Autoria: Ana Oliveira (LEFT)
Neste artigo abordo o problema da irracionalidade, mais precisamente, a origem dos comportamentos acráticos. Trata-se de uma questão filosófica deveras relevante não só para a interpretação da índole da acrasia, como também para a própria compreensão do ser humano, tendo em conta que este tipo de comportamentos é imensamente frequente.
Para a realização desta dissertação e melhor compreensão da mesma, foi necessário basear-me num exemplo com o qual todas as pessoas se pudessem relacionar. Não resistindo à tentação de explorar uma das melhores obras que já li, decidi utilizar a minha mais perturbadora e sórdida leitura, “As Travessuras da Menina Má”, de Mário Vargas Lousa. Neste romance, Ricardo e a “chileninha” reencontram-se e distanciam-se em todos os cantos do mundo. Curiosamente, Ricardo, permanente apaixonado, resolve, eventualmente, priorizar a sua felicidade e apagar da sua vida quem lhe causou tamanhos desgostos. Contra a sua sorte, a “chileninha”, após o encontro mais doloroso para o “borra-botas”, liga-lhe e este acaba por atender o telefone. Pode parecer uma situação meramente banal, contudo, esta retrata um comportamento acrático e, consequentemente, levanta a questão: qual a origem da ação de Ricardo, sendo esta contrária ao seu desejo inicial de ser feliz? De facto, como compreender que se possa escolher de forma ciente e deliberada a opção menos proveitosa?
Primeiramente, é necessário termos presente o conceito de acrasia. De uma maneira geral, o silogismo prático de Aristóteles é aceite para classificar uma ação como racional. Este silogismo parte do princípio de que uma ação só é racional se for intencional. Tal intencionalidade consiste nos desejos (motivações para agir) e crenças (modo como esses desejos podem ser satisfeitos) que nos levam a agir. Assim, um agente age racionalmente se a sua ação obedecer ao seguinte modelo:
- Tem um desejo X
- Tem a crença de que fazer determinada ação A é a melhor maneira de satisfazer o desejo X
- Faz A
Nem todas as criaturas agem segundo a aplicação deste silogismo e, por consequência, surge a acrasia. A acrasia trata-se de um fenómeno caracterizado como “falta de força de vontade”. Na prática, o ser acrata cumpre com os pontos 1 e 2 do silogismo de Aristóteles, mas no que toca ao 3º ponto, não faz A, que constitui, inequivocamente, a conduta correta, ou, então, faz uma outra ação B, que não preenche os requisitos de uma ação racional.
Aplicando ao exemplo anteriormente apresentado:
- Ricardo tem o desejo de ser feliz
- Tem a crença de que não atender o telefone à “menina má” é a melhor maneira de satisfazer tal desejo
- Todavia, o “menino bom” vai contra a sua própria vontade e atende a chamada
Ou seja, a personagem toma uma atitude irracional por escolher a ação oposta à que acreditava ser a correta.
Irei analisar esta personagem através de três perspetivas diferentes.
Aristóteles começa por diferenciar a acrasia de um conjunto de outros procedimentos que, genericamente, poderiam ser classificados como maus, perversos ou viciosos. Por exemplo, o homem mau é o que está enganado ou é ignorante relativamente ao verdadeiro fim das ações: a felicidade, perseguindo, por isso, os fins errados. O homem libertino é aquele que está equivocado relativamente aos prazeres inerentes às ações. Já o ser acrata não está iludido acerca do verdadeiro prazer. No entanto, perante duas ações alternativas, x e y, em que apenas x constitui, evidentemente, a ação boa e racional, o agente realiza voluntária e intencionalmente y e não x.
Seguindo a ideia de Platão de que as paixões e os prazeres sensuais são os fatores essenciais que obliteram o “autodomínio” do ser humano e aplicando à obra em causa, Aristóteles defende que, no momento da ação acrata, Ricardo revela o esquecimento de um fim essencial e sucumbe-se às paixões e aos prazeres que essa ação, ligar à “menina má”, provoca. Isto é, “trata-se de um homem que a paixão domina ao ponto de o impedir de agir em conformidade com a verdadeira regra” [1]. Todavia, o filósofo faz sempre questão de reforçar que somos totalmente responsáveis pelas nossas ações acratas e, portanto, Ricardo é inteiramente culpado por atender à “chileninha” e que a sua conduta é mais uma reação, algo inevitável, do que uma ação.
Olhemos agora para dois pontos de vista contemporâneos do problema.
Donald Davidson, um filósofo americano, concorda com Aristóteles ao afirmar que ligar à “menina má” é um ato de incontinência “claramente intencional, embora contra o seu melhor juízo” [2], ou seja, também responsabiliza a personagem pela sua conduta. Contudo, no seu ensaio “Paradoxes of irrationality”, o autor utiliza a ideia de Freud de que não existem casos de acrasia ou de irracionalidade, pois não há propriamente um “eu” ou uma essência, não há um centro de racionalidade, mas sim vários “eus” e outros centros que assombram com igual legitimidade as nossas decisões e ações. Como tal, afirma: “Só dividindo a mente em partes parece ser possível explicar como um pensamento ou um impulso pode causar um outro com o qual não estabelece uma relação causal”. Ou seja, Davidson argumenta que a ação de Ricardo se verificou quando estas diferentes partes, potencialmente incompatíveis entre si, mas que suportam desejos e crenças coerentes dentro de cada uma das partes, que equivalem a diferentes pessoas, entraram em “conversação”.
