“O negócio dos jornais é hoje muito menos rentável” (entrevista com Miguel Pinheiro)

Miguel Pinheiro é o atual diretor executivo do jornal Observador. Há quase três décadas que dedica a sua vida ao jornalismo. Escreveu vários livros no âmbito da história e da política,
entre eles a biografia de Francisco Sá Carneiro, uma das figuras mais míticas da história de Portugal. Teve a simpatia de aceitar o nosso convite para uma entrevista em que falámos de jornalismo, de política, do passado e, claro, de Francisco Sá Carneiro.

Autoria: João Carranca (LEEC)

Notas úteis para o leitor:

  • PREC: Sigla para Processo Revolucionário em Curso, nome dado aos acontecimentos nacionais que tiveram lugar entre 25 de abril de 1974 e 25 de novembro de 1975.
  • O Independente: Jornal Português fundado em 1988 por Paulo Portas e Miguel Esteves Cardoso. Marcou o país pelo impacto político e cultural que teve, nomeadamente no confronto regular que manteve com o governo de Cavaco Silva.
  • Conselho da Revolução: Entidade formada em 1975 na sequência do 25 de abril, constituído por militares. Era o órgão máximo da revolução. Possuía variados poderes incluindo o veto a leis aprovadas na Assembleia da República. Foi extinto em 1982.
  • Arquivo Ephemera: Arquivo criado em 2003 por José Pacheco Pereira. Conta atualmente com mais de 200 mil títulos, sendo um dos maiores arquivos privados portugueses.

JC: Nasce em 1974, no meio da Revolução, não sei se imediatamente antes ou imediatamente depois.

MP: 30 de Outubro, sim.

JC: O período em que cresce, na década de 70/80, comparado com o que nós vivemos atualmente, em termos de acontecimentos políticos, era muito atribulado. Isso afetou-o em termos de desenvolvimento pessoal, por exemplo, na decisão que tomou de ir para Direito?

MP: Não, ali o ponto é que a política era entusiasmante. É uma altura em que há grandes entrevistas. Aquele período de ouro do Miguel Sousa Tavares e da Margarida Marante, a fazer entrevistas na televisão. Tanto os debates como as entrevistas eram feitos de forma muito escrutinadora e muito agressiva, no bom sentido da palavra; e, portanto, tudo aquilo era interessante. Havia confronto, havia, não quero ser demasiado poético, mas havia uma paixão.

Depois, aquilo que me levou a investir-me verdadeiramente na política e, mais importante, no jornalismo, foi o Independente. Hoje em dia, todos nós podemos ter uma visão mais distanciada do Independente. Podemos falar do que é que o Independente fez de mal, o que fez de bem, mas [o que é certo é que] o Independente deu cor ao jornalismo. Para a minha geração, aquela ligação inicial emocional é com o Independente. Eu lembro-me de andar às sextas-feiras com o Independente à mostra. Quero dizer, comprar o Independente e lê-lo era uma declaração. Não era só uma questão política, era também uma questão cultural. A sua influência mais duradoura não é política, é cultural – foi uma mudança na forma de escrever e na forma de pensar, foi uma mudança total àquilo a que se dava importância. 

JC: Muitas pessoas sentem que o Independente não tem verdadeiramente um sucessor, nem a nível de estilo, nem a nível de impacto, sobretudo. Porquê?

MP: O mundo de hoje é completamente diferente. O Independente surgiu numa época em que os ciclos da vida política portuguesa eram semanais e não diários, como passaram a ser, a partir daquela altura, especialmente depois de aparecer o jornal Público. Menos ainda eram à hora, como aconteceu com o aparecimento dos canais de notícias. Menos ainda ao minuto, que é o que se tem hoje em dia com o aparecimento dos sites como o Observador. 

JC: Isso inviabiliza um jornal político daquele tipo?

MP: O que eu quero dizer com isto é que a forma como se olha para as coisas é totalmente diferente, por um lado. Por outro, o Independente do mito é muito diferente do Independente da realidade. Eu já várias vezes fui reler o jornal e também não era assim tão espetacular. O jornal era ótimo – muito bem feito, claro que sim – mas aquela ideia que nós temos hoje de que tinha todas as semanas uma manchete espetacular e que mandava ministros abaixo não é verdade. Passavam-se muitas semanas em que a manchete do jornal não era absolutamente nada de extraordinário. Agora, o Independente, em particular o caderno 3, estende-se muito para lá da política na influência cultural que teve. 

JC: Coordenado pelo Miguel Esteves Cardoso, não era? 

MP: Sim, tinha lá muita gente. E mudou muitas cabeças, não é? Realmente, aquilo que mais fica é a mudança cultural que o caderno 3 provocou na população. Isso é o que mais fica.

