Relatório 20421102-05-J4

Autoria: João Dinis Álvares (MEFT)

Já é a segunda recaída do paciente – é possível que nunca fique totalmente reabilitado. Deve ficar em supervisão contínua nos próximos dias, atividade mental alta. Não queremos que as pessoas saibam do que se passa cá dentro.

Notas Iniciais: ——–

«Está escuro e um silêncio de morte assola-me os sentidos. Tudo o que ouço é um tinido que nunca me abandona, mas raramente noto que está comigo, como se fossem várias pequenas vozes a atropelar-se para clamarem a minha atenção.

Dou mais um passo no escuro e rezo para que o meu pé caia em porto seguro. Apoio o pé, verifico que não é um buraco e suspiro. Por agora, está tudo bem, faltam os próximos passos. Tento esticar as mãos em direção às paredes, mas encontro apenas algo viscoso, frio, que absorve os últimos restos de calor do meu corpo.

Contentar-me-ei com o que tenho.

O ar é denso e mal consigo respirar, o único vestígio que me assegura de que ainda estou vivo é o quente vapor que sai do meu peito a cada respiração. Já perdi noção de quanto tempo passou desde que comecei esta lenta procissão pelas sombras, mas voltar para trás já não me parece uma opção também. Num dos passos, tropeço num pequeno ferro, o som metálico propaga-se pela escuridão e todo o meu foco se vira para as separadas gotas de suor que se libertam como se fossem cães enraivecidos à espera de saírem do meu corpo.

Nada aconteceu, prossigo. Da direção para onde caminho, começo a ouvir uma voz a declamar algo numa língua arcaica, da qual nada consigo discernir. Quando a voz cessa, muitas outras se levantam em uníssono. Este coro reverberou pelo meu interior de tal forma que toda a tensão anterior fora varrida, como se uma mão tivesse aberto uma porta e retirado todos os pesos que dantes estavam espalhados pelo meu corpo.

Só quando estou prestes a ficar sem ar é que reparo que me esqueci de respirar. Enquanto as vozes prosseguem, dou liberdade ao passo e avanço o suficiente para começar a ver a luz de onde vêm os sons. Quanto mais me aproximo da luz, mais sou atraído para ela, distraído bato numa esquina com o ombro, as vozes cessam e algo me agarra pelas paredes escuras, por entre a substância viscosa.

É difícil lembrar com clareza esta parte, mas recordo-me de estar de joelhos num chão cinzento, frio, a completar um círculo com outras nove pessoas, todas elas cobertas por mantos escuros. Nenhuma cara se voltara para reconhecer a minha presença, como se esta já fosse aguardada. Atentei em cada rosto, mas a memória desfigura os detalhes – ainda assim, no meio da retorcida lembrança, estou confiante de que havia ali três grupos, como se da Santíssima Trindade se tratasse e dentro de cada uma outra houvesse. 

Conquanto isto possa ser mentira, diria que no ponto oposto àquele onde estava ajoelhado se encontravam três membros da Direção, à esquerda deste grupo três membros do Conselho Científico e à direita três membros do Conselho de Escola. No meio da câmara, o centro de todos os olhares, havia um altar de pedra. Ajoelhado como estava, nada mais podia fazer do que adivinhar o que por cima dele estaria.

Senti uma leve corrente de ar a levantar-me, como se o meu peso nada mais fosse para além daquele que a alma carrega, e a corrente incitava-me a dirigir para o centro da câmara. A distância ao altar parecia curta, mas demorou uma eternidade até lá chegar, cada passo custava cada vez mais e todas aquelas vozes que me acompanham falavam cada vez mais alto, a certa altura era só um conjunto de gritos ensurdecedores – não conseguia sequer ouvir o som dos meus passos. Lembro-me de ter atentado nos nove mantos, mas nenhum pareceu aperceber-se ou importar-se com o que se estava a passar. A minha visão começou a ficar turva e a garganta seca, os pulmões pesados, sentia cada batimento do coração nas pontas dos dedos e nas têmporas.

Se alguma vez me queixar seja do que for, será por esquecimento deste breve infindável momento.

Fiz um último esforço, destruído, para chegar ao altar. Em cima deste, encontrei um corpo inerte, acorrentado à pedra. Tentei focar a visão para ver se percebia quem fora o condenado. Desconcertado, arranhei um dos braços, para ter a certeza de que não estava a sonhar.

Aquele corpo era o meu próprio. 

A voz que há pouco recitava numa língua arcaica uma vez mais se levantou, por trás de mim, e anunciou,

“Que todo o mal que viveste neste sítio seja enterrado no fundo do teu ser, juntamente com a tua alma.” E empurrou-me para dentro de mim mesmo, alma e corpo juntos após não sei quanto tempo.

No momento seguinte,  voltei a sentir todo o meu corpo, como o abraço de alguém que há muito partiu e acordei, ofegante, na minha cama.»

Notas Adicionais: O paciente tem recomeçado com os sonhos recorrentes que tinha mal foi internado. Alguém dos órgãos de gestão está a pagar-nos muito dinheiro para que convençamos o paciente de que esta memória é um sonho. Sugestão: duplicar dose de sedativos. Último recurso: lobotomia. Já é a segunda recaída do paciente – é possível que nunca fique totalmente reabilitado. Deve ficar em supervisão contínua nos próximos dias, atividade mental alta. Não queremos que as pessoas saibam o que se passa cá dentro. Final do relatório quinto do paciente J4.

A.L.

Serviços de Reabilitação Estudantil do Instituto Superior Técnico

2 de novembro, 2042

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