e primária, onde as sociedades parecem cada vez mais inteligentes na maneira de usar a energia. E de facto ao nível da primária e da final, isso acontece. Mas ao nível da exergia útil – (do trabalho mecânico, ou do calor) – este rácio não mudou, embora a sociedade seja completamente diferente.
“Como a eficiência é cada vez maior, precisamos de cada vez menos primária e de final, por unidade de riqueza, [mas] em termos globais precisamos de cada vez mais. Agora, ao nível da exergia útil, o que temos visto é que, pelo menos para Portugal (durante 150 anos) e para outros países Europeus (durante 50 anos), ela é constante [por unidade de riqueza]. Aí vê-se que é quase impossível, no futuro, a gente conseguir gerar riqueza com menos energia ao nível da útil: os ganhos obtidos estão relacionados com o aumento da eficiência e não propriamente com uma desmaterialização da Economia, pois esta não está mais desmaterializada no sentido de conseguir produzir a mesma riqueza usando menos materiais e menos Energia. (…) No fundo, os ganhos são limitados pela 1ª e pela 2ª Leis da Termodinâmica.”
Geralmente quando se discutem fontes de energia as que vêm logo à tona são o carvão, o petróleo, o gás, as bioenergias e as renováveis. Faz-se uma divisão entre renováveis e não-renováveis, fósseis e não-fósseis, minerais e não-minerais. Todas têm prós e contras.
Qual será a melhor forma de ter uma discussão construtiva sobre os tipos de energia e a sua comparação?
“A separação entre renováveis e não-renováveis é importante, porque vocês estão a pensar em termos de impacto ambiental, mas esta não é a única questão relevante. Outra é a intermitência: a eletricidade está a ser produzida à medida que o recurso renovável está disponível, enquanto que, no gás natural e no carvão, a eletricidade é produzida quando a gente precisa dela. Para conseguirmos tratar as renováveis da mesma maneira que as não-renováveis, o problema do armazenamento tem que ser resolvido.
Outra questão importante é a densidade de potência (W/m2). Se tivermos uma central termoelétrica a gás natural [ou carvão], numa área pequena dá para produzir uma grande quantidade de eletricidade. Agora, se [tivermos] painéis solares fotovoltaicos é preciso uma área muito maior para produzir a mesma eletricidade. Aliás, para a biomassa, a área até é mais relevante porque estamos a falar de área que também seria adequada para a agricultura: há competição entre os usos energéticos e os usos alimentares. Além disso, o ajuste entre as densidades da oferta e da procura também é importante. Por exemplo, o consumo nas cidades é muito concentrado. Portanto, para alimentar uma cidade em termos energéticos, se for com gás natural ou com carvão precisamos de uma área pequena; com painéis fotovoltaicos precisamos de áreas muito maiores. Existem algumas soluções, [como] painéis fotovoltaicos nos telhados ou vidros que produzem eletricidade, que permitirão responder a este desajuste.
Outra questão relevante é a densidade energética, que é energia por peso [do combustível], ou seja, kWh/kg. Por exemplo, para produzir um kWh com biomassa é preciso cerca de 0.2 kg enquanto que para produzir o mesmo kWh com carvão só é preciso cerca de 0.125 kg, porque o carvão é mais denso em termos energéticos. Isto é uma questão relevante se [tivermos] que transportar [o combustível, pois torna] mais fácil o uso de combustíveis que são mais densos em termos energéticos.
Portanto, eu [diria], que quando se comparam energias renováveis e não renováveis, uma das características importantes é a intermitência, que será resolvida com o desenvolvimento de tecnologias de armazenamento; as outras características importantes são a densidade energética (kWh/kg) e a potência por unidade de área (kW/m2). E aí as renováveis são tipicamente menos interessantes embora a evolução tecnológica vá contribuir para melhorar a potência por unidade de área.”
Dito isto, podemos afirmar que na maior parte dos países tem sido dada preferência a uma alta densidade energética e alta densidade de potência? Que acaba por ser o caminho mais fácil e rentável.