JC: Parte com formação em direito, e depois vai para o seu primeiro jornal, o Semanário Diabo, certo? 

MP: Sim., enquanto estou a tirar o curso.

JC: Sentiu alguma dificuldade de adaptação, ou alguma diferença entre si e, por exemplo, outros jovens que tivessem uma formação em comunicação social, ou acha que não fez diferença? 

MP: Não…Vamos ver. Eu só fui tirar o curso de direito por exclusão de partes. Não foi propriamente como se o meu objetivo na vida fosse ser advogado. Muito pelo contrário. O meu grande pesadelo sempre foram aquelas placas de advogados que há em alguns prédios, com o nome e depois “advogado, terceiro esquerdo”. Tinha mesmo pesadelos à noite, com uma placa com o meu nome a dizer “Escritório de advogados do terceiro esquerdo”.

JC: Como os consultórios médicos. 

MP: Exato. E por isso é que eu comecei a trabalhar no terceiro ano da faculdade. Mudei para o regime noturno para poder trabalhar, porque o meu objetivo era que, quando acabasse o curso, já estivesse no jornalismo a sério, por forma a evitar ficar ali naquele limbo em que inevitavelmente iria ser levado para a advocacia. Não senti essa dificuldade de adaptação. Não senti que não estivesse preparado para ser jornalista por não ter feito o curso de jornalismo. E as pessoas que eu conheço que fizeram os cursos de jornalismo dizem-me que não é especialmente agradável.     Não digo isto  com o intuito de desvalorizar o curso de jornalismo, até porque eu acabei o curso de direito e saí da faculdade sem estar bem preparado para entrar num tribunal, por exemplo. No meu tempo, na Faculdade de Direito de Lisboa, acabava-se o curso de Direito sem se ter entrado num único tribunal. Também não me foi mostrada uma única peça processual feita por um advogado ou pelo Ministério Público, nada, zero. Se eu acabei o curso de direito sem estar preparado para ser advogado, imagino que haja pessoas que acabaram o curso de comunicação sem estar preparadas para ser jornalistas.

JC: Acho que já respondeu um pouco à pergunta, mas acha que, atualmente, a escolha do curso é um fator importante para exercer a profissão de jornalista?

MP: Eu não dou importância a essa escolha. E acho que falta no jornalismo português (e não só) maior diversidade. Faltam cabeças que consigam pensar e olhar para os problemas de maneira diferente. A forma como alguém que tem formação em Direito, ou em Economia, ou em Engenharia, olha para um problema jornalístico e editorial é diferente e é bom ter isso. Uma das coisas que mais falta nos faz no jornalismo é ter pessoas que saibam fazer tratamento bruto de dados, por exemplo. E isso não se aprende ao nível de que precisamos num curso de jornalismo. Nós precisamos de pessoas que tenham passado por uma Faculdade de Direito, para ajudarem o jornal a olhar para questões que têm a ver com Direito. Para nós, é essencial ter pessoas com uma maior especialização na área da Economia, para olharem para orçamentos e decisões económicas dos governos, e que tenham capacidade para falar com especialistas e fazer as perguntas certas. O jornalismo não consiste só em saber escrever um texto jornalisticamente, acho que isso se aprende com relativa facilidade, requer pessoas inteligentes, capazes e informadas, porque um jornalista tem que ter a capacidade de confrontar um ministro, o CEO de uma empresa, ou o autor de um relatório sobre um tema qualquer. Claro que um jornalista não sabe tudo, mas dentro de cada jornal temos que ter pessoas com a capacidade de serem capazes em determinada área. Quanto mais diversas as formações, melhor.

JC: Em relação ao jornalismo propriamente dito, consegue explicar como é que é o processo de construir uma peça jornalística de investigação de qualidade? Como é que começa e como é que se desenvolve?

MP: É muito variado. Há um preconceito que existe, fora do jornalismo, em relação ao jornalismo de investigação que consiste na ideia de  que por trás de uma investigação há uma conspiração. No fundo, olham sempre para os jornalistas como instrumentos das ambições vinganças de terceiros, que entregam um dossier com tudo feito e que depois os jornalistas só escrevem. Para terem uma ideia, a última investigação com mais impacto que nós fizemos tem a ver com a questão da empresa do ministro Pedro Nuno Santos, que ele tem juntamente com a família. Foi muito simples, não há teoria da conspiração nenhuma. Com a chegada de um governo novo, os ministros tiveram que entregar uma declaração de rendimentos e de interesses. Na declaração do ministro Pedro Nuno Santos vinha a participação numa empresa, o jornalista foi pegar naquela empresa para ver se tinha contratos, e depois foi investigar.

