Ex-ministro do Ensino Superior: “Eu acho que é uma loucura a decisão de rever o RJIES”

Autoria: João Carranca (MEIC) e Patrícia Marques (MECD)

Com o processo de revisão do Regime Jurídico das Instituições do Ensino Superior (RJIES) a ter início e um Ensino Superior que enfrenta dificuldades significativas, o Diferencial sentou-se com Manuel Heitor, antigo Ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior para discutir o estado atual da pasta que tutelou entre 2015 e 2022.

O Regime Jurídico das Instituições do Ensino Superior (RJIES) é a peça legal fundamental que rege o funcionamento do Ensino Superior, desde 2007. É nele que estão estabelecidas as regras para a eleição do reitor ou percentagem de participação dos estudantes nos órgãos de escola. Em 2007, a legislação aprovada previa uma revisão em 2013, que nunca chegou a acontecer e que se tem arrastado até aos dias de hoje. Muitas propostas de revisão foram escritas e apresentadas desde então, com a Comissão Independente para a Avaliação da Aplicação do Regime Jurídico das Instituições do Ensino Superior a produzir, no final de 2023, um documento aglutinador de reflexão geral sobre o estado da legislação e a sua potencial revisão.

Durante os quase 7 anos em que assumiu a pasta do Ensino Superior, Manuel Heitor nunca iniciou qualquer processo de revisão do RJIES e defende essa posição. Considera aliás que “o nosso regime jurídico é um dos melhores regimes jurídicos na europa”, com base num relatório da European University Association, que avalia o grau de autonomia dos vários sistemas universitários na Europa. Defende ainda que não há atualmente condições para uma revisão do documento, algo que já comunicou diretamente ao atual Ministro da Educação, Ciência e Inovação, Fernando Alexandre.

“Não deve haver revisão. Neste momento com o Parlamento como está, com movimentos muito estranhos da extrema direita […] eu acho que é uma loucura a decisão de rever o RJIES.”

A seu ver, em 2006, quando participou na elaboração do RJIES atual, todo o processo foi “muito difícil”, apesar de haver uma maioria absoluta do Partido Socialista, algo que o leva a ser pessimista.

“Neste momento eu não vejo um contexto político para haver uma aliança estratégica entre os vários partidos e deputados, e por isso acho que qualquer revisão vai ser sempre para ficar pior. […] Quando eu estava no Governo, mesmo no tempo da geringonça achei que não havia condições e portanto tomei a decisão com o apoio do Primeiro-Ministro de não rever o RJIES.

Críticas à proposta da revisão do RJIES 

Sobre a proposta de alteração que o atual Ministro da Educação, Ciência e Inovação fez circular em dezembro de 2024, e que foi, entretanto, aprovada em Conselho de Ministros com algumas alterações, o antigo Ministro considera que há “três questões absolutamente críticas que pioram o atual regime”.

Primeiro, considera que a proposta traz “a destruição do sistema binário“. A proposta do Governo prevê, por exemplo, a possibilidade da criação de “Universidades Politécnicas” mediante o cumprimento de critérios específicos relacionados com a oferta de mestrados e doutoramentos feitos pelas instituições, medida criticada por uma parte substancial dos responsáveis no Ensino Superior.

“Esta proposta vem criar uma amálgama de instituições. A fusão, por exemplo, entre Universidades e Politécnicos, acho que é um erro político crítico, e vem contra a tendência internacional. O país que fez isto há uns anos foi o Reino Unido, e depois arrependeu-se muito.

A segunda crítica do ex-Ministro é dirigida à proposta de eleição direta do reitor e à constituição dos conselhos gerais das Universidades.