“Sim. Inicialmente, quando se começou a usar carvão, as eficiências até eram muito baixas. Por exemplo, durante grande parte do séc. XIX, mesmo no Reino Unido e nos Estados Unidos, a potência instalada em moinhos de vento ou em rodas de água era maior do que a potência em máquinas movidas a carvão.
Qual é que era a grande vantagem do carvão? Era a questão da intermitência: a água e o vento estavam disponíveis quando a água corria e quando havia vento e o carvão não – podia ser usado em qualquer sítio e quando fosse necessário. Esta característica e a disponibilidade de combustíveis fósseis concentrados e em grandes quantidades motivou o seu uso generalizado. Até há informação que nos séculos I ou II, na China, já se usava carvão, mas usava-se como a biomassa – queimava-se e produzia-se calor. Depois, o grande passo foi: não só saber usar estas formas de energia concentradas [queimando, para produzir calor], mas produzir trabalho mecânico com elas. Esta era uma forma de energia a que se tinha acesso há já muito tempo com o vento e com a água. Quando se conseguiu perceber, tecnologicamente, como é que se produz trabalho mecânico, por exemplo, com carvão, passámos a ter acesso a uma grande quantidade de energia que podia ser usada quando era necessário.”
2. Perspetivas sustentáveis
Como mais energia significa maior capacidade de produção e maior produção de bens acarreta mais emissões – nomeadamente de CO2 -, uma perspetiva mais sustentável aponta para:
1) redução das emissões e
2) captura de CO2 atmosférico.
A fotossíntese e a produção de bioenergia são vistas como as melhores ferramentas que temos para fechar o ciclo de carbono.
De que forma?
“Na questão das emissões de CO2 há uma mensagem importante. De facto, a um maior uso de energia estão associadas maiores emissões de CO2. E a primeira resposta que tipicamente as pessoas dão é “Então vamos aumentar a eficiência”. O que é mais ou menos óbvio, porque se a eficiência for maior, podemos ter o mesmo output usando menos energia e, portanto, menos emissões de CO2. Só que existe um problema associado, porque quando se aumenta a eficiência, nomeadamente a eficiência de transformação final-útil, a energia útil fica mais barata mesmo que o preço da final não mude. É como em casa com as lâmpadas – quando se muda as lâmpadas de incandescentes para LED, para produzir a mesma luminosidade, gasta-se menos. E tipicamente, como as pessoas gastam menos elas deixam as lâmpadas mais tempo acesas. O mesmo fenómeno ocorre na economia: aumentamos a eficiência e a primeira consequência disso é o aumento do crescimento económico. É o que se chama o rebound effect e é o que vocês vêem quando olham à escala dos 200 ou dos 100 ou dos 50 anos – as eficiências, o PIB e o consumo da energia a aumentarem. Por isso, para diminuir as emissões de CO2, a resposta só pode ser uma: simultaneamente com o aumento da eficiência energética tem que haver um aumento do uso de renováveis.
Agora, para lidar com as emissões de CO2 que ainda temos, fechar o ciclo é importante. Isso consegue-se para tudo o que é biomassa – é por isso que esta se considera neutra em termos de CO2: há emissão de CO2 quando a biomassa é queimada, mas este CO2 terá sido retirado da atmosfera durante o crescimento. Este argumento não é completamente honesto: o ciclo não fica totalmente fechado porque há outras actividades ou produtos associados que são responsáveis pela emissão de CO2 como, por exemplo, os fertilizantes. Assim, olhando para o ciclo de vida todo, ele tem algumas emissões de CO2 [na fase de fabrico dos fertilizantes]. Tal como os painéis solares fotovoltaicos: não emitem CO2 quando produzem eletricidade, mas o fabrico dos painéis está associado a processos que consumiram energia. (…) Há outras tecnologias de captura de CO2, mas em termos energéticos ainda são muito intensivas e muito caras. “
Um tópico tangente à exploração energética é, por exemplo, a depleção de recursos – quer combustíveis, quer não combustíveis. Como ter a noção se a intensidade de exploração de um dado recurso é alta demais ou está a ser feita a um bom ritmo?