Ninguém soprou, ninguém insinuou, ninguém sussurrou, ninguém disse nada, ninguém entregou um dossier. É um trabalho normal ir investigar as informações que estão no espaço público, para tentar perceber se há alguma relevante. Há também muita coisa que fica pelo caminho, por exemplo, nesta questão das incompatibilidades, que tem estado muito nos jornais. Houve notícias que saíram noutros jornais, que nós tínhamos, e que optámos por não publicar porque achámos que não tinham razão de ser. Depois, há coisas, claro, que surgem de rumores e de comentários. Às vezes alguém diz alguma coisa e nós depois vamos investigar para ver se aquilo é sólido ou não. Às vezes acontece, como antigamente, chegar uma  carta num envelope sem remetente, escrito em computador, com uma série de dados que nós depois vamos verificar para ver se fazem sentido, se estão certos ou errados, se têm relevância ou não. Isso também existe. É preciso ir atrás da informação, o que pode ser mais ou menos difícil, dado que a informação pode ser pública ou não. Em Portugal, há uma cultura de secretismo – as entidades públicas não respondem a perguntas que são feitas, ou respondem de forma vaga – por isso dá mais trabalho, na medida em que é preciso ir atrás das confirmações.

JC: Muitas vezes,  em reportagens sobre estes temas, os jornalistas trazem pessoas envolvidas, por exemplo, em conflitos, e que passaram na pele por situações que estão a ser abordadas. Pessoas cuja voz é distorcida, ou cuja cara é tapada. Como é que um jornalista procede a abordar estas pessoas e como é que seleciona quem trazer para este tipo de peças?

MP: Há um trabalho de criar confiança. Nós fizemos o primeiro grande trabalho sobre abusos sexuais na igreja. Aqui em Portugal ainda estávamos na fase do “isto só acontece lá fora”, então fomos falar com um jornalista nosso que trata temas da religião, o João Francisco Gomes, e fomos falar também com a Sónia Simões, que é grande repórter e que cobre mais temas da Justiça. Eles estiveram três meses só a investigar casos em que pudesse ter havido abusos na igreja. Tiveram que criar relações de confiança com as pessoas. Afinal de contas, nós estamos a pedir a alguém que nos conte e dê autorização para publicar a coisa mais pessoal e dolorosa que lhes aconteceu na vida, e é preciso fazer um trabalho de explicar quem é que somos, o que é que queremos fazer, como é que fazemos as coisas. Depois, muitas vezes, é preciso pesar a questão das vozes, os nomes que são dados ou não, as vozes que são distorcidas, se aparece foto ou não. É feito um equilíbrio entre aquilo que é absolutamente essencial para contar uma história, e aquilo que entra em conflito com outros interesses, como a segurança das pessoas, porque há casos em que a segurança das pessoas pode ficar em causa. É algo muito importante no jornalismo.

JC: Portanto, frequentemente são as pessoas que vos abordam e não o contrário, neste tipo de casos.

MP: Varia muito mas sim, às vezes. No caso dos abusos, uma das coisas que nós fizemos foi colocar nos nossos artigos um formulário para que as pessoas que quisessem nos pudessem enviar a sua história, ou dicas e histórias que conhecessem. Portanto, nesse caso, nós tivemos pessoas que vieram ter connosco a dizer “isto aconteceu comigo, e eu queria contar-vos”.  Agora, obviamente que isso também não é suficiente. É preciso confirmar e reconfirmar as informações todas. As coisas têm que estar sólidas e, portanto, há todo um trabalho de solidificação da informação que pode demorar muitos meses.

JC: Queria falar um bocadinho sobre a biografia que publicou em 2010 sobre Francisco Sá Carneiro, o primeiro-ministro português que foi vitimado em 1980 num acidente aéreo. Nas notas finais fala um pouco sobre o processo de escrita, partilhando que só o período de investigação lhe demorou cerca de 5 anos. De onde é que lhe surgiu inicialmente a ideia de escrever uma biografia sobre Francisco Sá Carneiro? 

MP: Eu não sei muito bem porquê, mas eu gosto muito de biografias e sempre quis fazer uma biografia do Sá Carneiro. Eu demorei 5 anos porque estava a trabalhar ao mesmo tempo e também porque fiz ainda bastantes entrevistas.

JC: Aqui no final diz que foram 70, pelo menos é o número que indica. 

MP: 70? Já não me lembrava de serem tantas. Algumas são muito longas, por exemplo a entrevista com a mulher de Sá Carneiro e a entrevista com a sua secretária, Conceição Monteiro, foram as duas muito longas.

