Quase

Autoria: Rita Mendes (LEBiom)

Não seria estranho considerar a casa do Sr. J. um poço sem fim.

Geraldo acabara de chegar à sua modesta casa, para não dizer menos, já que o palacete mais se assemelhava a uma frágil cabana. Há duas semanas que se ocupava da leitura de um livro sobre Direito penal, um tema algo supérfluo face à função de bibliotecário que exercia na sua aldeia, mas que o auxiliava na árdua tarefa de adormecer.

Sempre viveu à margem da realidade e não conseguia interagir por mais de catorze minutos com um ser da sua idade, fosse este humano ou não. Apesar de ser jovem, desde muito novo que convivia com uma mente envelhecida, um corpo que emanava o cheiro a mofo e pó de naftalina.

Quando estava a meio do capítulo foi atingido pelas areias de Morfeu, deixando que o livro desmaiasse sobre os seus lençóis de flanela.

No dia seguinte, encarregara-se de entregar dois livros pedidos pelo Sr. J., cujo corpo já tinha cedido ao tempo e se encontrava encastrado numa cama, à casa que este habitava no cimo de uma humilde colina no limiar da aldeia. Geraldo nutria uma particular empatia pelo velho, não devido à sua eventual cordialidade ou simpatia, mas exatamente por ser um homem que mal dizia uma palavra, não exigindo dele qualquer tipo de esforço social.

Abriu a porta com a chave que a neta do Sr. J. lhe tinha entregado, já que era recorrente o velho pedir livros da biblioteca, tendo sempre o cuidado de bater pelo menos duas vezes antes de a abrir, por forma a não sobressaltar a vida que resta naquele coração empedernido.

Dirigia-se ao quarto do velho, quando tropeçou no tapete amassado à entrada, levando a sua cara de encontro ao chão poeirento, onde se demorou por alguns segundos antes de se levantar, apanhando os livros que escorregaram para o meio da divisão com os dedos trémulos e uma dor excruciante na cana do nariz. Olhou para a cama e fitou a cara hirta do velho com os olhos lívidos e arregalados apontados como flechas na sua direção, enquanto escutava um riso abafado que emergia do seu pescoço enrugado, mas que não se transparecia na sua face séria.

Geraldo reprimia em si qualquer sensação de temor quando estava perto do Sr. J., por encará-la como falta de educação e infantilidade. Após pousar os livros na mesa de cabeceira ao lado da cama, o velho, ao invés de agradecer, dizia sempre uma palavra que atormentava em parte Geraldo, mas que a neta do senhor reforçava, nos raros momentos em que não estava fora da aldeia, ser sinal da sua debilitante doença, e a dita cuja era “Quase”.

Cada vez que descia a colina após vir daquela casa, Geraldo experienciava novas dores no corpo acompanhadas de um enrijecimento das articulações e uma crescente falta de ar, a qual associava à tensão nervosa que este género de situações nele invocavam. Por vezes, ao chegar ao encolhido caminho de pedra adiante da sua casa, Geraldo olhava para o apartamento do velho lá no alto, como alguém que analisa todos os cantos da mobília após ouvir um ruído peculiar no negrume da noite, à procura de algo que rasteja à sua procura. No entanto, não via nenhuma sombra disforme, nem nenhum ser desfigurado, apenas uma mancha desfocada que o relembrava da necessidade de marcar uma visita ao oftalmologista.

Certo dia chegou a aldeia a notícia da morte da neta do Sr. J., fora atropelada na cidade vizinha por um condutor alcoolizado, enquanto se dirigia para uma reunião de empresa, o que suscitou nos habitantes um enorme pesar perante o trágico destino da jovem, bem como comiseração pelo seu avô, que sem ninguém para cuidar dele, mais depressa se unia à neta. Geraldo não ficou indiferente à situação referida, propondo-se ele próprio a cuidar do velho até ao final dos seus escassos dias, o que não se revela de todo insólito, já que sentia uma inexplicável atração por tudo o que fosse antiquado, incluindo pessoas, mesmo as que recheavam os seus pesadelos.

Inicialmente adaptou-se razoavelmente bem à responsabilidade acarretada, limpando meticulosamente cada canto da casa e preparando a alimentação do Sr. J.. Felizmente a tarefa mais difícil, que consistia em cuidar da higiene do velho, estava a cargo de uma empresa de apoio domiciliário a idosos, contudo isto pouco ajudou a que Geraldo não entrasse num estado de exaustão passadas duas semanas. Para piorar, raras eram as noites em que conseguia dormir em paz, sem os recorrentes pesadelos nos quais se encontrava escondido no roupeiro do Sr. J., enquanto este arranhava as paredes do mesmo, ou aqueles em que a biblioteca se incendiava, com ele literalmente pregado a uma estante. Geraldo sobrevivia aos dias, temendo sempre que as noites fossem ainda mais desconcertantes.  

Talvez por isto, se tenha criado em Geraldo uma profunda inquietação, seguida de confusão mental e perda de memória, a qual o levou ao absurdo de partir a janela da sua própria casa de forma a conseguir entrar, já que se esquecera das chaves de manhã e não estava com disposição para ligar a alguém àquelas horas da noite, ou a qualquer hora.

A situação atingiu o seu auge quando este se esqueceu da sua idade, depois o seu nome e, por fim, de que era uma pessoa. Nos meandros do vazio que enchia a sua mente, Geraldo lembrava-se apenas do que pensava ser o seu lar: a casa do Sr. J.. Desta forma, não é de estranhar que Geraldo tenha encontrado conforto nesse recanto opaco.

Certo dia acordou imóvel na cama do Sr.J, com o corpo enrugado e as veias desmedidamente evidenciadas, porém não se espantou, afinal o seu corpo estava finalmente em concordância com a sua mente. Ao seu lado parecia ver o seu antigo reflexo, um jovem de nariz aquilino e de estatura torta, mas não o podia confirmar, até porque o riso abafado que este possuía não lhe parecia algo de próprio.

Sabia que caia perpetuamente até ser substituído. Estava quase.

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