“Isso é uma pergunta difícil, eu vou tentar referir os pontos que devemos ter em atenção quando olhamos para a depleção de um recurso. Primeiro, devemos pensar se o recurso tem valor em si mesmo ou se o que nos interessa é a função deste recurso: por exemplo, (…) será que nós, de facto, como sociedade, precisamos do carvão ou precisamos somente daquilo que obtemos com ele? O carvão é importante como fonte energética e, por isso, não queremos propriamente saber do carvão se tivermos outras formas de gerar o mesmo tipo de energia. Portanto, olhando para a quantidade de carvão o que temos que ter em conta é: será que temos suficiente para se conseguir fazer a transição de modo a que, quando ele acabar, isso não seja um problema? Claro que com o carvão o que é relevante são os impactes ambientais: podemos ter que parar o uso do carvão antes de ele chegar ao fim simplesmente porque a Terra não suporta os impactos associados.
Quando estamos a falar de um recurso mineral, como as terras raras, a questão da substituibilidade continua a ser importante. Se não for (de acordo com a tecnologia actual) substituível, o nível de depleção é importante. Um proxy do nível de depleção é a intensidade energética da exploração. Na fase inicial de exploração o recurso está mais concentrado e precisamos de menos energia para o extrair e para o usar. À medida que ele vai sendo explorado e a quantidade vai diminuindo, precisamos cada vez de mais energia para o extrair, [ou seja] a intensidade energética da exploração de um dado recurso dá-nos uma ideia de se ainda estamos na fase em que ele está muito disponível ou não. (…)
Nós, como sociedade, temos que ter em conta a função dos materiais e dos energy carriers e ter em conta a substituibilidade que existe entre eles para pensar se eles são ou não importantes em si mesmos. Outro exemplo, o petróleo: ele é mais importante do que o carvão [mas], por exemplo, se o petróleo acabasse amanhã, em termos de produção de eletricidade isso seria irrelevante, mas em termos de mobilidade teria impactos muito relevantes. O importante é ter a certeza que, como sociedade, conseguimos fazer esta transição para não precisarmos do petróleo quando ele começar a ficar tão escasso que fica caríssimo ou quando os impactos ambientais associados ao seu uso não forem aceitáveis.”
3. Energia como condicionante social – realidade atual (3)
Estima-se que, em 1990, 1.5 mil milhões de pessoas viviam sem acesso à eletricidade em contraste com os 940 milhões registados em 2016. Cerca de 285 mil pessoas por dia ganharam acesso à eletricidade nesse intervalo. No entanto, analisando os contextos por regiões: em 1990, 45% das pessoas sem acesso à eletricidade encontravam-se no sul asiático, mas, em 2016, 63% registaram-se na África subsariana, um incremento de mais de 160 milhões de pessoas para esta região e neste intervalo de tempo.
Esta é a única região do mundo a sofrer um aumento constante e progressivo nos últimos 26 anos. No seu ponto de vista, isto reflete o quê?
“Pobreza, guerras, … É só reflexo disso. Isso tem um impacto imenso na vida das pessoas. Há duas consequências sociais importantes da eletricidade. Uma é a libertação da mulher, porque a partir do momento em que as pessoas passaram a ter eletricidade dentro de casa, a mulher passou a ter tempo para fazer outras coisas além do trabalho doméstico. Mas não é só a eletricidade, o mesmo acontece com a água: as mulheres nesses países passam várias horas por dia a ir buscar água. A outra consequência é que a eletricidade traz luz e a partir do momento em que as pessoas têm acesso à iluminação [em casa], têm mais horas do dia em que podem fazer outro tipo de coisas, nomeadamente estudar.”
Regiões como a Índia registam quase 78% de acesso à eletricidade em meios rurais e, na sua maioria, países da UE registam 100%, mas em Moçambique o fator é menor que 5%. Qual é o desafio nestas situações e como pode ser contornado?
