Filipa Moleiro: entre as [mulheres] estreantes de Aeroespacial em Portugal

Autoria: Mariana Campos (MEAer) e Tomás Vieira (LEMec)

Filipa Moleiro pode não ter sido ainda a primeira mulher portuguesa a ir à Lua, mas foi uma das primeiras a sonhar como fazê-lo. O Diferencial sentou-se com a quarta mulher a concluir o percurso em Engenharia Aeroespacial, da licenciatura ao doutoramento, no Técnico e, por extensão, em Portugal. 

Atualmente a única professora na Área Científica de Mecânica Aplicada e Aeroespacial (ACMAA) do Instituto Superior Técnico (IST), Filipa Moleiro acumula ainda um cargo de gestão no Departamento de Engenharia Mecânica (DEM) e é investigadora no polo do IST do Instituto de Engenharia Mecânica (IDMEC/IST). O seu percurso, sempre sob a asa do mundo académico, conta com a docência em quatro faculdades, o doutoramento em parte na Texas A&M University e uma média de Licenciatura fora da curva, que lhe permitiu saltar o Mestrado.

Descolagem: antes do Técnico, o gosto por Aero

Entre os “filmes da altura” até à paixão do pai por aeronáutica, que só mais tarde veio a descobrir, a professora diz que instintivamente se sentiu cativada pela área. Confessa que a escolha pelas “físicas” e pelas “engenharias” foi muito instintiva: “na prática, a decisão de ir para Engenharia Aeroespacial foi um pouco na tentativa de ser cativada”. Sempre teve fascínio pelo espaço e pela exploração espacial, cruzando gostos também com a aeronáutica, isto pelo menos “até descobrir efetivamente no que consistia a aerodinâmica”. Por mais que inicialmente não tivesse consciência da certeza com que fizera a escolha, “por salvaguarda, ainda pus outras opções”, diz ter sentido alguma determinação “mas eu não pus mais do que três e eu, efetivamente, nem a segunda queria” ao que, olhando para o passado, afirma: “portanto, era aquela ou não era”. Acrescenta ainda que antes de entrar “tinha referências daquilo que era o Técnico, que aliás eram assustadoras; o feedback era quase negativo”.

Entre o peso da escola e a leveza do saber: o percurso como aluna

A Licenciatura em Engenharia Aeroespacial (LEAer), criada em 1992, foi o primeiro curso da área em Portugal. Contudo, só em 1998 teve como aluna Filipa Moleiro, em atmosfera pré-Bolonha este tinha a duração de cinco anos.

A professora conta que o paradigma do curso nos seus primeiros anos era muito diferente do atual: “entrávamos 35, mas logo após o primeiro ano ficávamos 20”. A dificuldade vinha também abraçada a uma espécie de má fama: “Circulavam anedotas a dizer: «o que é que vai fazer um Engenheiro Aeroespacial?» […] Gozavam connosco a dizer que a gente ia trabalhar para o McDonald’s ou que não íamos ter emprego”. Nisto, e de uma maneira atualmente engraçada, conta que muitos dos seus colegas pareciam ceder a estes rumores: “Havia muitos que no final do primeiro ano, por ainda ser o ano comum, trocavam de curso. Portanto, iam para as físicas, iam para civil, iam para mecânica e saíam.” A ironia surge quando nos lembramos do elitismo com que este curso é agora encarado, “era o contrário do que é agora: em que as pessoas entram e depois no final do primeiro ano tentam ingressar em Aeroespacial. Antigamente era ao contrário”.

Os seus anos no Técnico foram marcados pelas amizades que viveu, recordando-se que chegavam “a fazer jantares dos 5 anos [de Aeroespacial]” já que “só [eram] 100 no curso todo”, algo que “agora seria impossível”. A isto acrescenta: “Eu acho que se não tivesse sido aquele o curso, eu talvez não me tivesse dado tão bem no Técnico quanto dei. O facto do curso ser pequeno ajudou-me, o facto de sermos muito amigos e não haver uma distância. Isto porque apesar de todos querermos boas notas, nós não competíamos como eu atualmente vejo competir.” Finaliza o seu raciocínio com “ter uns bons amigos faz um mundo de diferença, ajudam a pessoa a não esmorecer, porque senão o Técnico transforma-se num desgaste absurdo”.

Paralelamente, recorda com vividez a exigência sentida na altura: “independentemente de às vezes as disciplinas terem os mesmos nomes, o grau de dificuldade era aumentado [para LEAer]”, ao que acrescenta: “as pessoas ficavam para aqui imenso tempo a tentar terminar o curso e aqueles que terminavam eram muito fortes”. Nesta linha, revela o seu primeiro abanão: “Fiz o primeiro teste de Análise Matemática e nunca mais me esqueci, a nota ficou-me gravada no coração.”

