Grau Certo de Esquecimento

Autoria: João Dinis Álvares (MEFT)

A questão do esquecimento é algo intrínseco à repetição da história, do qual seria pouco humilde dizer-se conseguirmo-nos livrar. Porém, talvez seja interessante ver até que ponto nos devemos esquecer das coisas. Ou não. 

Deparei-me recentemente com a questão sobre qual é o grau certo de esquecimento ou desapego das coisas. Antes de sequer ponderar sobre se é possível chegar a uma conclusão, vou esclarecer a que me refiro. Um aviso, qualquer aplicação do verbo “ser” deve ser tomada como um “provavelmente deve ser”.

Quando experienciamos algo, principalmente algo no qual tenhamos participado e no qual tenhamos investido algum do nosso tempo, é costume haver uma certa ligação emocional com esse mesmo algo, uma espécie de melancolia que, por vezes, com o tempo se intensifica. É costume ouvir os mais velhos repetirem as mesmas histórias vezes e vezes sem conta, sem acrescentar nenhuma outra nova, talvez por falta de motivação para tal. Porém, esta repetição não é um processo repentino, é algo que se vai criando com a idade, há certas histórias que acabamos por contar e que achamos que refletem a nossa personalidade e é com elas que nos apresentamos aos outros. Sobre a escolha das histórias que decidimos repetir vezes sem conta, também é algo que vale a pena discutir, mas talvez não para já.

A minha questão é, portanto, saber se o apego àquilo que já vivenciámos é um fator determinante para a nossa vontade de vivenciar outras aventuras. Antes de esclarecida a questão, há aquela que pressupõe esta, a de que realmente deve haver uma ligação, entre ambas, de causalidade, ou seja, a de que o apego às histórias que contamos nos retira a vontade de viver outras.

Tendo em conta que a maior parte da nossa vivência é composta pela repetição das mesmas coisas, em condições ligeiramente diferentes – e parece-me ser isso mesmo que nos permite viver a vida como ela é, caso contrário, se tudo fosse diferente de cada vez que experienciássemos algo, era impossível a previsão e a sobrevivência – a passagem por vários acontecimentos que nos marcaram mais profundamente trazem com isso também aquilo que se chama a experiência de vida. Esta prepara-nos para eventos futuros e dá-nos uma maneira de tentar prever o futuro de problemas ainda por vir. Ou seja, quando uma situação semelhante se passar, já a iremos abordar de uma maneira diferente, mais refletida, e que já não trará tanta surpresa assim. Ou seja, não deixará tanta marca e será facilmente esquecida. 

Por esse motivo, será mais difícil também metermo-nos numa situação extraordinária no futuro, que nos levaria a fazer algo extraordinário, e, por isso, deixar-nos-ia a marca. Parece-me que, com a idade, há uma tendência para nem tanto de parar de experienciar coisas, mas sim de enfrentar os eventos de uma maneira mais calma, que faz com que não haja algo marcante nelas. Isso é mais notório quando algo de grave acontece a uma pessoa e todos sabem o nome da vítima –  se acontecer a milhares de pessoas, os seus nomes acabam por se perder e o que interessa é o número. A repetição das ações retira-lhes a sua importância, algo que se reflete muitas vezes numa vida rotineira, da qual é típico querer se escapar. Tudo isto acaba por ser uma liberdade frustrada que se desinteressa por algo a que já se habituou, mas que é apenas uma ideia.

Não me querendo alongar mais nesta questão antes daquela que me tem atormentado, diria que se conclui que há uma ligação que se consegue fornecer entre a vivência e a passagem por ações e que estas vão diminuindo em número com a idade. Agora, será que não nos apegarmos demasiado ao que já vivemos acabará por nos levar a ter uma maior vivência?

Ter passado por várias coisas não implica que se tenha experienciado muito, especialmente se estas coisas forem semelhantes entre si. Para além disso, se forem muito semelhantes, acabarão por criar uma ideia falsa de unidade e repetição do mundo que nos pode levar a tomar posições erradas ou, pelo menos, não completamente informadas. Também convém adicionar que muitas vezes se tomam decisões que concernem as ações que nos predispomos a fazer, baseadas apenas num pequeno acontecimento que nos deu uma visão errada do que esperar dessas ações. O que quero dizer com isto é o seguinte: vamos pela primeira vez a um determinado país, várias pessoas com quem falamos desse país são rudes para nós e talvez se conclua que todas as pessoas daquele país são semelhantes. Por esse motivo, quando estivermos numa situação em que tenhamos de, por exemplo, escolher entre criar uma amizade com uma pessoa desse país ou de outro, talvez tenhamos a inclinação, mesmo que inconsciente, de escolher a pessoa do outro país. Ou seja, acabaremos por não contactar com mais pessoas desse país e a ideia que temos dele não evoluirá porque nos recusamos a experienciar algo de novo, com base na nossa experiência antiga. O racismo e a xenofobia e todos os problemas de fobia acabam por vir daí, de uma vivência numa bolha que se cria à volta da pessoa.