“Acho que não deve haver eleição direta, nem que os estudantes se devem envolver nisso. Os estudantes devem estar fortes e reforçados nos Conselhos Pedagógicos. […] A revisão proposta tem só uma coisa para mim muito boa, que é não poder haver a reeleição do reitor e aumentar o mandato de 4 para 6 anos. Acho que isso é bom, mas a eleição direta é um erro terrível. E, por outro lado, a anulação do poder dos membros externos no Conselho Geral, acho que é um outro erro terrível. Eu defendo Conselhos Gerais só com membros externos e não vejo problema nenhum que sejam os Conselhos Gerais a eleger os reitores.”

Relembrando o seu tempo como Secretário de Estado da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior nos governos de José Sócrates, entre 2005 e 2011, explica a sua posição.

“Eu devo dizer que a nossa primeira proposta [do RJIES] em 2006, quando eu estava no Governo com o José Mariano Gago, foi seguir o modelo inglês e holandês, onde os Conselhos Gerais eram mais curtos e só com membros externos, […] não tinham membros internos. Isso foi uma alteração depois do que o Parlamento fez. Neste momento os Conselhos Gerais não são tão fortes como podiam ser, porque têm uma amálgama de membros internos e externos, com uma maioria de membros internos, que eu acho que é um erro.”

A terceira crítica de Manuel Heitor, em alinhamento com o Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas (CRUP) e parte significativa da opinião pública, vai para a proibição de contratar doutores formados na própria instituição nos 3 anos seguintes à conclusão do grau. “É uma farsa dizer que isto é que vai resolver o problema da endogamia. Em todo o mundo este assunto é tratado com práticas, mas nunca no corpo da lei.”

O ex-Ministro aponta para a constituição dos júris que decidem a colocação de docentes e investigadores como o verdadeiro ponto de ação. “O problema está nos júris que as escolas formam. […] As escolas têm autonomia para formar [os júris], portanto, eu acho que isto é um assunto em que o Governo e a lei não se devem meter. Aqui no Técnico é possível, não é muito hábito, mas é possível ter júris só com membros externos.”

Em suma, considera que “esta proposta não faz nada, a autonomia não sai reforçada e o que sai reforçado é o poder do Ministro.”

Sugestões para uma revisão do RJIES

Em alternativa, Manuel Heitor aponta alguns aspectos que gostaria de ter visto na proposta elaborada por Fernando Alexandre.

A diversificação do sistema e a autonomia estatutária ainda podia ser mais reforçada, porque a autonomia estatutária é das peças mais bonitas e mais importantes no sistema português. Universidades diferentes são diferentes, escolas diferentes são diferentes. Há muitas pessoas e muitos partidos políticos que defendem uma uniformização e uma centralização que eu acho que é um perigo.” Considera no entanto que não se trata de uma questão linear.

“Há muitos reitores que são totalmente contra [o aumento de autonomia estatutária] porque eles sabem que dentro das suas próprias Universidades ou escolas não têm capacidade para fazer bons estatutos.” Para si, a Universidade de Lisboa e a Universidade do Porto, instituições que considera terem estatutos “muito maus”, são exemplos desse problema. “Os reitores têm tanta exceção devido à diversidade de escolas, que preferem que fique na lei tudo imposto e são contra a liberdade estatutária.”

Considera ainda necessária uma profissionalização dos reitores, em matéria de gestão financeira. Manuel Heitor indica que os saldos das Instituições de Ensino Superior (IES) continuam a crescer anualmente e que algumas IES “afinal têm dinheiro a mais, não conseguem usar o dinheiro todo.” Dá o exemplo do Técnico: “os professores têm uma capacidade enorme de ir buscar dinheiro, a instituição em si não tem capacidade igual para usar e usa pouco dinheiro.”

O ex-Ministro do Ensino Superior aponta também para os poderes e constituição dos Conselhos Pedagógicos como um dos aspetos a ser revisto.

“É preciso dar poder aos estudantes nos Conselhos Pedagógicos. Os Conselhos Pedagógicos têm de ser totalmente a forma de os estudantes terem poder dentro das instituições e, como sabemos, são muito desprezados hoje.” 

Defende o aumento da representação estudantil neste órgão e também o reforço dos seus poderes, com autonomia executiva e a secundarização dos departamentos nos processos de reestruturação curricular, órgãos que considera serem “as maiores máfias” das IES.