“A maior parte dos países africanos, de facto, está numa situação completamente diferente de outros países. Por exemplo, nós temos uma rede elétrica espalhada por Portugal – em África não – e o estabelecimento da rede é muito caro. Acho que a única maneira de responder ao desafio da eletrificação nestes casos é [aproveitando] a oportunidade das tecnologias renováveis estarem muito mais baratas. Em vez de construírem centrais termoelétricas a gás e/ou carvão natural e a rede necessária para chegar a vários pontos do país, estes países podem promover painéis fotovoltaicos (FV) individuais ou uma central de painéis FV para cada vila, ou para cada grupo de vilas, e depois terem redes locais. O estádio da tecnologia atual (os painéis FV são muito mais baratos do que eram há 5 ou 10 anos) é uma oportunidade para resolver esses problemas de uma maneira que é muito mais barata do que seria há 20 ou há 30 anos e que é essencial, porque dar acesso à eletricidade (e também a água potável canalizada) é uma condição necessária ao desenvolvimento desses países.”
Acha que deveria haver maior estímulo exterior, por parte de outras nações, a esse nível? Como é que isso se deveria fazer acontecer?
“Sim, nomeadamente no fornecimento do conhecimento técnico, isso é essencial. Os países mais desenvolvidos, que tenham o conhecimento técnico, não só da tecnologia de produção, mas também da tecnologia de distribuição, [têm de o fornecer] a esses países para eles se poderem desenvolver mais rapidamente (e com impactos ambientais menores) do que nós no passado. Eu acho que este é o contributo principal.”
A nível de consumo energético as desigualdades persistem, verificando-se que um cidadão comum americano consome mais de 79.000 kWh/ano, 10x mais energia que o comum indiano, 4-5x mais que o comum brasileiro e, apesar da China ser o maior produtor energético do mundo, 3x mais que o comum chinês. Decerto, olhando para nações de menor rendimento o fosso aumentará ainda mais. A eletricidade pode ser vista como um factor decisivo na exclusão social?
“Sim, definitivamente, embora, apesar de tudo, o consumo energético não seja um bem do qual se possa afirmar que quanto mais, melhor. Quando comparamos os EUA com a Europa, para níveis de desenvolvimento mais ou menos equivalentes, os EUA consomem muito mais energia do que nós. Portanto, é possível ter um certo nível de desenvolvimento com um consumo de energia menos elevado (e, portanto, impactos ambientais menores) do que o dos EUA, que são um mau exemplo, no sentido em que o consumo é excessivo. Mas de facto a relação entre produção de riqueza e consumo de exergia existe, está lá e para atingir mínimos de desenvolvimento é preciso uma certa quantidade de energia que tem de ser fornecida. Hoje em dia, em termos de energia final, é [preciso] menos do que era há 20 ou há 30 anos (a tecnologia está mais evoluída e a eficiência é maior), mas mesmo assim esses mínimos existem.”
Mais uma vez, por ano, a Islândia regista 210.000 kWh de consumo per capita e 0% de pobreza extrema, a Índia 10.000 vs. 21% e Moçambique 6.000 vs. 62%. Quão relacionados estão o consumo energético e o desenvolvimento económico? E como?
“Muito. Eu acho que a relação entre crescimento económico e uso de energia é uma relação estreita, que nós parcialmente conseguimos dissociar aumentando a eficiência. A questão da Islândia: nos países frios, grande parte do uso de energia está associada à necessidade de aquecimento. Os países mais quentes não têm essas necessidades, mas podem ter necessidades de arrefecimento, como, por exemplo, a Índia.
Também é importante, quando se compara o consumo de energia, separar o consumo de energia do consumo de electricidade porque há países em que a electricidade é muito barata. No caso da Islândia eles têm muita eletricidade de origem geotérmica, na Suécia e noutros países há muita eletricidade de origem hídrica, fazendo com que o uso da eletricidade tenha sido incentivado [ao contrário de] outros países que, por exemplo, para aquecimento usaram gás natural porque a eletricidade era cara de produzir.”
