Quem é dono do espaço?

O espaço: a fronteira para um mundo melhor ou uma nova enchente de problemas? Antes de pensarmos em colonizar outros planetas é necessário garantir que deixamos para trás as mentalidades que problematizam a nossa vivência enquanto Humanidade no nosso.

Autoria: João Gonçalves


Tudo começou a 4 de outubro de 1957 com o lançamento do satélite Sputnik, o primeiro objeto criado por humanos a orbitar a Terra. Ao lançar o míssil balístico R-7 que colocaria o Sputnik no espaço, a União Soviética lançava igualmente aos Estados Unidos da América um desafio que estes não podiam recusar e a “corrida ao espaço” estava lançada.

A década que se seguiu refletiu isso mesmo, tendo sido particularmente frutífera em desenvolvimentos tecnológicos, resultado inevitável de duas superpotências medindo incessantemente poderios científicos, militares e ideológicos. O culminar desta competição foi a chegada do Homem à Lua em 1969, que encerrou uma década marcada pelo fascínio pelo espaço patente em marcos da cultura popular como Star Trek ou 2001: A Space Odyssey.

Hoje em dia o panorama é bem diferente: já 12 nações colocaram satélites em órbita e a conquista do espaço já não parece reservada apenas a superpotências, sendo empreendida por diversos outros países e inclusive empresas privadas como a SpaceX. A ideia de viajar para fora do nosso planeta começa a parecer cada vez mais banal. A longo prazo, talvez seja até este o caminho a seguir caso as alterações climáticas tornem a nossa permanência no planeta Terra insustentável.

No entanto, enquanto tentamos ultrapassar a barreira que esta conquista nos apresenta em termos de ciência e de engenharia (o que, presumivelmente, demorará ainda algum tempo), é imperativo considerar os aspetos burocráticos e logísticos da situação, nomeadamente no que toca à criação de regras e princípios que rejam a atividade humana no espaço de maneira pacífica, ética e sustentável. Foi precisamente esta vontade que levou, em 1967, à criação do “Outer Space Treaty” (“Tratado do Espaço Sideral”) por parte das Nações Unidas. Este documento, assinado hoje por 108 países, estabelece que a exploração e utilização do espaço deve ser levada a cabo “para o benefício e no interesse de todos os países”, sendo o acesso a todos os astros e seus recursos aberto a todos os Estados, não podendo estes ser apropriados por qualquer nação individual “por reclamação de soberania, por meio de uso ou ocupação ou por quaisquer outros meios”. Além disso, este tratado estabelece a proibição da colocação de armas de destruição massiva em órbita terrestre ou da utilização de quaisquer corpos celestes para levar a cabo testes ou operações militares.

O “Outer Space Treaty” tem sido complementado ao longo dos anos por documentos adicionais, nomeadamente: o “Rescue Agreement”, de 1968, que estabelece diretivas para o resgate de tripulações de veículos espaciais; a “Space Liability Convention”, de 1972, que determina a responsabilidade que os Estados devem tomar pelos objetos que lançam para o espaço; e a “Registration Convention”, de 1976, que exige o fornecimento de informações e registos às Nações Unidas de todos os objetos lançados para fora do nosso planeta.

O ano de 1979 viu o nascimento do “Moon Treaty”, um documento bastante semelhante ao “Outer Space Treaty” mas com algumas alterações a nível linguístico. Este novo tratado é hoje amplamente considerado um fracasso, visto ter sido assinado por apenas 18 países, nenhum dos quais com capacidade para enviar missões tripuladas ao espaço. O motivo desta rejeição por parte da comunidade internacional é, de acordo com Michael Listner, um advogado e analista especializado em lei e segurança espacial, o requerimento de que os recursos explorados fora da Terra (bem como as tecnologias utilizadas para os explorar) sejam tratados como pertença de toda a Humanidade e divididos entre todas as nações.