JC: Sobre a entrevista com Conceição Monteiro diz que foi um processo de várias dezenas de horas, que envolveu reconstruir rotinas, diálogos.

MP: Foi porque Conceição Monteiro guardava, e guarda, as agendas de Sá Carneiro. Essas agendas permitem saber exatamente o que é que ele fez em cada dia, que reuniões teve com quem, com quem almoçou, a casa de quem é que foi. Portanto, eu estive com ela a seguir dia a dia as agendas para ver exatamente o que é que ele tinha feito.      

Além disso, ela tinha também o espólio todo dele, que contém muitos documentos, e que depois ofereceu ao José Pacheco Pereira. Por essa razão uma parte substancial está no arquivo da Ephemera. Se nós formos a ver ele esteve muito pouco tempo na política. 

JC: Sim, pouco mais de seis anos durante o pós-revolução.

MP: Isto é ridículo, nem sete anos esteve na política em democracia. E, quando eu digo na política não é no governo, é na política no geral. Foi uma das coisas que me fez mais impressão, só que estava a acontecer muita coisa. Ele entra na  política durante a transição do salazarismo para o marcelismo, com toda essa agitação, depois passa pelo processo revolucionário, e ainda o processo pós-PREC, com a sua ida para o governo. São sete anos que parecem quarenta. Por isso, deu um bocadinho mais de trabalho. Como eu trabalhava, não conseguia estar o dia todo, só aos fins de semana.

JC: Uma das coisas que eu noto mais na sua biografia de Francisco Sá Carneiro é uma diferença em estilo de escrita comparativamente a outras biografias políticas. Escreve os diálogos quase como se de um romance se tratasse e não de uma biografia. Parece quase que esteve lá e presenciou as conversas. Como é que conseguiu reconstruir os diálogos?

MP: Há pessoas que criticam isso no livro, porque dizem que é impossível reconstituir diálogos. Porque, por exemplo, nós estamos aqui a falar e, se calhar, daqui a duas horas, se algum de nós quiser reconstituir exatamente aquilo que disse, é complicado. No entanto, é possível reconstituir diálogos com um grau confortável de rigor. Por exemplo, há notas contemporâneas. Há pessoas que, quando as coisas estão a acontecer, tomam nota, imediatamente. E, portanto, quando nós vamos procurar as notas contemporâneas, muitas vezes estão ali transcrições de diálogos. Depois, há documentos em que também há transcrições de diálogos, como atas, por exemplo. Depois, há outras reconstituições de diálogos. Quando nós falamos com alguém que comprovadamente tem uma excelente memória, como, por exemplo, Conceição Monteiro, nós tínhamos ali as agendas ano a ano de Sá Carneiro. Eu dizia, por exemplo: “Mas, portanto, ele, no dia 5 de dezembro, teve uma reunião com a Comissão Política sobre a reforma agrária.”.       

E Conceição Monteiro diz que não foi no dia 5, foi no dia 4. E eu fui à agenda e foi de facto no dia 4. Outro exemplo: nas entrevistas mais longas, eu falava mais do que uma vez sobre alguns temas. E a descrição não só era sempre coerente, como estava exatamente como eu tinha visto num documento contemporâneo. Portanto, estas coisas permitem reconstituir diálogos (que é uma coisa muito difícil) com rigor. Outro ponto, que tem a ver com essa pergunta, é o tipo de livro que queremos escrever. Outra das críticas que também foi feita ao livro é que não tem tese. Os livros de História, normalmente, têm uma tese. Esta biografia não tem necessariamente uma tese. O que eu quis foi reconstituir aqueles anos com o máximo de fidelidade e detalhe possível. E depois, as pessoas, lendo, podem tirar algumas conclusões. Eu perdi muito tempo a tentar ter o máximo de diálogos possível. Por exemplo, as pessoas perguntam como é que é possível agora reconstituir os diálogos quando o Sá Carneiro voltou de Espanha e houve uma reunião de partido absolutamente tumultuosa, que durou até madrugada, em que ele foi atacado por imensa gente. O Sá Carneiro tomou notas à mão, ele ouvia as pessoas e anotava tudo para depois poder dar uma resposta. Essas notas manuscritas estão com a Conceição Monteiro.    

Podemos sempre dizer “ah, o Sá Carneiro tomou essa nota, mas a pessoa não disse bem isso”. Com certeza,  podemos sempre dizer isso. Mas era alguém que estava ali, estava presente, e que tinha todo o interesse em tomar notas com rigor, porque eram as notas em que ia basear a resposta que ia dar às pessoas. O Sá Carneiro, muitas vezes, quando acabava reuniões ou coisas desse género, ia rasgar as notas e deitar fora. A Conceição Monteiro dizia-lhe sempre “não rasgue isso, dê cá, dê cá, que eu guardo. Um dia pode ser preciso.” E, de facto, foi preciso. Deu jeito. Portanto, a reconstituição dos diálogos não surge do ar. 