Em 1952, os efeitos da poluição do ar provindos da indústria londrina, na altura muito dependente de fontes fósseis, nomeadamente do carvão, foram sentidos pelo que é agora chamado o Grande Nevoeiro de Londres (Great Smog of London). Este evento, acredita-se ter causado a morte direta de cerca de 12.000 pessoas e deixado outras 100.000 doentes. Desde o início que os efeitos malignos dos combustíveis fósseis nos são de alguma forma familiares. No entanto, passados 67 anos ainda estamos num processo de “descarbonização” e só em 2015 é que 195 nações se uniram para alcançar algo como o Acordo de Paris. Porquê a demora em tomar ação?
“Isto é uma pergunta difícil. Eu acho que na questão dos combustíveis fósseis há duas vertentes: a questão da poluição e, [especificamente], a da poluição atmosférica nas cidades, que ainda hoje em dia mata muita gente, e os gases com efeito de estufa. Na Europa, o número de mortes prematuras devido à poluição atmosférica no ano passado foi cerca de 500.000. Acho que toda a gente percebe a importância de substituir esta mobilidade baseada no motor de combustão interna por uma mobilidade que não tenha estes impactos ambientais associados. A poluição atmosférica pode também ser parcialmente resolvida com carros elétricos, mesmo que a eletricidade seja produzida em centrais térmicas a carvão ou gás natural fora das cidades. Mas isto não contribuiria significativamente para diminuir os gases com efeito de estufa. Enquanto que na poluição atmosférica os problemas são locais, nos gases com efeito de estufa o problema é global e, portanto, é completamente diferente.
Mas a vossa pergunta tem várias respostas porque é preciso que haja uma transição. Eu acho que só se consegue responder a isto com, por um lado, o aumento da eficiência energética, e por outro o aumento das renováveis. Há pessoas que acham que parte da resposta é o nuclear. Eu não concordo, acho que isso traz outros riscos associados com os quais nós ainda não sabemos lidar, nomeadamente a questão dos resíduos. Tem de haver uma transição e todas as transições energéticas no passado demoraram tempo – é preciso tempo para o desenvolvimento de novas tecnologias e substituição do capital existente.
Acho que este é um dos fatores que explica a demora na acção. O outro é a justiça na distribuição do esforço necessário pelos vários países do mundo. Existe alguma dificuldade em perceber como é que o mundo como um todo pode, de forma justa e equitativa, atribuir as emissões de CO2 a que cada país tem direito. Se Portugal decidir só usar energias renováveis torna-se um exemplo para o mundo, mas não resolve problema nenhum. Somos uma gota de água no consumo e nas emissões de CO2, queremos contribuir para resolver [o problema], mas queremos que o mundo inteiro também faça o mesmo esforço. [Por isso e devido ao] facto de os países estarem em níveis diferentes de desenvolvimento, é difícil perceber como é que de uma forma justa se vai fazer este esforço.
Nós, no nosso desenvolvimento, poluímos muito para chegarmos onde estamos agora. Os países em vias de desenvolvimento não precisam de trilhar o mesmo caminho porque nós podemos dar acesso à tecnologia que temos. Mas mesmo assim vão precisar de poluir mais do que poluem agora porque precisam de algum consumo de energia para ter um certo desenvolvimento energético. Outro fator relevante na transição são os custos associados e os interesses de alguns grupos económicos. Estou a pensar nas grandes petrolíferas ou nos grandes construtores de automóveis. Eles não têm muita vontade que esta transição ocorra de uma forma fácil: alguns dos entraves vão sendo postos pelos poderes instalados que não estão interessados nesta transição.”
Quão importantes considera os chefes de estado e os partidos de maior relevância no contexto político de cada país na diminuição do ceticismo e aumento da educação a este nível?
“Depende muito dos países. As pessoas, em muitos dos países, já estão mentalizadas para as alterações que têm que ocorrer porque percebem a sua importância e os custos da inação. No entanto, os políticos são importantes porque, apesar de as pessoas perceberem a importância (e eu acho que não é tanto a questão do ceticismo), algumas das medidas que têm de ser tomadas têm um impacto negativo no dia-a-dia e, portanto, vão gerar oposição. O exemplo dos carros: se as pessoas com carros anteriores a 2000, ou 2005, forem proibidas de circular dentro da cidade porque o carro emite muitas partículas e tem impacto na saúde humana, vai haver oposição porque as pessoas terão que comprar um carro novo ou mudar de hábitos. É importante que os políticos tenham coragem para tomar medidas difíceis. Esta transição exige mudança de comportamentos – o que é uma das coisas mais difíceis que existe.”