De facto, o incentivo comercial a longo prazo da conquista espacial é presumivelmente um forte móbil dos chamados Três Grandes da exploração extraterrestre (EUA, Rússia e China), pelo que a sua rejeição deste tratado não é de todo uma surpresa. No entanto, o aspeto comercial da conquista do espaço não pode permanecer para sempre desregulado, sob pena de alcançarmos um futuro onde os conflitos armados motivados por disputas de recursos sejam um problema tão grande fora da Terra como o são hoje nela, o que revela uma falha latente da atual legislação espacial. Além disso, e apesar dos Três Grandes terem assinado cada um dos quatro tratados antecedentes, também não podemos pensar que os problemas neles considerados ficaram perfeitamente resolvidos. As décadas desde o “Outer Space Treaty” têm visto surgir situações imprevisíveis na época da sua redação que continuam hoje desconsideradas em todos os tratados oficiais, em particular a necessidade de remoção de lixo e de detritos do espaço. Ainda para mais, o “Outer Space Treaty” peca pela sua linguagem vaga e pelo carácter pouco concreto dos seus artigos, aspetos que poderão ter sido premeditados para garantir a sua aceitação por parte da maior quantidade possível de países mas que dificultam a sua interpretação e afetam a sua utilidade prática.

Até mesmo o aspeto da manutenção da paz no espaço, uma das questões centrais que levou à redação destes tratados (o que se evidencia pelo próprio nome escolhido para a entidade que os redigiu, o “Comitê das Nações Unidas para o Uso Pacífico do Espaço Exterior”), não está ainda plenamente assegurado: o uso de armas convencionais ou do chamado “bombardeamento cinético” (que consiste no lançamento de objetos inertes do espaço, cujo poder destrutivo advém da enorme energia cinética com que chegam à Terra) não está interdito. Além disso, situações como a destruição por parte da China de um dos seus satélites com o míssil balístico SC-19 em 2007 chamaram a atenção da comunidade internacional, atenção essa que foi redobrada em 2010, quando a China levou a cabo novos testes, desta vez de interceção de mísseis e no seu próprio território, com tecnologia que o exército dos EUA identifica como sendo o mesmo modelo de míssil balístico utilizado em 2007. Verdadeira ou não, esta história levanta a questão: que medidas estão em vigor para tentar impedir o teste de armas no espaço (de destruição massiva ou não) sob o pretexto de se tratarem de tecnologias pacíficas, circundando assim ardilosamente as proibições dos tratados internacionais? A resposta, atualmente, é “nenhumas”. E que consequências estão previstas para os países que de facto levem a cabo abertamente testes militares no espaço? A resposta é a mesma: “nenhumas”.

A juntar a tudo isto há ainda as considerações ecológicas a ter em conta no que toca à conquista espacial. O “Outer Space Treaty” já prevê a necessidade de que os Estados conduzam a sua exploração do espaço “de maneira a evitar a sua contaminação nociva”, mas não dá diretivas específicas de como o fazer nem define concretamente “contaminação nociva”. Se não forem postas em prática regras para regular a exploração de recursos no espaço de forma ética e sustentável, então poderemos estar a encaminhar os restantes corpos celestes do nosso Sistema Solar pelo mesmo caminho de poluição e degradação ambiental por onde fizemos enveredar o nosso. Quando começamos a pensar no impacto que a exploração do espaço por parte de instituições privadas pode vir a ter no ambiente dos outros planetas, o problema complica-se ainda mais, especialmente pelo facto de  todos os tratados internacionais até aqui referidos incidirem somente sobre a ação de nações e não de empresas (que requerem a autorização do governo do seu país para lançar objetos para fora da Terra mas que estão até agora isentas das responsabilidades daquilo que façam no espaço, as quais recaem sobre o Estado que as autorizou). Com o rápido progresso dos avanços de empresas como a SpaceX, estas lacunas legais devem forçosamente ser preenchidas o quanto antes.

A única conclusão que podemos até agora retirar de tudo isto é que, embora o desafio tecnológico da conquista espacial possa ser difícil de ultrapassar, o desafio logístico de estabelecer uma estrutura legal que garanta a sua execução de maneira pacífica e benéfica para a Humanidade como um todo também o será certamente. O universo burocrático e legal da política extraterrestre quanto a este assunto é um vazio tão grande como o espaço em si, mas esse vazio deve ser preenchido o quanto antes, sem nunca descurar a filosofia vigente no “Outer Space Treaty” original: a ideia de um Universo pertencente a uma Humanidade unida por um desejo comum de paz e de progresso. No entanto, e até que o aspeto legal da conquista espacial esteja satisfatoriamente resolvido, talvez seja mais prudente manter os olhos fixos na Terra e na salvaguarda do seu meio ambiente e da paz entre as suas nações do que erguê-los aos céus em busca de uma potencial salvação, que poderá acarretar ainda mais dos mesmos problemas que já temos.

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