Conhecida por não faltar a aulas e por fazer muitos apontamentos, a trajetória com que fazia o curso revelava-se, desde o início, diferente. “Ao contrário de alguns amigos meus que queriam trabalhar numa companhia de aeronáutica, eu não tinha essas aspirações. Sempre tive mais a questão de querer estudar e depois a vida logo me havia de levar para onde levasse, sem grandes planos ou sonhos”. Discursa ainda sobre o quão pode aprender sob os moldes do antigo sistema: “Eu fiz o ramo de aeronaves, mas acabei por fazer todas as disciplinas de aeronaves, aerodinâmica, propulsão e ficar com especialidade nas disciplinas estruturais, não houve nada que eu não fizesse.” No seu quarto ano deu aulas de Análise Matemática I e III na qualidade de monitora: “andava a corrigir exames e a fazer os meus exames. Dava por mim em louca, porque os exames das análises eram centenas”.

A sua média alta permitiu-lhe saltar o mestrado, e já no fim da licenciatura lembra-se de ser procurada por professores: “tive três professores que me fizeram esse convite [para doutoramento]”. Acabou por se decidir pelo professor da área de estruturas, “se calhar, pelo professor e pelas pessoas com quem trabalhava”. O seu terceiro ciclo foi misto, teve um orientador no IST e outro na Texas A&M University, nos Estados Unidos.

“Com o doutoramento terminado, vamos a um pós-doc. Concorri, e ganhei outra vez”. Continuou ligada ao Técnico e ao IDMEC e, durante um período de tempo, foi ainda professora pro bono das disciplinas que o seu orientador, antes de adoecer, lecionava: “Foi uma coisa que lhe aconteceu de um dia para o outro e todos os outros docentes já tinham as disciplinas todas atribuídas […]. Ligou-me e eu, na segunda-feira seguinte, tive que pegar nas aulas todas dele: dei Mecânica Estrutural e Materiais Compósitos Laminados durante um ano.”

Impulsionando mentes: o percurso como docente

Por mais que os tempos como monitora e professora substituta tenham constituído valiosas experiências de lecionação, a sua primeira experiência “real” foi a “oportunidade de dar aulas na Universidade Lusófona”, à licenciatura de Ciências Aeronáuticas. Nisto, “eu dei aulas de Física mas só dei lá um semestre, não gostava até porque eles pagavam mal” ao que, quando surgiu uma proposta para o Instituto Superior de Engenharia de Lisboa (ISEL), “aceitei, desisti da Lusófona, que não me cativou minimamente.” Sempre em tempo parcial, porque era o que a bolsa da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) permitia, foi docente lá por pouco mais que sete anos, muitas vezes em aulas noturnas “a pessoas muito mais velhas, que já estavam a trabalhar e estavam a tentar melhorar as suas formações.”

Nos seis anos de bolsa, tinha ainda uma missão paralela: concorrer para ser professora no Técnico, mas desta vez enfrentou turbulências antes de ganhar altitude. “Eu ainda tentei o Técnico. Não é fácil cá entrar, cada vez ia sempre subindo na classificação, mas sem sucesso.” Estes travões aliados às responsabilidades da vida adulta guiaram a professora: “quando surgiu a oportunidade de ir para uma outra escola, fui para a Escola Náutica”. Isto tudo sem abdicar do ISEL, “dava imensas aulas, nas duas instituições, que nem uma doida.” No meio destas duas vidas, colecionava unidades curriculares: “Na Náutica ensinei tudo e mais alguma coisa, de Mecânicas Aplicadas, de Fluídos e de Materiais a Matemática, e no ISEL também dei muitas coisas como Métodos de Elementos Finitos, Mecânica de Materiais e Métodos de Ligação de Materiais”. Manteve sempre o radar sobre o Técnico, e quando apareceu uma vaga, a caminhar para o seu terceiro ano a lecionar na Escola Náutica, concorreu: “e foi essa que eu acabei por conseguir.” Agora, mais em órbita da sua expertise, ensina Mecânica Aplicada (I e II) e Estruturas Aeroespaciais, ao que confessa: “senti-me muito em casa, senti que estava de volta às origens, gostei muito e continuo a gostar.” E nisto, conclui: “fui de facto a primeira que, tendo feito o curso em Aeroespacial no Técnico, entrou de volta no Técnico para ser professora de Aeroespacial, ou seja, fiz o círculo”.

