Autoria: Beatriz Resende (LEQ)
Três vezes seguidas, roçou a enxada na terra maciça, à procura do ouro. O sol do meio-dia pesava nas costas de Joana, enrugava a sua pele já mulata. Na beira do muro que separava a sua pequena horta do mundo lá fora, aparecera uma flor distinta. “Finalmente floresceu”, pensou, olhando a flor com atenção. O sino da igreja mais próxima, ao longe, percorrendo os campos de trigo das terras além do Tejo, anunciava a hora de voltar a casa – e que bom era voltar a casa.
Remoendo por entre tachos e panelas, Joana preparou a sopa habitual e serviu-a no mais formoso dos seus pratos, datado do enxoval da sua avó. Com deleite, e assim se sentia todas as santas refeições, almoçou sozinha. Além do miar triste do gatito cinzento que, sempre à mesma hora – como saberia ele? – arranhava a porta da sua casa, Joana apenas dispunha da companhia do jornal. Lia em voz alta, elevando a voz nas notícias trágicas e quase sussurrava os anúncios. Divertia-se imaginando o quão bom seria se inventassem uma máquina capaz de entreter as pessoas, que lesse o jornal por elas, como que contando uma história a crianças pequenas. Mas quem? Talvez os aristocratas da região, os homens que se achavam da vanguarda, exibindo pauzinhos chineses – daqueles com caracteres estranhos, numa língua que nem sequer sabiam decifrar – no Café Central, enquanto o resto do povo almoçava a sua simples sandes. Isto, quando havia algo para comer.
Entretida com os seus pensamentos, dançando sobre as ideias que, mais tarde ou mais cedo, se viriam a concretizar, perdia-se a noção do tempo. Nunca em trinta e dois anos de vida ousara pensar fora dos seus deveres e obrigações, não só enquanto mulher, mas enquanto uma que vive sozinha. Apenas a chuva persistente foi capaz de a despertar dessa fantasia. Resmungou por não poder trabalhar no campo o resto da tarde; as nuvens não a haviam avisado que ia chover… Limpou a pequena casa, tratou da roupa e ainda teve tempo para dar dois dedos de conversa à vizinha, que a chamava pela janela e assim ficavam, frente a frente, cochichando sobre tudo e mais não sei quê.
Já com a noite cerrada, sem estrelas visíveis no céu, Joana pôde, finalmente, descansar. Deitava-se cedo, pouco depois das nove, altura precisa em que o aguaceiro cessara. De repente, estranha e súbita sensação teve de que teria de ir a correr à horta, verificar se a chuva tinha engolido a flor que vira de manhã. Não se atreveu a calçar as galochas, tamanha era a pressa. Ao chegar ao local, meteu a mão no bolso, atrapalhada, buscando os óculos e, ao ver que a flor lá estava, sorriu como nunca. “Floresceu”, diria qualquer pessoa que olhasse o sorriso na cara de Joana. Mais descansada, no rápido regresso a casa, parou ainda para colher uma alface, que ficaria para o almoço do dia seguinte. O ouro, afinal, estava mesmo ali.