Que mais deveria estar a ser feito, a nível mundial e a nível nacional, nesse sentido?
“Eu acho que Portugal é um bom exemplo em termos de eletricidade renovável; depende se o ano for muito chuvoso ou não, mas pode superar 50% da produção. Falta agora aumentar a capacidade instalada de fotovoltaico. Em termos de mobilidade já não é um exemplo assim tão bom. O facto de termos muita eletricidade renovável, devia motivar a transição para uma mobilidade mais eléctrica. Aí Portugal podia ser mais proativo, dar mais incentivos à compra de carros elétricos ou ajudar a estabelecer uma rede melhor de pontos onde fazer o carregamento. Em termos de eficiência energética, Portugal já fez a transposição da diretiva comunitária para eficiência energética na indústria e nos edifícios. [Com] a legislação actualmente existente, o que se prevê é que a partir de 2020 os edifícios tenham necessidades mínimas de energia e que elas sejam fornecidas de forma renovável. Estas medidas, quando começarem de facto a ter efeitos (porque isto se aplica a edifícios novos e renovados, não a todo o parque habitacional), vão ter um impacto grande.”
4. Economia e Termodinâmica
Dadas as questões que acabaram de ser colocadas relativamente à importância social e aos impactos na economia/sociedade pelo nosso uso da energia, nós vemos alguns problemas que estas questões põem em evidência, e vemos, como a professora já realçou, uma clara relação entre a economia de um país e a sua posição no jogo mundial de energia. Parte da sua investigação é dedicada à conciliação das leis termodinâmicas com as leis da economia. Esta perspetiva é recente?
“Há duas perspetivas diferentes na relação da economia com a termodinâmica e que são úteis para coisas diferentes. Existe uma perspetiva de analogia formal e uma de integração substantiva. Comecemos pela primeira. Vocês olham para a descrição matemática da termodinâmica e olham para a descrição matemática da economia neoclássica e constam que são idênticas. A vantagem disto é que, se têm uma descrição matemática, por exemplo, no caso da termodinâmica, e ela já foi explorada, já se percebeu as consequências de certas hipóteses. Nesse caso, podem explorar o mesmo desenvolvimento na outra área que é matematicamente equivalente, a economia neoclássica, obtendo resultados análogos. Esta analogia matemática é útil para transportar conhecimento e é útil também para ensinar. Se quiser ensinar termodinâmica a economistas, usando um formalismo matemático que já dominam, é muito mais simples. Também pode ser usado para ensinar economia a pessoas que sabem termodinâmica. Estas analogias formais ocorrem também noutras áreas do conhecimento.
Outra questão, que é independente desta, é nós sabermos que a economia não pode violar as leis da termodinâmica. No entanto, a ciência económica muitas vezes ignora e não é consistente com a termodinâmica. Como os economistas têm pouca ou nenhuma formação termodinâmica fazem uma descrição dos processos económicos ignorando que a economia está baseada em fluxos de massa e fluxos de energia. E, portanto, é importante juntar estas duas vertentes: perceber que a economia não funciona se não tiver fluxos de massa e de energia disponíveis e que existe sempre degradação da energia.
Por exemplo, os economistas quando querem descrever como é que o PIB do país é produzido usam uma função de produção, que é uma função matemática que agarra em factores que eles acham importantes para explicar o PIB, nomeadamente o trabalho (o número de horas trabalhadas) e o capital (as máquinas, os edifícios,…). A economia foi sempre descrita assim, como se a energia quase fosse irrelevante para explicar o PIB, o que não faz sentido nenhum. Quando se olha para a economia à escala dos séculos a relação entre a economia e a energia salta à vista, é impossível não ver. Conjugar estas duas perspetivas é importante, é o que chamamos de “integração substantiva entre as leis da termodinâmica e a economia”. Isto é relativamente recente e há algumas pessoas a trabalhar neste sentido, nomeadamente na Comunidade da Economia Ecológica; mas há muita gente que ignora completamente esta relação, nomeadamente os economistas mais convencionais. Mas esta relação agora, mais do que nunca, é fundamental, devido aos impactos ambientais associados ao uso de energia. Se não conseguirmos perceber de facto esta relação, nós não conseguimos perceber como compatibilizar a sustentabilidade ambiental com o crescimento económico.”