Desafiando a gravidade: o caminho como mulher

Agora na ACMAA, que totaliza 13 professores, é a única docente [mulher] e relata que “houve colegas [mulheres] no passado que não tinham sido formadas diretamente em Aeroespacial e que entretanto saíram”, ao que acrescenta “na prática, desde que eu me recordo, quando houve alguma mulher por aqui, era sempre só uma”.

Corpo docente da ACMAA do IST | Fotografia: Tomás Vieira

Atualmente, sou eu a única e estou para ver quando é que tenho uma amiga na área científica.

Salienta que esta razão de 1 para 13 observada nos docentes é efetivamente diferente do que toca aos alunos em Engenharia Aeroespacial. “Um 40-60% é o que eu estou a ver já nas minhas aulas”. No entanto, a percepção da professora revelou-se otimista já que, segundo o Núcleo de Estatística e Prospeção (NEP), no ano letivo 2023/2024, 76% das matrículas na licenciatura em Engenharia Aeroespacial eram masculinas e no mestrado esta figura chegou aos 83%. Por outro lado, a crescente adesão feminina a Aeroespacial verifica-se, até porque “no meu ano foram 4 mulheres para 35 [vagas]” (cerca de 11%) e “era um dos cursos com a razão mais pequena de todos, especialmente quando foi criado”. Em contrapartida, diz que numa visão geral, em ambientes mistos como a cantina, “a coisa esbatia-se”.

Em cargos de poder vai mais além, relata sentir uma barreira acrescida para a subida na carreira de mulheres docentes: “O caminho não está muito facilitado, eu acho que é pelo contrário”. Tal, de certo modo, confirma-se quando olhamos para o DEM que engloba o ACMAA. Neste, apenas 3 dos 23 docentes catedráticos (13%); 4 dos 30 docentes associados (cerca de 13%), e 10 dos 43 docentes auxiliares (cerca de 23%) são mulheres. Ao que globalmente se traduz em 17 mulheres num universo de 96 docentes. Contudo reconhece que têm sido feitos esforços para o combater, com a ressalva: “naturalmente devia ser quase igual [a percentagem de mulheres e homens], sem se ter que forçar nada”. A isto acrescenta: “nos prémios que dão às mulheres na ciência [e.g. Prémio Maria de Lourdes Pintasilgo], eles focam o assunto [da desigualdade de género], mas, entre focar o assunto e fazer mais por elas, há uma distinção. Acho que eles não fazem mais por elas”.

Sobre os esforços por parte do Técnico em chamar mais alunas, reconhece que estão pelo menos a garantir que elas não se sentem excluídas na arte da comunicação que fazem, o que já por si não é nada mau”, referindo-se ao plano de Promoção da Comunicação Inclusiva no Técnico.

Subjacente à discussão, impõe-se outro tema comumente discutido: áreas supostamente de génese mais masculina. Ao que FIlipa Moleiro corta com “eu acho que não há nada inato a uma mulher que diga não quer escolher engenharia, é 50-50 como qualquer outra coisa”.

Finaliza mencionando que inicialmente, dentro do próprio departamento, sentiu alguma inércia por estar sozinha. Explica que enquanto os seus colegas formavam instintivamente colaborações, “um boys’ club”, ela, por ser a única mulher, tinha mais dificuldade em integrar-se nessa dinâmica. “É muito mais fácil levar uma ideia a avante se forem três a pensar ao mesmo tempo do que se for uma pessoa sozinha a pensar. Eles pensam em conjunto e portanto eles produzem mais rápido. A rapariga, se não tem a ajuda deste e daquele e daquele, tem que andar sozinha”, ao que adiciona “isto de facto acontece e dificulta muito a evolução e a progressão na carreira”, ressalvando que “eles nem sequer se apercebem que é uma coisa”, ou seja, que “nem sequer faz parte da sua mente pensar que não estão a ser justos“. Rematando com: “atualmente não é que me custe menos, mas simplesmente já me habituei à ideia de que não vou ter ninguém para puxar por mim a não ser eu própria e portanto, se for para pedalar, tenho que pedalar eu”.

Do solo académico ao espaço das ideias: aspirações e sonhos

Em termos de desejos antigos confessa que “estar envolvida em projetos que estejam relacionados em parte com o espaço” tem sido o mais gratificante, “por exemplo eu estive envolvida no IST-SAT-1.” Entre cálculos, computação e constelações, reforça que, talvez por ter crescido com os Star Wars antigos, “sempre que eu tenho a chance de orientar trabalhos que têm um pezinho no espaço, eu vou e faço”, ainda que a sua especialidade seja análise estrutural e interação fluido-estrutura.

A estabilidade com que voou e a resiliência com a qual se equipou descrevem uma história de pioneirismo sustentada por uma força de vontade que só poderia vir de “uma das primeiras mulheres formadas em Aeroespacial em Portugal”.

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