Dito isto, parece-me haver motivo suficiente para dizer que nos devemos esquecer ou desapegar do que vivemos até um certo grau. Digo até um certo grau pois o desapego de todas as experiências passadas acabará por nos tornar insensatos, do ponto de vista da vivência: não conseguiremos tomar decisões mais acertadas se não houver algo já marcado na nossa consciência que nos informe sobre o que devemos fazer.

Por agora, a questão em definir qual o grau de apego que devemos ter ao passado parece ser algo demasiado complicado, ou talvez até impossível. Parece que teria de estar a especificar cada caso, um a um, e isso indica que a questão que eu próprio fiz me leva a tomar uma posição demasiado binária sobre o assunto. A solução disto, tanto quanto me consigo esforçar em pensar, parece-me ser uma união dos dois, ou seja, um apego desapegado. O que é que quero dizer com isto?

É, de facto, importante não esquecer o passado, mas não como determinante das ações que se tomam no futuro só por si. Felizmente, temos também a razão, que nos permite inquirir mais sobre as ações do passado para além do que aconteceu. No caso de uma das pessoas daquele país que visitámos pela primeira vez, facilmente conseguíamos imaginar que essa pessoa poderia ter acabado de ser despedida do trabalho ou acabara de levar uma reprimenda por parte do seu chefe. Nos casos em que isso possa acontecer, em que o decurso das coisas pode ter tido uma origem diferente do que aquela que a razão, à primeira, se predispõe a acreditar, não me parece justo podermos justificar as ações futuras com base nisso. Ou seja, é bom lembrar, mas, acima de tudo ter noção, de que as coisas, principalmente nestes momentos em que não é possível analisar tudo, podem não ser da mesma maneira que somos levados a acreditar. Acaba por ser um apego não orgulhoso ao passado. Claro que se pode argumentar que as coisas nunca serão dadas exatamente nas mesmas condições, o que é verdade, mas como seres humanos há um certo e determinado número limitado de ações que podemos tomar quando em condições semelhantes, o que acaba por dar algum grau de determinação ao que fazemos, grau de previsibilidade tal que aumenta com o maior conhecimento das condições da pessoa em si, neste caso.

Dito isto, é bom que haja algo dentro de nós que esteja pronto para que as coisas aconteçam tal como aconteceram anteriormente, ou seja, que já sabe como atuar caso tudo se repita. Porém, não nos deve condicionar as ações futuras quando não estamos certos dos motivos das ações passadas.

Em termos teóricos, essa é a minha conclusão. Em termos materiais, há coisas do passado que nos lembram essas mesmas ações. Por exemplo, o presente de um grande amigo: por mais que o presente em si possa não ser grande, foi dado por esse amigo. Neste caso, penso que ninguém deitaria o presente fora, afinal, é uma memória de bons tempos. Porém, com o acumular de várias coisas do género, o que fazer? Quais delas deitar fora, quando se tiver de escolher? Haverá alguma hierarquia nas coisas que devemos guardar connosco? Haverá algum limite de coisas que devemos ter connosco, de modo a que lhes possamos dar o verdadeiro valor? Devemos também guardar as coisas que nos lembram uma altura pior? Aristóteles e Montaigne falavam bastante disso, no que tocava à amizade.

Penso que, aqui, a questão pode entrar mais num fundamento sociológico ou até mesmo puramente psicológico. Aliás, primeiro talvez valesse a pena responder à pergunta de porque é que se guardam as coisas em primeiro lugar. Um livro é apenas e só um livro, mas se for oferecido por alguém, é o livro que aquela pessoa ofereceu. Dar um livro que se comprou é mais fácil do que dar um livro que outra pessoa ofereceu, na medida em que é aquele exato livro que nos traz à memória a associação com a pessoa com quem temos algum laço sentimental. Aquele livro que, por exemplo, uma vez deixámos cair numa poça de água e mesmo assim arranjámos maneira de o secar e deixá-lo legível e continuámos a lê-lo traz-lhe uma história associada. Há um peso sentimental para com as coisas, que está relacionado com as histórias por trás dos objetos e é dessas histórias que a personalidade é feita. São as ações passadas que dão um certo grau de previsibilidade da nossa parte no futuro, ou seja, são as histórias que temos para contar que queremos que nos definam, apesar de não achar que necessariamente nos definam mesmo. Afinal, contamos as histórias que queremos, que achamos que vão ter um certo efeito na outra pessoa, adequado ao nosso desejo e à situação. Ou seja, a retenção de objetos interligados com a nossa história é parte da construção do ego, são objetos que têm de ser exatamente aqueles e não podem ser quaisquer outros, por motivos de poder sobre nós próprios ou uma busca pela liberdade própria. É por esse mesmo motivo que, em instituições de correção, asilos e prisões, se retiram todos os objetos que o paciente ou prisioneiro possui, de modo a que não tenha nenhuma ligação sentimental com nada do que possui e, dessa forma, destrói-se o seu ego e toda a força, talvez irracional ou subconsciente, que tem para lutar contra o sistema que lhe está a ser imposto, acaba por desvanecer. É substituída por uma frustração que acaba por levar a uma grande reincidência dos prisioneiros, fator que põe em causa a própria missão das prisões, a de reinserir na sociedade aqueles que lá são colocados.