Poderá ajudar a compreender melhor o mercado da energia, a fazer melhores previsões nesta área e talvez a resolver alguns problemas como as desigualdades no acesso à energia elétrica ou a transição de combustíveis fósseis para energias mais limpas?
“A relação entre a energia e a economia de que falei anteriormente, ajuda-nos mais a resolver a questão dos cenários energéticos para o futuro do que a questão dos mercados da energia porque esta relação evidencia-se quando olhamos para as coisas a uma escala temporal das décadas ou séculos e não tanto à escala diária e dos minutos que é relevante nos mercados de energia. Para fazermos cenários realistas das necessidades energéticas de Portugal em 2050 é importante ter em conta a relação entre a energia e a economia. Os cenários são relevantes não só para fazer boas previsões, mas também para vermos qual o mundo que queremos no futuro. Portugal pode estar a pensar em tipos de desenvolvimento diferentes em termos económicos e podemos usar isto como base para perceber quais são as necessidades de energia de cada um desses casos e, com elas, quais as emissões de gases com efeito de estufa, por exemplo. E, portanto, a relação entre energia e economia também é importante para perceber os diferentes cenários e poder optar conscientemente ou tomar medidas políticas que nos levem na direção de um ou outro, consoante o futuro que nós, como sociedade, decidimos que é o desejado.”
Esta abordagem parece ir de mãos dadas com a eco-economia, que reconhece que os recursos são finitos e tem em conta a capacidade de reposição dos mesmos na natureza. Na atualidade, os países – nomeadamente Portugal – têm-se guiado por esta visão no campo da economia e produção de bens, ou esta abordagem ainda não passou do domínio científico?
“Já há algumas comunidades para quem esta abordagem é óbvia, por exemplo as pessoas que trabalham na Economia Ecológica, mas é uma abordagem que ainda não é aceite pela maioria dos economistas, devido ao desconhecimento deles, tornando a analogia formal uma ferramenta importante para a disseminação do conhecimento da termodinâmica. O Acordo de Paris e a necessidade de limitação da emissão de gases com efeito de estufa contribuíram para uma abordagem mais biofísica à economia. Para minimizar a emissão destes gases tem que se diminuir o consumo de energia, nomeadamente dos combustíveis fósseis, e isto obriga a que as pessoas não possam ignorar a energia. A energia aparece como [algo] importante agora porque o seu uso causa impactos ambientais e o mundo como um todo já decidiu que quer minimizar esses impactos. Nos anos 70, quando houve a crise petrolífera, também houve muita gente a falar da relação entre a energia e a economia. Quando a energia se torna importante, na altura por causa do custo e agora por causa dos impactos ambientais, este tema torna-se relevante e depois é esquecido. Quando houve a crise petrolífera, o presidente do EUA, na altura, o Jimmy Carter, mandou pôr na Casa Branca painéis solares fotovoltaicos. Quando o Reagan tomou o poder mandou retirá-los, já ninguém estava a pensar no assunto e o petróleo já estava barato.”
Referências:
(1) Useful Work Transitions in Portugal, 1856–2009 – André Cabrera Serrenho, Benjamin Warr, Tânia Sousa, Robert Ayres, Tiago Domingos
(2) Exergia é uma medida de energia que leva em conta a qualidade da energia ou seja a sua capacidade para realizar trabalho. Por exemplo, trabalho mecânico é energia de alta qualidade e calor a baixa temperatura é energia de baixa qualidade.
(3) Energy Production & Changing Energy Sources – Our World in Data