JC: Falando também um pouco sobre a atualidade jornalística do país, o Observador aparece em 2015, relativamente tarde, comparativamente com aqueles que são os maiores jornais nacionais. Além de ser um jornal exclusivamente online, o que é que acha que diferencia mais o estilo de trabalho e o estilo jornalístico do Observador face, por exemplo, ao Expresso ou ao Público?

MP: Aquilo que o Observador trouxe foi aquela aceleração da qual falávamos inicialmente. Até o Observador surgir, nós ainda estávamos nos ciclos das televisões, que não era hora a hora, mas andava lá perto. Muitos jornais ainda estavam no ciclo diário.       

Nós trouxemos uma aceleração para uma cobertura ao minuto dos acontecimentos. E isso muda muito. Hoje em dia cobrimos uma série de acontecimentos através de liveblogs. Ou seja, qualquer coisa acontece, vai imediatamente para o liveblog, depois nós fazemos artigos mais longos sobre o acontecimento. Ainda assim, há de facto uma cobertura e isso criou, nas pessoas que consomem informação, uma necessidade de ter imediatamente acesso à informação. Essa foi a grande mudança que o jornal trouxe, porque tirou partido desta parte digital, que permite precisamente a rapidez. Ao mesmo tempo, sempre tivemos na cabeça a necessidade de ter um equilíbrio entre essa rapidez e o jornalismo mais longo. Já falei da investigação de abusos sexuais na igreja, que demorou três meses, mas por exemplo agora acabámos de ganhar o maior prémio latino-americano de jornalismo, que é o prémio Gabo, com uma reportagem na Ucrânia que demorou um mês a fazer. Temos esta preocupação de não nos deixarmos consumir pelo minuto a minuto, que é também uma parte muito importante, e tirar o máximo de partido. O pior que nós podemos fazer é um jornal “em papel”, mas digital. Há que tentar verdadeiramente tirar partido do facto de ser digital. Acho que acelerámos esta transição no jornalismo português.

JC: O que é que acha que piorou mais, ou o que é que acha que mudou para pior, no jornalismo nacional nos últimos 30 anos?

MP: Em primeiro lugar, eu não tenho de maneira nenhuma aquela ideia (que existe muitas vezes e é um reflexo natural) de achar que “antigamente é que era”. Eu não tenho isso porque, por causa de livros como o do Sá Carneiro, tive que ir ler. Uma das bases de pesquisa para este livro e para outros é ler os jornais da época. E uma das coisas que eu percebi lendo os jornais da época era que nós fazíamos um jornalismo mesmo muito mau a vários níveis. Isto porque durante muito tempo tivemos um jornalismo militante, que era uma extensão da política, de maneira que uma pessoa estava a ler um jornal e na realidade estava a ler um panfleto. Além disso, os recursos também eram limitados. Eu lembro-me de uma reportagem que queria começar com uma citação da “Alice No País das Maravilhas”, uma coisa mesmo muito pedante. E, então, eu tive que sair da redação para ir a uma livraria para ver se havia um livro para tirar uma citação. Hoje, faria isso em 2 minutos com a internet. As pessoas questionam-se muito sobre as redes sociais, pois têm grandes problemas, nomeadamente de incentivo ao sectarismo, que é uma das coisas mais preocupantes hoje em dia. Contudo, dão-nos acesso à informação, e nós hoje em dia conseguimos obter informação a um nível que era totalmente inacessível ao jornalismo português há uma décadas porque não havia os instrumentos, simplesmente não era possível. Portanto, eu acho que as coisas melhoraram muito.       

O que é que piorou? Acho que uma coisa que piorou  foi o negócio dos jornais. Neste momento em que nós estamos a falar, é muito menos rentável. E isso acarreta um problema de atração de talento, porque se os jornais não tiverem a capacidade de pagar bem, não vão conseguir atrair talento. As pessoas olham e pensam, entre ser engenheiro eletrotécnico e ganhar X ou ser jornalista e ganhar X menos Y ou menos Z, eu vou ser engenheiro eletrotécnico, a não ser que goste mesmo muito de fazer jornalismo. Aquilo que os jornais, as rádios e as televisões mais precisam é de jornalistas muito inteligentes, muito informados, muito motivados e com a maior capacidade de saberem tanto ou mais do que as pessoas sobre as quais escrevem. Se perdermos isso, é um problema. 