A pergunta de porque é que guardamos coisas, em primeiro lugar, parece-me respondida. Agora, vem a questão do quanto é que se deve guardar. Tal como em todas as relações sentimentais, não podem ser infinitas ou em grande número, caso contrário é impossível alimentar todas ao mesmo tempo e há um cansaço associado a ter tantas que acaba por destruí-las. Obviamente, com objetos, não temos de providenciar algo de volta, eles podem só lá ficar à nossa espera. Porém, nem todos os objetos carregam histórias tão marcantes associadas a eles. Dito isto, quando é que se pode mandar fora algo que faz parte da nossa história, que de alguma forma constrói o nosso ego?

Não se trata de implementar uma lei moral, à questão do “pode” não me cabe responder. No entanto, deve-se conseguir arranjar uma motivação suficiente para perceber porque é que se manda algo fora. Isto acaba por acontecer especialmente quando se trata de algo com o qual o presente “eu” não se identifica e quer, por isso, desfazer-se de algo que saberia que ia mostrar uma ideia diferente da que gostaria de dar de si aos outros. É costume preferir-se muitas vezes referir-se às histórias, com as quais já não nos identificamos, de uma maneira distanciada, retirando-lhes a realidade de esse objeto existir mesmo. Assim, a ideia na cabeça daqueles que nos ouvem não ficará tão marcada, não terá uma ideia concreta daquilo com o qual já não nos identificamos e, por esse mesmo motivo, ficará apenas com o conceito dessa história, muito mais facilmente esquecido. Acabamos por trazer a sociologia ao jogo uma vez mais. Menciono as relações com outros, mas o fundamental é a relação de uma pessoa consigo mesma, que é sempre feita no meio de um subconsciente coletivo que influencia as nossas decisões, chegando isto já ao terreno da psicologia analítica.

Parece, portanto, haver motivos fortes para nos desfazermos de algo, por mais que essas mesmas coisas tenham ajudado a construir o nosso ego. Não há uma raiz sólida para o fazermos, está relacionado apenas com a ideia que queremos contar de nós para nós mesmos e para os outros. Mas, em si, não há nada de objetivamente errado com o nosso ego. Poder-se-ia ir mais fundo e perguntar se, mesmo com isto em mente, deveríamos manter estes objetos com os quais já não nos identificamos e a resposta a essa questão não parece assim tão fácil. Se continuarmos sempre sob a pressão de querer mostrar aos outros e a nós mesmos sob um determinado espelho, o peso consciente das coisas com as quais não nos identificamos aumenta progressivamente com o tempo, o que não me parece muito saudável. Porém, numa crise existencial que diria ser causada por um rever da própria vida e interpretação desta de um ponto de vista mais abstraído e não tão julgador de acordo com as relações sociais, acho que estes objetos continuam a ser importantes, uma vez que é neles que podemos ver a nossa evolução, a construção que foi feita do nosso ego ao longo do tempo e que resultou no presente estado. Essa sensação de ter uma história e de a conseguirmos lembrar, acima de tudo, traz de volta alguma paz pela sua mera existência. Olhando com atenção, é possível delinear os vários momentos que nos levaram ao momento da crise existencial.

Ainda assim, permanece a questão: devemos guardar tudo aquilo com que tenhamos alguma relação sentimental? Por exemplo, no meu caso, os cadernos das disciplinas do secundário, foi algo no qual passei bastante tempo investido durante as aulas, mas conseguiria deitá-los fora sem me achar perdido numa crise existencial. Não será o mesmo com todos, cada um dará importância a coisas diferentes, mas não deixa de indicar que há objetos que se conseguem deitar fora sem muito dano. Acho que a questão sobre o quanto se deve deitar algo fora, algo que tenha tido algum impacto na nossa vida e no nosso ego, é uma troca que só por cada um deve ser avaliada.

Deitar fora é não ter algo que recorde as memórias associadas ao objeto. Talvez consigamos lembrar essas memórias na mesma, mas não tão facilmente. Ou seja, os objetos em si são um momento da história e não podemos errar sobre eles de forma alguma, enquanto que o mero ato de lembrar algo costuma fazê-lo. Não deitar algo fora pode acarretar uma ligação sentimental que pode afetar a imagem que temos de nós mesmos e da possível relação com os outros, para além de que não permite cometer os exageros que a falta de verificação deixa fazer. Não que concorde ou discorde de exageros, mas no proceder de uma história, é muito costume fazer-se, para espantar os que ouvem. Não admira que todas as ditaduras tenham querido apagar a história e recontá-la, porque aí podem contá-la e exagerá-la da maneira que quiserem ao seu povo.

A questão é ainda mais profunda do que isto. Pretende-se viver uma vida mais de factos ou mais de histórias e ficções? Não me parece haver uma resposta certa a isto, nem acho que deva haver.

É bem possível que tenha escrito todo este pequeno ensaio para concluir algo tão vago, mas espero ainda assim ter aberto alguns caminhos para o questionamento futuro, deixando a questão no ar de ser possível haver algo anterior às questões que coloquei que põe em causa tudo o resto do que aqui se disse.

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