Autoria: Miguel Ferreira (MEGI)
Abrir célula, inserir “=SOMARPRODUTO(G5:G14;H5:H14)”, e fez-se magia… Filipe já tinha mais uma tabela em Excel pronta para inserir no relatório de gestão que tinha de entregar até ao final da semana à Gestora Regional da Empresa. Mal teve tempo de respirar quando ouviu ao fundo do corredor o João perguntar se alguém ia ao café, o que o fez esboçar um sorriso porque eram dez e meia em ponto e essa era a única coisa na qual o João era religiosamente pontual.
Filipe ia aproveitar a pausa do restante pessoal para tomar o seu snack do meio da manhã, quando recebe um telefonema da Gestora Regional a referir que por força do aumento de casos COVID a empresa ia voltar ao regime de 50/50, em que metade fazia teletrabalho, e metade trabalho presencial. Ora, para o Filipe era uma excelente notícia, e como a sua esposa também estava em teletrabalho essa semana, pediu ao seu Adjunto para ficar presencialmente no primeiro turno e começou a arrumar as coisas para ir a casa.
Antes de iniciar a sua marcha ligou o telemóvel ao carro e escolheu a playlist típica que o iria acompanhar durante os 30 minutos seguintes até Venda do Pinheiro. Filipe chamava a esta playlist “o cabaz de sensações”, porque, apesar de poder começar com o Toy a dizer que ia fazer «hum hum» toda a noite, pelo meio estava Daddy Yankee a dizer que as coisas tinham de ser feitas «con calma», só para de repente estar o Freddie Mercury a pedir que não o parassem agora. No meio desta adrenalina musical que o acompanhou durante a A8, Filipe nem chegou a ligar à sua Querida Paula a dizer que estava a chegar a casa.
Assim que abriu a porta de casa, Filipe sentiu movimentos bruscos vindos do quarto. Ficou preocupado e chama logo por Paula, que responde de imediato a referir que estava lá em cima. Isso deixou-o logo mais relaxado, e ao chegar ao quarto deparou-se com a cama desfeita e a Paula de robe.
– Estou a ver que o teletrabalho hoje está a render muito… – comentou Filipe em tom de brincadeira.
– Já se sabe que ao trabalhar no computador deitada na cama, se tudo correr bem dá merda, bastam dez minutos e não aguento com o sono… Mas também ontem à noite consegui adiantar bastante trabalho, por isso só me fez bem desligar o PC e passar um bocado pelas brasas. – respondeu Paula enquanto fazia a cama.
Paula era gestora financeira na Câmara Municipal de Mafra. Ela e Filipe estudaram juntos no Instituto Superior de Economia e Gestão, em Lisboa, mas depois cada um se especializou em áreas diferentes: ele em gestão de empresas, e ela em administração pública. Paula perguntou de seguida se houve algum problema para ter chegado mais cedo, ao qual Filipe explicou que também vão começar a aplicar o regime de teletrabalho a 50/50 na sua empresa, pelo que daí para a frente ela já não se ia sentir tão sozinha.
– Bem, também daqui até à hora do almoço não vale a pena estar a adiantar nenhum trabalho, por isso vou mas é dar uma corridinha para esticar as pernas e depois começo a montar o estaminé. – comentou Filipe enquanto foi ao gavetão buscar uns calções e uma t-shirt e começava a tirar a roupa que tinha vestida.
De seguida Filipe pegou num cabide que estava desarrumado em cima de uma cadeira, colocou lá as suas calças e camisa e dirigiu-se ao armário para arrumar. De imediato foi interrompido por Paula, “deixa que eu trato disso, vai-te calçar rápido porque não tarda vai começar a chover”, referiu ela.
Enquanto Filipe já estava junto à sapateira para se calçar, Paula desceu e começou a perguntar como estava a correr a candidatura para o cargo de Gestor Regional, uma vez que a atual Gestora em princípio seria promovida e já tinham começado a sondar candidatos.