JC: Um tópico relativamente recente de política não nacional neste caso, que marcou a Europa, foram as eleições na Suécia. Pareceu-me que a cobertura feita pela comunicação social no geral foi pouca, tendo em conta o resultado sem precedentes e preocupante que a extrema direita alcançou.Concorda? Se sim, que razões aponta para essa falta de cobertura?

MP: Acho que há três razões, umas mais prosaicas do que outras. Em primeiro lugar, porque estava a acontecer muita coisa ao mesmo tempo e não é possível chegar a tudo. Às vezes nós temos duas, três, quatro, cinco coisas a acontecer em determinada área ao mesmo tempo e não há jornalistas suficientes. Não é possível e é preciso fazer escolhas. Depois há uma coisa muito prosaica. Na Suécia eles falam sueco e isso dificulta muito a capacidade de à distância seguir bem as coisas. Para te dar uma ideia, uma das primeiras coisas que nós fizemos quando começou a guerra na Ucrânia e na Rússia foi arranjar uma tradutora de russo e uma tradutora de ucraniano. Uma das razões pelas quais alguns dos trabalhos que nós fizemos na Ucrânia demoraram tanto tempo foi porque os jornalistas estavam lá, faziam as entrevistas, tinha uma pessoa com eles que traduzia mais ou menos o que as pessoas estavam a dizer e depois aqui em Lisboa nós fomos traduzir tudo para termos a certeza do que é que estava a ser dito e termos a certeza de que era mesmo aquilo.        Essa necessidade não existe quando nós temos eleições onde se fala inglês, francês ou espanhol, e isso infelizmente também condiciona porque limita a margem de manobra, a flexibilidade. 

É muito mais fácil de cobrir espontaneamente um fenómeno que se está a passar no Reino Unido onde nós conseguimos ler 4, 5, 6 jornais e conseguimos falar com pessoas. Na Suécia, infelizmente, não é assim. Atenção, eu não estou a dizer que isso é uma limitação para tudo. Nós estamos agora a fazer um grande trabalho sobre o que é que se está a passar agora nos Países Baixos e vamos falar com muita gente. Estou a dizer que limita a capacidade de reação rápida. Agora sim, aquilo que aconteceu na Suécia surpreendeu muita gente, algo que reconheço. É verdade que em Portugal ainda hoje não cobrimos suficientemente o fenómeno para saber o que está a acontecer e o que aconteceu.

JC: Logo a seguir, tivemos as eleições em Itália com um resultado que não diria ser semelhante, mas com o mesmo tipo de narrativa acoplada. Acha que estas duas eleições fazem parte do mesmo fenómeno e que as suas causas são semelhantes, ou que são coisas separadas?

MP: São dois países muito diferentes, e também o são as razões para os resultados de um país e no outro. Agora, não devemos subestimar o peso do mimetismo. Aquilo que acontece nos Estados Unidos tem, por exemplo, obviamente, um impacto naquilo que se passa em Portugal, mais tarde ou mais cedo. André Ventura, por exemplo, claramente teve como inspiração Matteo Salvini e o seu partido.      

É evidente que, para o Chega, a vitória dos partidos desta área política em Itália ajuda no sentido de poderem dizer “Estão a ver, em Itália eles ganharam e o mundo não acabou, os italianos não tiveram nenhum problema em votar neles”. Por outro lado, estas coisas muitas vezes funcionam por ondas culturais. Cria-se uma onda, neste momento na Europa é à direita, mas em outras alturas foi à esquerda. Quando o Syriza ganhou na Grécia, numa fase inicial isso ajudou, por exemplo, o Bloco de Esquerda em Portugal. Tudo isto provoca fenómenos de mimetismo, de cópia, de habituação, e tem impacto. Agora, eu não diria que o que aconteceu na Suécia ajudou aos resultados na Itália, são realidades muito diferentes.

JC: Já o ouvi dizer numa entrevista que o nosso sistema político no pós-ditadura nunca foi medido a regra e esquadro, ideologicamente falando, ao contrário do que acontece noutros países, e que a culpa disso era do PSD e da sua natureza um pouco ambígua. Acha que isso terá um impacto na maneira como podemos prever o desenvolvimento da política nacional, por exemplo, uma dificuldade em associar Portugal a outras tendências europeias, ou acha que o PSD acaba por se inserir de alguma forma numa certa linha?