“Tu não tens um diploma de um departamento, tens um diploma de um curso e de uma instituição. Portanto, o Conselho Pedagógico tem que atuar sobretudo ao nível da gestão de reformas curriculares dos cursos que é aquilo que os estudantes veem.”

Por último, considera que há que responsabilizar mais os docentes de carreira, em particular nos conselhos científicos. “O Conselho Científico do Técnico e os estatutos do Técnico são particularmente maus, foram muito mal feitos.” Manuel Heitor refere que antigamente, eram eleitas duas pessoas de cada departamento, de entre os professores de carreira.

“Podia não ser a melhor forma, tinha algum sentido corporativo, mas agora […] é por listas, portanto, são amigos uns dos outros que estão no Conselho Científico. Deixou de haver debate sério.” Por essa razão, considera necessário responsabilizar mais os docentes de carreira com assento neste órgão e que alterações nesse sentido poderiam beneficiar o funcionamento das escolas.

Possível descongelamento das propinas

Sobre o eventual descongelamento das propinas mencionado pelo Ministro Fernando Alexandre, Manuel Heitor defende que não sejam os estudantes a pagar o ensino, mas sim os empregadores. Menciona que os “bolseiros já não pagam propinas” e que as propinas devem ser gradualmente reduzidas até serem zero. Recorde-se que Manuel Heitor esteve envolvido na redução do valor das propinas em 2019/2020 e 2020/2021, durante o XXII Governo Constitucional.

“O principal motivo que levou ao aumento da fração de estudantes [no Ensino Superior] foi não pagar as propinas. Não é ação social. Muitas famílias duvidam da ação social.”

Indica que, no entanto, a questão das propinas é uma das sub-questões associadas a que todos tenham oportunidade de ingressar no Ensino Superior. Outra é a do alojamento estudantil. Refere que o problema dos custos elevados é recente: “não havia há 10 ou 15 anos, é um custo novo […] portanto, não se investiu porque não havia essa necessidade”. Ao agravamento dos preços, atribui como causa principal a “explosão do turismo e do Airbnb […] e das viagens de baixo custo”, acrescenta que “isto teve uma especulação imobiliária brutal e, portanto, as pessoas que alugavam quartos aos estudantes preferem alugar aos turistas por valores muito mais caros.”

“Não se faz residências de um ano para o outro […] há aqui um compasso de tempo brutal […] neste momento, qualquer número de camas que seja possível fazer será sempre pouco.”

Refere a complexidade em redor da cobertura da ação social, sobretudo para a entrada das classes menos favorecidas no Ensino Superior. “Não geramos imposto suficiente e a classe média já tem uma carga fiscal muito grande, portanto, é um problema das finanças públicas portuguesas, porque não geramos valor suficiente para ter mais investimento público.” Uma das opções é o financiamento europeu, como o Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional (FEDER) e o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), através do qual está a ser reforçado o Plano Nacional para o Alojamento no Ensino Superior (PNAES). “O avanço é brutal, mas não está concluído.”

Defende ainda o Ensino Superior de proximidade, através de CTeSP e Politécnicos “para as pessoas não terem que ir todas para as cidades.” O problema é complexo pois “a população portuguesa deslocou-se gradualmente sempre para o litoral […] sobretudo para as duas grandes cidades.”

O professor do Técnico diz que, de forma geral, “as pessoas a norte de Coimbra vão para o Porto. O Técnico infelizmente não é uma escola nacional, é uma escola que cada vez mais é uma escola regional. Vêm para o Técnico pessoas de Coimbra para baixo.”

Reforça ainda o impacto da imigração e defende o aumento do número de estudantes estrangeiros, sobretudo em regiões do interior do país: “Os estudantes estrangeiros têm de ir para o nível [grau de Ensino Superior] mais alto e aí têm de pagar mais. É uma fonte de receitas.”

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