– Ainda não houve um pedido formal para candidaturas, – apontou Filipe – mas acho que o gestor do ramo de Setúbal é o preferido para tomar o cargo. É claro que isso não me vai impedir de mostrar as minhas valências, só que é necessário gerir expetativas porque não vai deixar de ser um tiro no escuro…
E escuro era tudo o que via Bruno, fechado no armário do quarto da Paula a vestir-se devagarinho enquanto esperava pela oportunidade para sair. Bruno já conhecia bem Paula desde o Secundário em Aveiro. Foram sempre sendo amigos coloridos, e apenas deixaram de se encontrar casualmente quando a relação de Paula com Filipe começou a ficar séria. Porém, a colocação de Bruno como militar em Mafra, o tempo excessivo passado em casa por Paula devido ao teletrabalho, e o maior foco de Filipe na vida profissional para conseguir a promoção, resultaram num cocktail capaz de gerar a ignição de uma chama antiga que se voltou a acender.
Pouco depois de Bruno se ter conseguido vestir dentro do armário, surge um clarão de luz vindo do bolso das calças. Era o seu telemóvel, em que conseguiu ler das notificações uma mensagem de Paula a dizer “VAI”. Bruno abre lentamente a porta do armário, calça as sapatilhas dele que estavam debaixo da cama, e começa a sair pela janela do quarto. Desce o telhado com o cuidado de não fazer barulho, apoia-se nas caleiras e deixa-se cair. Durante a queda fez tombar uma estatueta de duende que fazia parte das decorações de Natal da casa, mas ignora e sai da propriedade em passo acelerado.
Pouco depois estava Filipe a sair da porta de casa para iniciar o seu treino, que se atrasou uns minutos porque a Paula começou subitamente a pedir afetos antes da sua saída e estiveram uns momentos a trocar abraços e palavras bonitas. Assim que o sinal de GPS ficou disponível e ia carregar no “Start”, Filipe repara no Duende tombado e vai ajustar a sua posição, momento esse em que é surpreendido por um estrondo vindo do passeio: um carro tinha acabado de se despistar e embater no muro do vizinho.
Filipe corre de imediato para auxiliar a condutora: era uma jovem de trinta anos que tinha adormecido ao volante. Ela referiu que era assistente de bordo, vinda de um voo de 12 horas, e como queria ir direta para casa nem chegou a descansar antes de pegar no carro. Ela não tinha lesões visíveis, pelo que Filipe a auxiliou a acionar o reboque e recomendou que ela fosse observada por um profissional de saúde para garantir que estava mesmo tudo bem com ela.
Depois de a situação ficar resolvida, Filipe ignora o treino que ficou pendente e volta para casa, abraça Paula como nunca a abraçara no passado, e após um saudoso suspiro, expressa o seguinte:
– Eu ia passar pelo exato sítio onde aquele carro se despistou se não tivesse ido atrás para compor aquele Duende que na semana passada te tinha dito que era ridículo colocar no nosso jardim. Se não fosse aquela distração talvez neste momento não estaria aqui contigo; talvez neste momento não estaria sequer neste mundo.
“Queixo-me tantas vezes de ter azar nisto ou naquilo. Estou sempre a chorar que algo podia ter corrido melhor, ou que algo poderia ter acontecido de maneira diferente. Na verdade, sou um privilegiado nesta vida e não tenho noção da verdadeira sorte que tenho, e sobretudo da sorte que tenho em te ter ao meu lado. Obrigado por tudo Paula, amo-te”.
E é esta a história que tenho aqui para vocês. Tento sempre falar-vos de tudo um pouco, mas depois de lerem com atenção afinal nunca é nada de especial. Apenas foi um pretexto para partilhar algo que há uns bons anos o meu Tio Faustino me disse, que “nos dias que correm, até para ser corno é preciso ter sorte”.