Já segundo George Ainslie e Jon Elster, psicólogo americano e filósofo norueguês, respetivamente, a ação do “borra-botas” resulta precisamente do caráter irracional do juízo no momento de deliberação. Ao contrário do que defende Davidson, segundo esta hipótese, Ricardo não telefona deliberadamente ao seu amor e contra o seu melhor juízo, mas sim ocorre uma inversão das suas preferências e age de acordo com um desejo temporariamente ilusório. De forma mais elaborada, significa que estamos regularmente sujeitos a uma espécie de “miopia” das preferências, que faz com que o valor das opções futuras (a sua felicidade) pareça a Ricardo inferior ao que realmente é, enquanto o valor das opções imediatas (atender a chamada), contrariamente, lhe pareça superior ao que realmente é. Por consequência, os autores chegaram à conclusão de que, quanto mais longínqua a opção, menor nos parecerá o seu valor relativo e indicam que essa ilusão é motivada pela influência do desejo imediato sobre o juízo ponderado do agente. Isto é, curiosamente, de acordo com esta teoria a acrasia é encarada como o resultado de uma “fraqueza de juízo”, e não tanto como uma suposta “fraqueza de vontade”.
Passemos à apresentação das principais objeções às teses apresentadas.
Relativamente à teoria de Aristóteles, a principal objeção, a qual considero extremamente forte, é que nós, seres humanos, não somos nem estamos capacitados de nos tornar seres totalmente abstratos. É inconcebível as nossas ações não serem meras consequências de estarmos subjugados aos nossos prazeres carnais e emoções, pois tal subjugação constitui a nossa mais primordial natureza. É também argumentado que a visão do filósofo grego demonstra uma deficiente compreensão da racionalidade, uma vez que as emoções estão constantemente presentes na motivação das nossas ações e nos desejos que as impulsionam. Ou seja, segundo esta objeção, Ricardo não poderia ter reprimido o seu universo emocional e não ter atendido o telefone à “menina má”.
No que diz respeito às teorias do mundo contemporâneo, a objeção mais óbvia, mas igualmente consistente e difícil de refutar, é aquela em que se consta que os casos mais frequentes de acrasia implicam todos uma cisão na mente do sujeito. Esta partição da mente levanta questões problemáticas, visto que que nenhum dado empírico do nosso conhecimento parece dar fundamento a esta hipótese. A nível de psicologia e psiquiatria, o fenómeno de “dissociação mental” permanece um caso patológico grave que pouco está ligado aos casos comuns de irracionalidade aqui examinados.
Antes de tomar uma posição sobre o problema filosófico que temos estado a discutir, irei explicitar o porquê de não ser apologista de duas das teses apresentadas.
Além de apoiar a objeção feita a Aristóteles, discordo totalmente do mesmo e de Davidson, quando atribuem a origem e responsabilidade de condutas acráticas ao próprio ser que as concretiza, neste caso, a Ricardo. Considero tal posição pouco empática e de uma enorme injustiça para com cada ser individual. Sou da opinião de que é impossível realizarmos uma ação acrata da qual sejamos absolutamente responsáveis. Isto porque somos, com demasiada frequência, expostos a diversos fatores sociais, ambientais, económicos… que nos impedem de estarmos realmente aptos e conscientes de que estamos a ter um comportamento acrático. Reconheço que, com a minha posição, surgem determinadas implicações, principalmente a nível jurídico. No entanto, a minha opinião refere-se a situações mais comuns e relacionáveis com o maior número de pessoas possível.
Seguidamente, acho bastante interessante a ideia de Davidson em relação à pluralidade de desejos e crenças, que, no fundo, equivalem a diferentes pessoas, que nos levam a comportamentos acráticos, mas não a defendo no que toca à “divisão da mente”. Ao sermos seres humanos, é perfeitamente natural não possuirmos apenas um desejo ou uma crença, mas sim vários, que não correspondem, necessariamente, a diferentes pessoas.
Chegou o momento final de tomar uma posição sobre a origem da acrasia.
Pessoalmente, concordo totalmente com a teoria de George Ainslie e Jon Elster, pois essa tal “miopia” das preferências, pensando bem, é dos comportamentos mais humanos que existem. Quantos de nós já não traíram uma decisão inicial refletida e ponderada por uma opção imediata? Quantos de nós já não estiveram no papel do Ricardo e atenderam à “menina má”? Quantos de nós já não inverteram as suas preferências e depois se arrependeram? Esse simples arrependimento é a prova de que não somos acratas de forma intencional e que não somos os “principais” culpados de determinados comportamentos. Pela observação dos meus próprios atos acratas e pela empatia que a perspetiva destes dois filósofos tem para com o mundo emocional de cada indivíduo, defendo que a origem do “menino bom” ter respondido à “menina má” é, de forma clara e distinta, a revisão súbita das suas preferências sob a pressão e influência de um desejo eminente.
Referências:
[1] Ética a Nicómaco – Aristóteles
[2] Essays on Actions and Events – Donald Davidson