MP: Já não sei exatamente qual foi o contexto em que eu disse isso, mas eu por acaso até acho que na prática os eleitores sempre souberam muito bem aquilo que o PSD era, e é. Um partido de direita. Simplificando, é um partido da iniciativa privada, é o partido que quer reduzir o peso do Estado na economia, é um partido que, em termos de costumes, é mais sensível a uma área mais conservadora. Claro, é um partido muito grande, tem muita gente a pensar muita coisa, mas uma das coisas que eu contesto, aliás, é uma tese que diz que o PSD entrou numa deriva. Que antigamente era um partido de esquerda, nos tempos de Sá Carneiro, e que a determinada altura houve uma deriva para a direita. Alguns dizem que a deriva aconteceu com o Cavaco Silva, outros dizem que a deriva aconteceu com o Passos Coelho. Não é verdade, o PSD sempre foi um partido antissocialista. Claro que no PREC e no período evidentemente a seguir ao PREC ninguém podia dizer que era de direita, mas o PSD sempre foi um partido de direita e acho que os eleitores nunca tiveram nenhuma dúvida sobre esse assunto. Se eu disse isso em tempos acho que estava errado.

JC: Portanto considera claramente que Sá Carneiro, apesar do contexto, era um homem de direita? 

MP: Claro, não há nenhuma dúvida sobre isso, mas eu conto uma história no livro que é a seguinte: quando o partido surgiu, o Sá Carneiro preparou as linhas programáticas do partido. Depois, começou a arranjar pessoas para o partido e uma das pessoas que ele foi buscar foi Barbosa de Melo. Barbosa de Melo era um professor de Coimbra, intelectual, então o Sá Carneiro pediu-lhe para ser ele a escrever o programa do partido e entregou-lhe o documento que tinha feito. Disse: “olhe, eu tenho aqui umas bases, veja lá, diga-me o que é que acha disto”. Barbosa de Melo foi para casa ler o programa e passado uns dias ligou o Sá Carneiro e disse “olha eu afinal não vou aderir ao partido e o Sá Carneiro disse “porquê?”, ele disse “Eu estive a ler o documento que me mandou e isto são as bases de um partido liberal, e eu não sou um liberal”, ao que Sá Carneiro respondeu “Opá, ó Barbosa de Melo, esqueça lá isso, faça lá o programa à sua vontade”.        

O instinto de Sá Carneiro era um instinto anti-estatista,  de fornecer ao máximo a iniciativa privada, o que se traduziu, quando ele esteve no governo, numa política de desestatizar ao máximo a economia. O grande conflito que ele teve com o Presidente da República prendeu-se com o facto deste estar permanentemente a boicotar a passagem de uma lei que era chamada “Lei da delimitação dos setores”. Era a lei que definia onde é que a iniciativa privada podia entrar ou não. Foi chumbada uma, duas, três vezes. Ele era completamente anticomunista. Teve um governo cujo grande tema de política externa era combater a União Soviética e o comunismo, e foi um dos governos que mais se destacou no tema do boicote aos jogos olímpicos de 1980. Na altura expulsou diplomatas soviéticos acusados de serem espiões. Enfim, foi tudo uma política de um grande e completo alinhamento anti-União Soviética, foi anticomunista na política externa e, na política interna, conjugada com a abertura à iniciativa privada da economia, e consumação da reversão da reforma agrária. Quer dizer, se isto não é a direita, onde é que está a direita?

JC: Em relação à Lei da delimitação dos setores, li uma biografia sobre o Conselho da Revolução onde estava o Presidente da República e onde se tomavam as decisões finais em relação à aprovação das leis. Consta na Ata do terceiro veto do Conselho da revolução que Ramalho Eanes recomendou fortemente a aprovação da lei. Acha que o grande inimigo político do Sá Carneiro, nessa altura, era o presidente da República, Ramalho Eanes, e não o Conselho da Revolução?

MP: Era o grande sim, mais do que Mário Soares até.

JC: Sim, isso sim, naturalmente.

MP: Aliás, a relação do Sá Carneiro com o Mário Soares nunca foi particularmente hostil. Eles nunca foram inimigos políticos. Estavam no mesmo lado durante o PREC e depois tinham um inimigo comum – o presidente da República, que era quem tinha o poder – sendo que o Conselho da Revolução não serviria de nada sem a força do Presidente da República. Aliás, quando chegámos à campanha de reeleição de Ramalho Eanes, o Mário Soares saiu de líder do PS temporariamente para não fazer campanha por ele.      

Neste período em que o Sá Carneiro está a tentar chegar ao poder, e quando chega ao poder, o presidente é o centro da oposição. Usa o poder constitucional que tem, e usa o Conselho da Revolução para travar e limitar ao máximo o poder de Sá Carneiro. As coisas chegam a um ponto em que eles, a dada altura, não têm reuniões.

JC: Sim, ambas as biografias relatam isso.

MP: Hoje em dia, o Presidente da República e o Primeiro-Ministro reúnem-se todas as semanas. Houve aqui um período longo em que eles apenas trocavam cartas. E, na prática, ele de facto foi o grande travão às reformas que o Sá Carneiro queria fazer no governo.

JC: E acha que a decisão aparentemente definitiva, que Sá Carneiro já tinha tomado antes de morrer,de sair do governo caso Eanes fosse reeleito, não era demasiado irresponsável, acha que era mesmo necessário aquele tipo de radicalismo?

MP: Isso por acaso tem graça, porque foi o que sempre disseram dele. Desde o tempo do Estado Novo, cada vez que ele tomava uma decisão, diziam-lhe isso. Ele era deputado na Assembleia Nacional. Quando percebeu que aquilo não ia a lado nenhum, renunciou ao mandato. As pessoas disseram-lhe “não estás a ser muito radical? É mesmo preciso renunciar?”       

A verdade é que nós vamos ver o que aconteceu a seguir à sua morte e constatamos que foi preciso esperar 5 anos para que se começasse verdadeiramente o processo de abertura da economia à iniciativa privada. Só para as pessoas terem noção, porque hoje em dia é difícil, havia áreas da economia totalmente vedadas à iniciativa privada. A lei dizia que era proibido ter privados a gerir empresas nesta área ou naquela. Por exemplo, a comunicação social, que não era pública nem estatal era uma exceção. Em termos de jornais, era quase tudo do estado. E, de facto, para reverter toda esta situação foi preciso não só cortar os poderes do Presidente na Revisão Constitucional de 82, como passarmos a ter outro Presidente. Portanto, se Sá Carneiro se tivesse mantido Primeiro-Ministro, depois das eleições presidenciais de 80, é possível que aquele mandato que ele ia ter fosse perdido em guerras com o Presidente da República, em que não ia conseguir fazer nada. Ele queria forçar o país a fazer uma escolha.

JC: Uma última pergunta: nós temos um nível de abstenção, como é sabido, muito grande. Este fenómeno, ao contrário do que talvez se poderia esperar, não se reflete no resto da Europa. Olhando para Itália, Inglaterra, Espanha, França, Alemanha, Suécia, podemos ver que em 50 anos a abstenção raramente ultrapassou os 25-35%. Em alguns destes países, raramente ultrapassa os 15%. Porque é que a abstenção em Portugal é tão elevada?

MP: Durante muito tempo, tivemos um problema de cadernos eleitorais. Havia uma parte da abstenção que era falsa – estavam lá mortos. Numa democracia saudável, não votam. Depois, todas essas realidades políticas são muito diferentes umas das outras. Em algumas, por exemplo, há a questão da proximidade. Em Inglaterra, a sensação de proximidade de um eleitor em relação aos eleitos é muito maior. Têm círculos uninominais. E os eleitores são efetivamente ouvidos, não apenas no dia do voto. Tanto em Inglaterra como nos Estados Unidos, há uma cultura grande de escrever ao deputado, ou ao congressista, ou ao senador; e o senador, o congressista e o deputado leem e respondem, senão sabem que podem perder votos junto das comunidades que os elegem. Alguém que queira escrever a um deputado em Portugal escreve para onde? Onde é que está o contacto? Onde é que isso existe? É muito difícil de conseguir. As pessoas, nestes países, sabem qual é o deputado do círculo delas. Noutros, a fragmentação pode ajudar a mobilização, porque temos mais projetos políticos em competição e portanto as pessoas  sentem uma maior identificação e maior mobilização para ir votar.       

Mas eu não me preocupo excessivamente com a abstenção, no sentido em que a mim não me parece inevitável que a abstenção seja um sinal de desligamento. Eu já me abstive várias vezes e interesso-me pelas coisas. Já houve várias razões para me abster. A maior parte das vezes, foi porque frequentemente o voto é a escolha do mal menor e eu não me sinto mobilizado para escolher o mal menor. Acho que o principal problema da nossa democracia não é a abstenção, é o que se passa entre os atos eleitorais, é não haver uma cultura de escrutínio, de responsabilização e de exigência dos eleitores em relação aos eleitos. A sensação que eu tenho é que desistiram de ser exigentes, desistiram de escrutinar e têm muito aquela ideia do “são todos iguais”, que é uma ideia muito perigosa, e a ideia do “não vale a pena”, que é igualmente perigosa. Isso, a mim, é o que mais me preocupa na democracia portuguesa. Acho que há muitas razões para a abstenção, e não são necessariamente todas preocupantes. 

JC: Muito obrigado por ter vindo.

MP: O prazer é meu.

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